A Bíblia vem sendo lida e interpretada pela janela da casa grande colonial
O BdF Entrevista desta semana conversa com Henrique Vieira, 34 anos, pastor da Igreja Batista do Caminho. Integrante do Movimento Negro Evangélico (MNE), Vieira fala sobre conservadorismo no segmento evangélico, Teologia Negra, e desafios para a esquerda no diálogo político com essa parcela da sociedade que representa 30% da população brasileira.
“A Teologia Negra é você devolver a Bíblia à sua origem social, que é a origem dos oprimidos, com uma especificidade, com uma espinha dorsal que é o elemento de raça. (...) Vou resumir da seguinte forma: a Bíblia vem sendo lida e interpretada pela janela da casa grande colonial, a Teologia Negra implode esse lugar e passa a ler a Bíblia pela janela do quilombo.”, declara.
Vieira também integra o Coletivo Esperançar de Evangélicos por Direitos Humanos Justiça Social e Respeito à Diversidade, é membro do Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e foi vereador em mandato coletivo. em Niterói (RJ), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), entre 2012 e 2016. Ele é ator especializado na arte da palhaçaria, além de escritor.
“Ao longo da minha vida, desde a minha adolescência, me encontro em projetos e processos coletivos de transformação da realidade que dá sentido a minha vida.”
Confira trechos da entrevista:
Brasil de Fato - Os evangélicos são lidos, de uma forma geral, como a base de apoio do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Pesquisa do Instituto Datafolha, no entanto, mostra que o rosto evangélico é de uma mulher negra e moradora da periferia. Quais os riscos de uniformizar esse olhar sobre os evangélicos?
Henrique Vieira - Generalizar o campo evangélico, sem dúvida alguma, é um equívoco de análise, é um equívoco de tática de inserção, de atuação na sociedade. O campo evangélico não é um bloco monolítico, não é um bloco uniforme. Ele é por definição, historicamente, heterogêneo, com diversas e múltiplas manifestações, inclusive muito diferentes entre si. O campo evangélico é plural.
Além de ser plural, ele é popular, majoritariamente composto por trabalhadores e trabalhadoras das periferias, das favelas, nas cidades e no campo também. Acho que é muito importante entender o campo evangélico por esse aspecto de classe, entender que se trata majoritariamente da classe trabalhadora, pauperizada, explorada no nosso país.
Depois, identificar que existe um conservadorismo, sim, prevalente, predominante no campo evangélico, mas entender que esse conservadorismo é um traço da história do Brasil, do nosso imaginário social, da sociedade como um todo, ou seja, não existe um fenômeno conservador exclusivamente evangélico. O conservadorismo no Brasil está para além do campo evangélico.
Outra observação importante de se fazer é que essas igrejas que vão abrindo por aí, elas acabam cumprindo em algum grau um papel de socialização, de acolhimento, de individualidades que são anônimas e são desprezadas numa sociedade classista, racista, patriarcal. Muitas vezes, nessas igrejas, essas pessoas esquecidas pelo conjunto da sociedade são empoderadas, são vistas, são ouvidas, têm algum tipo de autoridade, são visitadas em casa, são socorridas nas questões das suas famílias, ou seja, é preciso entender a complexidade do campo evangélico, seu caráter popular e plural.
Além desse conservadorismo prevalente, também cabe identificar que existem segmentos dentro desse plural campo evangélico, que são ultraconservadores, que são extremistas e que têm projeto de poder, e que têm influenciado políticas públicas e legislação, e que estão na base do governo Bolsonaro.
Seja como for, a palavra que eu quero reivindicar é: complexidade. O campo evangélico é complexo, e não haverá possibilidade de projeto popular para esse país generalizando esse campo, estigmatizando esse campo, e perdendo contato com parcela da classe trabalhadora que luta todos os dias para sobreviver. Generalizar é entregar para o fundamentalismo e o extremismo essa narrativa do campo evangélico que, na minha compreensão, precisa ser escutada e precisa ser disputada.
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Brasil de Fato - Há contradição entre esse ultraconservadorismo, que integra a base do governo Bolsonaro, e os valores expressos no Evangelho?
Henrique Vieira - O ultraconservadorismo nada tem a ver com a ética do Evangelho, e com a vida de Jesus. Jesus foi qualquer coisa menos conservador. Mas esse contrassenso não é de agora. É bom lembrar que Jesus de Nazaré foi preso, torturado e executado pelo Império Romano. Jesus foi um prisioneiro político. O movimento que derivou dele, três séculos depois, que foi chamado de cristianismo, se tornou a religião oficial do Império, o mesmo que matou Jesus. Esse é um contrassenso na história do cristianismo.
Em outras palavras, objetivamente falando, uma mensagem que vem dos oprimidos passou a ser interpretada pelos opressores. O Evangelho de Jesus que tem uma amorosidade ética, que tem uma quebra de preconceitos permanente, que tem um acolhimento incondicional da vida, que tem uma promoção da dignidade humana de todas as pessoas, que tem a denúncia firme do acúmulo de riquezas, o Evangelho perde esse seu conteúdo histórico, político, revolucionário e espiritual, e passa a ser interpretado pela lente do poder.
Jesus é desistoricizado, sua mensagem é descontextualizada, e ele se torna uma espécie de mestre religioso, tutor de comportamentos individuais. Só estou chamando atenção que o problema da interpretação do Evangelho, servindo a uma perspectiva ultraconservadora, não é um problema circunstancial, pontual, contemporâneo ou recente. É uma tragédia histórica do próprio cristianismo hegemônico e institucional, então, como cristão, o que me cabe? Com muito humildade, coragem, e coletivamente, disputar, como há muito tempo vem sendo, muitos outros irmãos e irmãs fizeram, a memória do Cristo, o Cristo dos pobres, o Cristo da Justiça, o Cristo da promoção da paz, o Cristo do respeito à diversidade. Sim, o ultraconservadorismo é a antítese do Evangelho de Jesus, nada tem a ver com a ética, ensinada, encarnada e proclamada por Jesus.
Brasil de Fato - Diante da pandemia de covid-19, percebe-se que esse ultraconservadorismo tem se expressado no cotidiano das igrejas com discursos negacionistas, por parte de alguns pastores. Por outro lado, há também um movimento de solidariedade e de apoio a essa classe trabalhadora evangélica.
Henrique Vieira - São duas respostas completamente diferentes à pandemia, uma resposta inconsequente, fruto de uma leitura bíblica equivocada, que é a resposta negacionista, que rejeita a contribuição que a ciência pode trazer para a humanidade, que não compreende a seriedade do vírus e o quanto ele tem provocado sofrimento. Por trás desse negacionismo, também arrisco dizer que, para determinados setores, têm interesse econômico, fazer com que as igrejas estejam abertas tem a ver com arrecadação que, na prática, faz com que determinadas lideranças enriqueçam cada vez mais às custas do sofrimento, do suor e do trabalho do povo.
Mas muitas igrejas têm dado exemplo de responsabilidade, com distanciamento social, inovando nas suas atividades, usando mecanismos virtuais e, sobretudo, jogando todas as forças nas redes de solidariedade para amenizar o sofrimento, socorrer as famílias e combater a fome. É bom dar visibilidade também a tantas igrejas sérias, comprometidas com a vida, que entendem a seriedade do momento, que valorizam o saber científico, que procuram estabelecer o distanciamento social, que incentivam a vacinação das pessoas para gerar imunidade individual, imunidade coletiva.
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Brasil de Fato - Você aborda temas como aborto, questão de gênero, sexualidade e direitos de LGBTs. São pautas rechaçadas, em sua maioria, pelo segmento evangélico, e que utilizam o próprio texto bíblico para contrapor essas questões. Como você estabelece vínculos entre o que diz a Bíblia e essas pautas?
Henrique Vieira - O texto bíblico não pode ser interpretado literalmente e descontextualizadamente, senão o que pode gerar, e tem gerado ao longo do tempo, é muita violência. Em nome do “está escrito ponto final”, sem reflexão, sem contextualização, sem mediação, sem atualização, o está escrito frio é muito perigoso, já colocou mulheres na fogueira da Inquisição, já justificou escravidão do povo negro, já justificou dizimação dos povos indígenas, tortura psíquica e emocional contra LGBTs. O texto pelo texto vira pretexto para montar uma doutrina que nada tem a ver com a ética mais profunda do Evangelho. A Bíblia precisa ser lida contextualizando cultural e historicamente seus textos. A Bíblia precisa ser lida tendo Jesus de Nazaré como parâmetro interpretativo.
Portanto, na temática da sexualidade, por exemplo, o que importa? É a ética do amor. Não é a heterossexualidade que define a vontade de Deus. O que define a vontade de Deus é se é um encontro amoroso, afetivo, leal, com fidelidade, com cuidado mútuo, com respeito, ou seja, é muito mais profundo do que se é heterossexualidade ou não. Certamente onde há amor, com sua ética relacional, ali está a benção de Deus. A sexualidade é complexa. No tempo bíblico, nós não tínhamos a compreensão que temos hoje sobre sexo, orientação sexual, gênero, identidade de gênero. É muito melhor ler a Bíblia pelo filtro do amor para promover vida e liberdade.
Sobre a questão do aborto, por exemplo, é só olhar pra realidade. A legislação que criminaliza o aborto não diminui o número de abortos por um lado, e leva muitas mulheres a uma situação de solidão, de desespero, de desencanto, e de aborto clandestino e inseguro. As mulheres morrem muitas vezes por causa disso, especialmente mulheres pobres e mulheres negras. Esta legislação, em nome da vida, está gerando mortes.
Tudo depende de você ter tranquilidade para buscar na Bíblia, em vez de textos específicos, princípios eternos, princípios esses filtrados por Jesus, pela ética do amor e pela experiência concreta dos oprimidos. Ler a Bíblia em comunidade, ler a Bíblia olhando para a realidade, ler a Bíblia para gerar vida, vida em abundância para as pessoas. LGBTfobia mata, a legislação atual que criminaliza o aborto só penaliza as mulheres, e sequer diminui o número de abortos. É preciso ter sensatez e tranquilidade, senão a gente fica abraçado ao texto, deixando de perceber a vontade da palavra de Deus.
Brasil de Fato - Você fala de uma Teologia Negra. O que ela significa?
Henrique Vieira - Significa ler a Bíblia a partir da especificidade da população negra no Brasil. Não é qualquer coisa ser negro no Brasil. Foram quase quatro séculos de escravidão. O racismo é estrutural e estruturante das nossas relações. Está na política, está na economia, está nos meios de comunicação, está no Direito, na operação do Direito, está na intersubjetividade, formada pelas relações humanas, ou seja, se eu sou discípulo de Jesus, num contexto em que o racismo é estrutural, eu não tenho outra opção se não, em nome de Cristo, em nome de Jesus, ler a Bíblia, ler a vida do Cristo e transformar a sociedade.
A Teologia Negra é você devolver a Bíblia a sua origem social, que é a origem dos oprimidos, com uma especificidade, com uma espinha dorsal que é o elemento de raça, que é o elemento da experiência negra nos Estados Unidos, no Caribe, na América Latina. Vou resumir da seguinte forma: a Bíblia vem sendo lida e interpretada pela janela da casa grande colonial, a Teologia Negra implode esse lugar e passa a ler a Bíblia pela janela do quilombo.
O que é que a gente encontra na Bíblia quando a gente muda o referencial de análise, o ponto de partida, e os métodos? É lindo o que a gente vê. A gente vê o Deus dos oprimidos, o Deus do êxodo, o Deus do deserto, o Deus dos profetas, o Deus das mulheres, dos órfãos, das viúvas, dos sem-terra, dos sem-teto, dos refugiados, dos imigrantes, dos marginalizados. Você começa a perceber que a Bíblia não é manual comportamental para ficar tutelando o corpo. A Bíblia é a declaração de que Deus na história não é neutro diante das injustiças, e está sempre em favor dos oprimidos, ventando em prol da sua libertação.
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Brasil de Fato - Ao olhar para 2022, qual a sua leitura sobre o papel que o segmento evangélico deve ter no cenário político? A esquerda tem mudado a forma de encarar essa parcela da sociedade?
Henrique Vieira - Certamente o campo evangélico terá um peso importante, cada vez mais decisivo. Eu entendo que a esquerda vem amadurecendo, vem perdendo preconceito, buscando estabelecer diálogo. Esse diálogo não pode ser circunscrito ao período eleitoral, também não pode ser um diálogo de cúpula. Tem que ser um diálogo com a base evangélica, trabalhadora, do cotidiano e da sobrevivência nesse país.
Ficar fazendo acordo com a cúpula, nós já temos exemplos recentes de que não deram certo. Porque você faz um acordo fisiológico que, na primeira tempestade, as lideranças saem do barco e começam a atacar. Acho que a esquerda tem que compreender que a espiritualidade evangélica faz parte da mística popular brasileira. Estabelecer diálogo não pode ser sazonalmente, não apenas em período eleitoral, é um diálogo porque se trata de classe trabalhadora. É um diálogo porque se tratam de mulheres, na sua maioria mulheres negras, porque se trata da população da periferia, da favela, que morre de tiro, que é vítima de chacina, que está em subemprego, na informalidade, ou que está desempregada, que está passando fome, ou seja, é dialogar para, na convivência e na comunhão, construir um projeto de país, de justiça social, de respeito à diversidade, de combate à desigualdade, de garantia e ampliação de direitos, então tem que ser um diálogo permanente, que não seja apenas com a cúpula, que seja com a parcela do povo que está na base, lutando para sobreviver, daí eu vejo um campo fértil.
Edição: Isa Chedid