O Brasil perdeu, nesta quinta-feira (27), o sambista carioca Nelson Sargento, aos 96 anos, vítima de covid-19. Sargento era presidente de honra da Escola de Samba Mangueira e autor de diversos sucessos como “Agoniza, mas não morre”.
Além de cantor e compositor, Sargento também era admirável nas artes plásticas e no campo da escrita. Infelizmente, o sambista foi diagnosticado com o novo coronavírus na última sexta-feira (21), quando foi internado.
Para o professor e escritor Luiz Ricardo Leitão, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “a herança deixada pelo Nelson para a nossa cultura, não tem preço”.
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Leitão é doutor em estudos literários pela Universidad de La Habana, coordenador do Acervo Universitário do Samba e autor do livro Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e das biografias de Aluísio Machado, Zé Katimba e Rosa Magalhães. Ele diz que Sargento vai servir como um farol dando luz para todos aqueles que fazem parte da resistência pela cultura popular brasileira.
A seguir, leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Hoje a gente perdeu o Nelson Sargento, infelizmente. Na sua avaliação, qual o legado que ele deixa?
Luiz Ricardo Leitão: A herança deixada pelo Nelson para a nossa cultura não tem preço. Em primeiro lugar, vale lembrar que o talento de Sargento era multifacetado. Ele não era apenas cantor, compositor, mas atuou em grande estilo no “A Voz do Morro”, ao lado de Zé Kéti, Paulinho da Viola, Elton Medeiros… então, quer dizer, a nata que explodiu nos anos 60, mostrando a força da cultura popular no Brasil.
Mas ele também abraçou as artes plásticas. Ele era um pintor renomado e também esteve nas letras, ele escreveu crônicas, livros… ele, por um lado, é artista multifacetado, por outro lado, com aquele samba antológico do “Agoniza, Mas Não Morre”, ele foi um grande porta-voz da causa da resistência cultural no Brasil.
Como canta em Agoniza, Mas Não Morre:
Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Uma causa que já vem sendo gestada desde o início do século XX, quando o samba era perseguido, hostilizado, fustigado pela repressão na antiga capital federal. E ele nunca se intimidou e mostrou que o samba, no fundo, supera todas essas hostilidades e ele se afirma. Tanto que virou um ícone na era de Getúlio Vargas.
Portanto, ele foi o grande abre-alas, o grande porta-voz. Sua música, seu posicionamento, mostraram que é preciso resistir. E, nos dias de hoje, essa mensagem é amplificada e se reveste de uma relevância absolutamente incomensurável. Ele, de fato, deixa um grande legado para nós que vamos seguir abraçando essa causa.
BdF: Qual o impacto que a morte do Sargento causa para o samba?
LRL: Tudo na vida é dialético. Tudo traz consigo o seu oposto. A primeira impressão é de dor, é de pesar. Eu tenho visto nas redes sociais manifestações muito sentidas, comovidas. É um baque. Quando você perde um grande companheiro de criação e de resistência, você sente. O momento é adverso, a conjuntura não é a melhor que poderíamos ter. Então, o primeiro impacto é negativo: perdemos um bamba, perdemos um gigante. Perdemos um grande líder da cultura popular e do samba. Mas, em compensação, isso também desperta nas pessoas a consciência de que, se ele se foi, novos talentos surgem.
A própria Mangueira é uma demonstração disso. A Mangueira era aquela escola que, um dia, foi de Cartola, Carlos Cachaça, Babaú, que era um grupo que resistiu muito e que junto com Mano Elói, o Paulo da Portela, com outros pioneiros, em embaixadas, conformaram uma espécie de frente ampla em defesa da cultura popular naquele momento tão hostil da virada da primeira República para o início da Era Vargas. Houve esse fator, essa Mangueira inicial.
Depois, ela teve momentos de menor brilho, mas, na última década, a Mangueira se tornou a grande agremiação, ou uma das grandes agremiações em defesa da democracia, da diversidade, da tolerância, das raízes da nossa cultura. Veja os últimos enredos da Mangueira como “Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá”, como a “História para ninar gente grande”, que fez uma releitura da História oficial de maneira crítica… enredos, todos esses concebidos por Leandro Vieira, que é outra personalidade muito consciente do papel do artista nessa sociedade de inequidade e de exclusão aguda, então… ele era o presidente de honra desta nação verde e rosa.
A Mangueira é uma escola que nunca teve grandes mecenas, que se sustentou essencialmente por sua comunidade fincada nesse território aqui vizinho à nossa Uerj. Essa agremiação sempre teve a força dessa comunidade nesse território da ancestralidade uma espécie de alento e ter o Nelson como presidente de honra, reafirmava isso.
Por outro lado, o Nelson vai servir de luz, de farol, para essas figuras que são inúmeras. Uma porta-bandeira como Squel Jorgea, que tem profunda consciência social, uma rainha fantástica como é a Evelyn [Bastos]... uma escola com nomes que perduram até hoje, quem não tem saudade de uma Beth Carvalho? Quem não respeita o trabalho que continua a fazer uma Leci Brandão? Essa escola não é brincadeira e o Nelson Sargento era exatamente o grande ícone dessa constelação da nossa arte popular.
BdF: O que você destacaria como sendo o mais importante na obra do Nelson?
LRL: Ele foi multifacetado porque fez samba de enredo e deixou essa marca. O “Cântico à Natureza”, muitos pensam que não tem a ver com enredo, mas foi o samba de enredo de 1955. Agora, imagine o autor que diz “O nosso amor é tão bonito, ela finge que me ama e eu finjo que acredito”, que é uma crônica sobre a condição humana. A defesa militante do samba, com “Agoniza, Mas Não Morre”, é inestimável.
Sua participação na "A Voz do Morro'' é também absolutamente digno de nota, eu não poderia omitir essa informação. E vamos reconhecer que era um excelente pintor e também um escritor de mão cheia, com perfis, crônicas… mas, talvez, o público em geral grave mais como o autor de “Cântico à Natureza”, “Homenagem ao Mestre Cartola”, de “Falso Amor Sincero”, de “Agoniza, Mas Não Morre”. Talvez para o grande público seja o que desperta mais atenção.
Edição: Vinícius Segalla