A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lança nesta segunda-feira (31) o relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”. O documento revela o maior número de conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos em conflitos pela água já registrados pela CPT desde 1985.
O número de ocorrências passou de 1.903 em 2019, para 2.054 em 2020, envolvendo quase 1 milhão de pessoas. Desse total, 1.576 ocorrências são referentes a conflitos por terra, o que equivale a uma média diária de 4,31 conflitos por terra, que totalizam 171.625 famílias brasileiras, em um contexto de grave pandemia.
Segundo Paulo César Moreira, integrante da CPT que compõe o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc), o relatório é um esforço para revelar as dimensões da realidade agrária brasileira.
“O objetivo fundamental do relatório é deixar escancaradas as injustiças fundiárias no Brasil, e além dos ataques contra comunidades e povos, expor também as feridas que o poder econômico e político têm causado ao país. E agora, durante o governo Bolsonaro, tendo visto a profunda negação da verdade, que sonega dados à população, a gente acredita que esse relatório tem uma inestimável importância para nós e para a sociedade”, explica Moreira.
Invasão de territórios indígenas
No caso das famílias cujos territórios foram invadidos, houve um aumento de 102,85% de 2019 para 2020. Calcula-se que de 81.225 famílias que tiveram suas terras e territórios invadidos em 2020, 58.327 dessas famílias são de indígenas, ou seja, 71,8%.
Os povos indígenas são destaque também em relação ao número de assassinatos registrados. Entre os 18 assassinatos registrados no contexto dos conflitos no campo, sete foram de indígenas, 39% das vítimas. Entre as 35 pessoas que sofreram tentativas de assassinato ou homicídio, 12 foram indígenas, 34% das vítimas. No que diz respeito às ameaças de morte, entre as 159 pessoas ameaçadas, 25 são indígenas, portanto, 16% das vítimas.
A Comissão Pastoral da Terra revela que a maioria das ocorrências que envolvem os povos indígenas se deu na Amazônia Legal, inclusive em territórios já demarcados há anos. Sob o discurso de “passar a boiada”, conforme Moreira, o governo consolida a região enquanto uma nova fronteira agrícola e intensifica os conflitos.
“A Amazônia legal concentra 90,8% do desmatamento ilegal, ou seja, percebemos o ciclo constante da grilagem, com desmatamento, fogo, expulsão das comunidades para abertura de soja e gado, quando a boiada vai passando. Além do desmatamento ilegal, não podemos esquecer também a atuação nefasta das mineradoras”.
Entre os estados da Amazônia legal brasileira, o Pará se destaca enquanto pólo de conflitos e, não por acaso, em 2020 ocupou o 1º lugar no ranking das exportações de minérios entre os estados de todo o Brasil, segundo o Sindicato das Indústrias Minerais do Pará (Simineral).
É justamente no sudoeste do Pará que está localizada a Terra Indígena (TI) Munduruku, que abriga cerca de 145 aldeias em meio a um complexo problema de garimpagem ilegal de ouro, às margens do rio Tapajós.
Da aldeia Munduruku Katõ, o cacique José Emiliano Kirixi denuncia o avanço do garimpo que prejudica o bem viver dos povos indígenas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais.
“A gente não tem apoio do Bolsonaro. Ele só promete grandes projetos, projetos que prejudicam a população indígena, e não só os indígenas, mas também os ribeirinhos que moram aqui no alto (...) cadê que ele coloca projetos melhores? Cadê que ele coloca projeto para os índios viverem bem? Deixa o índio ficar só na área dele, na área demarcada!”.
Para o cacique, a invasão nas terras indígenas é responsável pelo aumento de doenças, dos níveis de violência, tráfico de drogas e acesso a armas de fogo.
“Se o branco quiser trabalhar de minério, então trabalha na terra dele. Deixa o índio sobreviver na terra do índio. Não aluguem a cabeça dos indígenas, isso não aceitamos. O nosso protocolo está aí, desrespeitado pelo Bolsonaro, pelos deputados, pelos senadores, pelos governadores e municípios. Isso aumenta as doenças, a bandidagem, o tráfico e os índios não querem isso, nós queremos é viver melhor!”.
Além da causa indígena, outros destaques do relatório produzido anualmente pela CPT são os dados em relação à violência contra as mulheres no campo, o avanço da covid-19 nos territórios e o recorde de assassinatos em conflitos por água.
Na análise de uma década, é possível avaliar que os números começam a saltar a partir de 2016, ano do golpe que retirou Dilma Rousseff da presidência e instituiu Michel Temer. E nos últimos dois anos, sob a gestão Bolsonaro, alcançam recordes históricos.
Em 2011 foram registrados 1.390 casos de conflitos, número que se manteve praticamente estável ou mesmo em queda até o ano de 2015, quando foram registrados 1.329 casos.
A partir de 2016, após o impeachment, há um salto exponencial de 1.329 casos para 1.607. Se antes a diferença girava em torno de seis casos em relação ao ano anterior, neste ano foi de 278 casos.
No entanto, a situação é ainda pior em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro. O número de ocorrências salta de 1.547 em 2018 para 1.903 em 2019, portanto uma diferença histórica de 356 casos em relação ao ano anterior.
Segundo a CPT, os dados apontam para a urgência de implementação e defesa de órgãos de prevenção, fiscalização e combate às violências no campo junto às comunidades tradicionais.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou a assessoria do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e aguarda um posicionamento a respeito do aumento nos conflitos no campo nos últimos dois anos da gestão de Jair Bolsonaro.
Edição: Vivian Virissimo