Não há comemoração possível para o Dia do Meio Ambiente em 2021. Nunca os problemas ambientais e sociais a eles relacionados foram tão graves. Nesse contexto, cabem algumas reflexões sobre os caminhos que nos levaram a esse desastre, bem como sobre possibilidades de mudança de rumo.
O governo Bolsonaro tem feito inúmeras alterações nos marcos regulatórios da área ambiental, ou de outras áreas da gestão pública, que têm incidência sobre as formas de conservação ou de apropriação e uso do meio ambiente. Várias dessas alterações encontram-se, por exemplo, mas normas que regem atividades produtivas de setores como agronegócio, mineração e geração elétrica. Trata-se de uma estratégia que assenta-se em um tripé formado por elementos já existentes, mas que no atual governo formaram uma conjunção devastadora.
Primeiramente, o patrimonialismo pelo qual a elite brasileira historicamente se apropria dos bens públicos passou a se beneficiar das práticas de fake news e da geração de pós-verdades, que confundem a sociedade sobre os parâmetros da ética e da democracia. Adicionalmente, esse patrimonialismo turbinado serve aos propósitos de uma expansão desenfreada do capital em tempos de concorrência oligopolista.
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Essa nova dinâmica da expansão do capital se dá no contexto da desindustrialização brasileira e do grande crescimento do agronegócio, que pode ser compreendido em quatro frações, que, no frigir dos ovos, operam em alianças.
A primeira e mais poderosa fração é do complexo soja, capaz de influenciar preços globais; seguida do complexo agroenergético-bioeconômico ligado aos biocombustíveis e aos novos produtos da bioeconomia, com destaque para usos da celulose; o médio agronegócio ligado às cadeias alimentares; e, o quarto, o agronegócio “pata do boi”, ligado à expansão da fronteira de produção pecuária extensiva, que ocupa terras públicas e/ou mantém ligações diretas e indiretas com a grilagem de terras.
Todas essas frações participaram ou participam dos processos de conflito o campo, e se beneficiam da destruição da cobertura vegetal natural nos biomas terrestres, a do uso indiscriminados dos recursos aquáticos marítimos e fluviais, mas é a “pata do boi” que lidera.
O terceiro elemento do tripé é a política militar-desenvolvimentista cujo DNA se fortifica pelo ultra-neoliberalismo: ambos subscrevem a lógica da sobrevivência do mais “forte”. Esse ponto requer uma análise mais detida para que se relembre como o pensamento militar, em parte subscrito pela diplomacia brasileira, apoiou dinâmicas que se consolidam atualmente, em especial na questão da ocupação da Amazônia.
A região sempre foi uma preocupação geopolítica para os militares. Entre 1966 e 1967 eles lançaram a “Operação Amazônia”, que apoiou a construção de estradas, criou esquemas de colonização agrícola e proveu incentivos fiscais. Em conjunção, foram concedidos, também, generosos incentivos fiscais para os setores de geração elétrica e mineração, sendo que muitos militares passaram a trabalhar nas estruturas de gestão de empresas e de governos estaduais e locais.
O pressuposto dessas ações era que a soberania sobre a região dependia não apenas de sua ocupação econômica, mas também ocupação por uma sociedade branca e ocidentalizada. Neste pensamento, indígenas e camponeses são incapazes de garantir a soberania nacional, em especial em regiões de fronteira.
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Nas negociações ambientais internacionais, esse DNA se fez presente. Em Estocolmo, 1972, a posição diplomática e militar era a de não aceitar o tratamento multilateral dos temas ambientais, o que poderia, na visão deles, impor limites ao Brasil, em especial ao uso dos recursos naturais e ao crescimento populacional. Na Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, os debates se expandiram por três eixos.
Nas discussões sobre clima, o Brasil queria evitar que as florestas tropicais fossem consideradas sumidouros de CO2, e, ao mesmo tempo, manter a narrativa de que os verdadeiros responsáveis pelas emissões de carbono são historicamente os países industrializados. Na agenda da biodiversidade, a pauta brasileira era a de evitar o avanço do conceito de que os recursos biológicos representariam “patrimônio comum da humanidade”.
E, na agenda de florestas, lutar para que florestas tropicais fossem tratadas em conjunto com florestas de outras categorias (como as temperadas), evitando qualquer menção a uma possível necessidade de tutela internacional para garantir o uso sustentável da Amazônia e de outros biomas. Após 1992, a agenda ambiental se expandiu enormemente, o tripé conservador permaneceu parcialmente escanteado, e sem grande influência política.
A agenda da sustentabilidade, para essa visão, representa impedimentos ao modelo business-as-usual de maximização de lucros na agropecuária, mineração e geração elétrica.
Esse tripé patrimonialista + militar-desenvolvimentista + agronegócio ganhou poder a partir do início dos anos 2000 e formou uma frente parlamentar agropecuária que, unida às chamadas bancadas “da bala” e “da bíblia”, tem “tratorado” as políticas socioambientais e os direitos humanos. As inúmeras denúncias e representações contra o Brasil no âmbito das Nações Unidas e em parlamentos, nos últimos dois anos, forçou governos europeus a se manifestarem contra acordos que possam privilegiar um governo brasileiro que ignora os diplomas internacionais por ele aprovados.
Nesse contexto, a fala do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, em evento brasileiro online no mês de maio, quando considerado em associação a pressões comerciais vindas de países europeus, representa, talvez, a única barreira à atual “tratoragem”. Segundo Al Gore, o Brasil tem soberania sobre a Amazônia, mas tem, também, responsabilidades sobre as implicações que sua destruição acarreta aos demais países.
A fala insere-se no Green New Deal e na agenda de mudanças climáticas, que o governo Biden elevou a uma questão de segurança nacional, o que torna a sustentabilidade uma high politics para os EUA e deve implicar na redução forçada de emissões de carbono ao redor do mundo. Faz parte desta agenda um processo renovado de acumulação de capital por novas tecnologias sustentáveis capazes de gerar empregos em massa nos EUA. Nesse sentido, a Amazônia tem papel central.
O uso de sua biodiversidade pode gerar novos produtos para a nova bioeconomia – americana e, talvez, brasileira. Ao mesmo tempo, a preservação da floresta implica que os preços dos produtos da agropecuária brasileira reflitam os custos ambientais que geram, o que deve aumentar os custos de importação da soja e das carnes produzidas no Brasil. Assim, com uma tacada, o governo Biden implementa sua agenda climática e de segurança nacional, gera empregos bioeconômicos (nos EUA), e aumenta os custos da economia da China, a principal compradora do agronegócio brasileiro.
Mas essas pressões enfrentam no Brasil um tripé que somente será desmontado por práticas comprovadas de corrupção, ou por pressão comercial-financeira. A questão é saber se os Estados Unidos, que tiveram papel central no golpe que colocou o militar-desenvolvimentismo no governo brasileiro em 1964 terá interesse em retirá-lo do poder agora.
* Olympio Barbanti Jr. é professor do curso de Relações Internacionais e membro do Observatório de Política Externa e de Inserção Internacional do Brasil, da UFABC
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Segalla