País enlutado

Luto cristão também prevê clamor por justiça pelas mortes evitáveis, diz pastor

Com 450 mil mortes por covid, Brasil vive maior pesar coletivo da história; fraternidade e escuta podem aliviar a dor

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Obra do pintor grego Nikēphoros Lytras retrata o luto por um marinheiro desaparecido; ausência do corpo é motor para luta por justiça - Europeana/Unsplash

Se o número de óbitos por causa do coronavírus continuar crescendo no ritmo atual, o Brasil terá meio milhão de mortes registradas ainda no mês de junho. O dado consolidará um cenário que já atinge a nação desde o primeiro semestre da pandemia: nunca tanta gente morreu pelo mesmo motivo em um prazo tão curto de tempo.

Em agosto do ano passado, menos de seis meses depois dos primeiros registros da covid-19 em solo nacional, a doença já havia custado mais vidas do que a gripe espanhola e a AIDS. Em janeiro deste ano, veio a confirmação: 2020 foi o ano mais mortal da história do Brasil, de acordo com dados do Portal da Transparência dos cartórios.

Foram mais de 1,4 milhão de óbitos, o que representa aumento de 8,6% em relação a 2019. Normalmente, a variação entre um ano e outro não passa de 2%. O mais trágico desses dados é o fato de que, provavelmente, eles serão superados em 2021.

::Número de mortes por covid no Brasil em 2021 já supera o total do ano passado::

Março, por exemplo, foi o mês com maior número de mortes registradas por causas naturais desde 2003, quando os cartórios começaram a série histórica dos dados. Foram 144.576 óbitos, número que inclui os casos fatais da covid-19. 

É fato que, desde então, o ritmo de aumento dos óbitos diminuiu, mas ainda segue com mais de 40% da velocidade registrada nas piores semanas do ano passado. O maior luto coletivo da história do país causa impactos emocionais, econômicos e políticos que ainda serão digeridos por muito tempo.

No livro Tratado Brasileiro sobre Perdas e Lutos, de 2014, diversos artigos e análises indicam que alguns fatos podem contribuir para elaboração do período de pesar. Entre eles estão a compreensão de que tudo foi feito pelo paciente, que ele recebeu todos os cuidados necessários e que a morte aconteceu de maneira natural.

São fatores que estão ausentes nas mortes por covid-19, que acontecem em um contexto de colapso no sistema de saúde, propagação acelerada do coronavírus e resposta insuficiente do poder público para conter a crise sanitária.

O Brasil de Fato conversou com o pastor e pesquisador Brian Kibooka, da Igreja Batista e que atua em Feira de Santana (BA), sobre quais são os aspectos essenciais para superação do luto, a partir da perspectiva cristã. Na entrevista, ele afirmou que a preservação da memória e a luta por reparação pelas perdas evitáveis são pontos centrais no processo.

"O cristianismo foi construído, nos seus primeiros 250 anos, na esperança da vida eterna, mas não apenas isso. Quando a morte é uma morte evitável, é como se tirassem de nós a possibilidade de lutar pela vida. O remédio que os cristãos encontraram para isso foi o compartilhamento da memória e a convicção de que a justiça tinha que ser feita."


O pastor e pesquisador Brian Kibooka: ele defende a capacidade de ouvir e o compartilhamento como ferramentas para lidar com a dor e o luto pelos mortos da covid / Arquivo pessoal

Confira a conversa abaixo ou ouça na íntegra no tocador de áudio abaixo do título dessa matéria.

Brasil de Fato: Recentemente, a Confederação Nacional da Indústria divulgou uma pesquisa apontando que três entre quatro brasileiros vivem algum processo de luto desde o início da pandemia, seja pela perda de parentes, amigos ou colegas. Como superar um luto que atinge a todos? O Cristianismo consegue nos mostrar um lugar de apoio?

Brian Kibooka: O Cristianismo foi construído nos seus primeiros 250 anos nessa esperança de vida eterna, mas não apenas isso. A vida eterna, claro, é uma temática cristã fundamental, de acreditar na ressurreição do corpo. Mas, muitas vezes os cristãos eram martirizados e o corpo ficava ausente, o corpo não era devolvido. E os cristãos encontravam maneiras de ressignificar a morte dos que tinham passado, numa situação muito precária, porque eles foram perseguidos no império romano. 

Logo, eles se encontravam nos locais onde os mortos jaziam - nas catacumbas -  e escreviam e recitavam as histórias das pessoas que tinham partido. De como até o fim elas foram fundamentais e importantes. É na recuperação da memória das pessoas que elas se presentificam.  

A morte atinge todos nós, perpassa a todos nós, é inescapável. Mas quando a morte é uma morte infringida, uma morte evitável, quando a morte passa necessariamente por negligência, por perseguição, por ódio e por indiferença, é muito mais difícil enfrentar. É como se tirassem de nós a possibilidade de lutar pela vida. Essa impossibilidade de lutar pela vida dói.

O remédio que os cristãos deram para isso foi o remédio do compartilhamento da memória. Eles não podiam sepultar seus mortos, porque os corpos eram estraçalhados. Eles não podiam se reunir, porque a reunião era proscrita, proibida. Então, eles iam pro lugar onde os mortos jaziam e, ali nesse lugar simbólico, eles cantavam para Deus sobre a sua esperança.

Ao mesmo tempo, eles diziam uns para os outros como aquela pessoa tinha deixado marcas profundas e como a sua passagem ganhava significado. Portanto, o sepulcro dessas pessoas era o coração desses indivíduos que ficaram.

No caso de mortes infrigidas, a busca por responsabilização e justiça contribui para o processo de luto e cura?

Os cristãos tinham outra coisa que era importante, eles tinham a convicção de que a justiça precisava ser feita. Eles não apenas lamentavam, mas eles clamavam por justiça, por reparação. Ao mesmo tempo em que eles enxergavam a necessidade de preservação da memória de quem partiu, eles também entendiam que era inescapável prestar contas da responsabilidade pela morte de quem partiu.

Faz parte da tradição cristã mais importante, no período em que os cristãos morriam aos montes. Ou seja, quando os cristãos experimentaram isso, eles também pediam a Deus reparação e também trabalhavam em favor de que a reparação acontecesse.

Então, faz parte do cristianismo fazer essas três coisas, recuperar e preservar a memória, transformar isso em esperança de que a vida perdurará, mas também clamar por justiça, para que haja reparação. Porque quando a morte é evitável, aí existe reponsabilidade. O Deus cristão clama e exige reparação da morte que acontece e que não é uma morte natural, mas uma morte evitável.

Esse Deus, que lá na narrativa bíblica tem um irmão que mata um irmão, tem Caim que mata Abel e o sangue de Abel clama desde a terra, Deus ouve e cobra Caim. Ele diz que não tinha nada a ver com aquilo e Deus fala, 'O sangue do teu irmão clama da terra por mim'. Então, o sangue das pessoas que morrem mortes evitáveis clama, está gritando, pedindo justiça e reparação.

Esses três elementos que o senhor traz seriam elementos fundamentais também para o alimento da vida eterna? Essa vida eterna também pode ser feita das memórias e das tentativas de justiça?

Desde que o homem estabelece lugares para fixação da moradia, quando ele se torna sedentário, a primeira cidade que se tem notícia e que era sedentária foi Jericó. Quando se escavou Jericó, na primeira casa escavada, eles encontraram no centro da sala um crânio e, no lugar dos olhos, tinham duas conchas. Só que o mar fica muito longe de Jericó.

Eles trouxeram as conchas para dar a impressão de vida para aquela pessoa. Não faz parte apenas da esperança cristã, faz parte da esperança humana a gente não aceitar que as pessoas partiram. Porque viver é muito bom. A gente tem a experiência do prazer, do riso, do pranto, do perder, do ganhar. Essa aventura da vida é extraordinária. Desde que a humanidade estabelece um lugar para morar, ela estabelece também um lugar para conservar a memória dos mortos.

Isso não é cristão, isso é humano. Sendo humano, é ato contínuo também acreditar ou perguntar se essa vida perdura. Várias respostas são dadas para isso. Não é uma questão de acreditar em Deus ou não acreditar. A questão é ter força para continuar vivendo.

Agora, quem entende essas coisas, compreende que dessa vida do porvir quem cuida é Deus, seja qual for o Deus que a pessoa acreditar. Mas dessa vida de hoje, quem cuida somos nós. Então, nós temos que clamar por justiça, clamar por reparação. Clamar para que as crianças não sejam submetidas à bala perdida, para que pessoas não morram de covid sem condições de ser intubadas.

Hoje, a gente corre risco de não ter nem o memorial e muito menos a possibilidade de chorar. O ato cristão e humano é, se não pudermos ter um lugar para encontrar nossos mortos e se não pudermos fazer o luto, o nosso luto se converte em luta.

Isso é ecumênico, todo mundo que sabe e tem um coração que pulsa no peito, lutará essa luta, porque essa luta é a mais urgente que nós temos em nossos dias.

Pastor, o que o senhor diria para um fiel que hoje pedisse consolo porque perdeu alguém nessa crise da covid? Como alentar em um momento em que o alento individual é um alento ao Brasil, já que o país está em luto coletivo?

Eu vou falar para você que as palavras não são muito significativas, porque não conseguem traduzir o que faz parte da dor e do sentimento. Essa presença, esse aconchego da alma - porque nem abraçar nós podemos mais - essa disposição para fazer com que as necessidades financeiras sejam supridas, essa disposição para garantir que se a pessoa quiser chorar, nós seremos o ouvido. A pior coisa a fazer é criar uma narrativa para rivalizar com as que existem.

Tem muito mais o que fazer do que o que falar. Levar uma comida, se preocupar em ver como a pessoa está passando, não esquecer que pessoa existe depois de uma semana, não dizer que lamenta e, depois disso, simplesmente não querer saber como a pessoa faz com as contas. Hoje, nossa grande arma não são as palavras, mas sim os atos de solidariedade. 

Compartilhar, se a gente tem um pouquinho mais, com os que não têm. Deixar em casa os trabalhadores para não se contaminarem, porque a vida é mais importante do que o trabalho. Aprender a usar os recursos digitais para acolher as pessoas, perguntar como está. A escuta, para quem não sabe o que dizer, é muito importante. A escuta é o desabafo da alma que sofre.

Mesmo que você não diga nada, a pessoa depois se sente melhor, porque ela sabe que tem alguém com quem contar. Se tem uma ausência muito grande, pelo menos tem uma presença ali que não desistiu da vida dela. É a força que ela precisa para viver.

::Artigo | Campanha da Fraternidade em tempos de coronavírus impõe reflexão a católicos::

Jesus ensinou isso pra gente. Quando estava prestes a ser julgado, as coisas já tinham se perdido, os discípulos já tinham ido embora, Pilatos perguntou o que é a verdade. Jesus não respondeu nada, porque a verdade não precisa ser dita quando a verdade está diante de nós. A verdade da maldade humana, que faz com que o corpo fique ferido e a gente sangre por dentro e por fora. Quando isso acontece, a pergunta sobre o que é a verdade é uma ofensa.

Longe de mim, como religioso que deve acreditar no metafísico, querer dizer para as pessoas as verdades. Quando na verdade, o que elas precisam é do amor. Amar é estar junto de alguém, amar é falar para a pessoa, 'conta comigo'. Esse cristianismo está sendo vivenciado por gente que entendeu que, para além desses discursos religiosos absurdos, tem gente padecendo, tem gente sofrendo.

Há pessoas, que são cristãs de verdade, que se mostram nessa hora ajudando, acolhendo, contribuindo, compartilhando e vivendo junto. É isso que é mais importante. Eu quero lembrar que faz parte da nossa raiz, da nossa brasilidade, essa coisa de dar as mãos em um momento difícil. Estão tentando fazer com que nós não sejamos mais esse povo solidário.

Tem um investimento, há muitos anos e hoje se intensificou, para que nós sejamos pessoas que marcam diferenças entre nós e, por meio dessas diferenças, fazem com que as pessoas se desumanizem. Essas coisas (provenientes da solidariedade) não morreram e não vão conseguir matar isso em nós. Se tentarem tirar isso de nós, nós altearemos as nossa vozes e vamos dizer, basta! Nós não aceitaremos que transformem o nosso país em um cemitério. 

 

Edição: Vinícius Segalla