Você já ouviu falar da Caxemira? Se você é um amante da natureza, deve ter visto um ou dois cartões postais retratando majestosas montanhas azuis com picos cobertos de neve e lagos imaculados com uma brisa suave fazendo uma serenata para as casas flutuantes. Você deve ter visto fotos de prados idílicos com cavalos e vacas pastando calmamente. Se você é do tipo que tenta se manter informado sobre o mundo, deve saber que há algum conflito político acontecendo na Caxemira, algo a ver com “terrorismo islâmico” e a Índia de Gandhi.
Walter Benjamin escreveu certa vez que não existe documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie. Ele poderia muito bem estar falando de minha terra natal. A Caxemira, uma pérola localizada entre as maiores cadeias de montanhas, nos Himalaia, nasceu de um violento choque geológico.
Cerca de 40–50 milhões de anos atrás, a placa continental indiana, que se separou de Gondwanaland e se moveu para o norte, colidiu com a placa continental asiática. Os resultados foram catastróficos. Quando a placa continental indiana começou a passar por baixo da placa asiática, as bordas das duas placas começaram a se dobrar e se elevar no que hoje conhecemos como os Himalaias e as montanhas Hindu Kush. Muitos vales pequenos e grandes germinaram nas rugas das cadeias de montanhas crescentes. A Caxemira, no ponto central (e mais ao norte) da colisão, foi o maior desses vales.
Desde então, conflitos nunca deram trégua à Caxemira
Quando os primeiros humanos começaram a caminhar pelo vale, foi como se o conflito se infiltrasse em suas correntes sanguíneas. A Caxemira tornou-se a cúspide de três grandes civilizações: Ásia Central, Sino-Tibetana e Índica. Durante os melhores momentos – como se fosse para provar como a violência e a civilização estão realmente entrelaçadas – a Caxemira absorve as melhores influências de todos eles. Por exemplo, os ideais budistas de Dharma e o Caminho do Meio da civilização indiana; chá salgado e arquitetura da civilização sino-tibetana; e habilidade artesanal e o vocabulário da civilização da Ásia Central. Durante os piores momentos, os caxemires são submetidos a uma brutalidade indescritível por poderosos impérios coloniais e nossa sociedade é dilacerada, pois irmão mata irmão para agradar senhores estrangeiros.
Na verdade, a Caxemira está passando por um período realmente ruim e longo. Um pesadelo sem fim que já dura 500 anos. Tudo começou quando o último rei independente da Caxemira, Yousuf Shah Chak, foi enganosamente capturado pelo imperador mogol Akbar (que governava Delhi, agora, a capital da Índia) após ser convidado para negociações (Chak resistiu com sucesso a dois exércitos mogóis enviados para conquistar Caxemira). Desde então, a Caxemira está sob contínuo domínio estrangeiro. Depois dos mogóis, vieram os afegãos e depois os sikhs, cada um mais cruel do que o governante anterior, enquanto o povo da Caxemira era esmagado pelo peso da tributação e da begar (um horrível sistema de trabalho forçado comparável à encomienda[1]).
Os britânicos começaram a colonizar o sul da Ásia (também conhecido como subcontinente indiano) no século 18. Em meados do século 19, eles o conquistaram e uniram em um único império pela primeira vez na história, assim como Napoleão havia feito na Europa meio século antes. Novamente seguindo os passos de Napoleão, os britânicos estabeleceram o domínio direto em algumas partes do sul-asiático, enquanto outras partes foram transformadas em estados clientes. Esses estados clientes foram dados a reis e chefes regionais que ajudaram os britânicos em suas guerras contra os vários reinos e principados sul-asiáticos. Os Dogras, um sátrapa do Império Sikh, traíram os Sikhs e ajudaram os britânicos a derrotá-los. Em troca, os britânicos deram a eles a Caxemira e o território ao redor dela, agora conhecido como Jammu e Caxemira (J&K), por um preço nominal de 75.000 rúpias.
Notória brutalidade
J&K era um território diverso, composto por muitos vales grandes e pequenos, bem como pela encosta do Himalaia. No noroeste, era limitado pelo Afeganistão. Ao norte ficava Xinxiang e a leste o Tibete, ambos agora parte da China. A oeste ficava o que hoje é conhecido como Paquistão e ao sul o que se tornou a Índia.
Os Dogras governaram a Caxemira por 101 anos, de 1846 a 1947, e ganharam uma notoriedade particular por sua brutalidade. Na década de 1930, um movimento político começou contra o despótico governo Dogra. Um manifesto por uma democracia constitucional foi publicado pela Conferência Nacional, o maior partido político da região em 1944. O documento, chamado Naya Kashmir, era uma agenda esquerdista muito progressista para uma república socialista – quase comunista.
Em agosto de 1947, o domínio britânico sobre o subcontinente terminou e dois novos países foram criados. As áreas de maioria hindu tornaram-se a Índia e as áreas de maioria muçulmana se tornaram o Paquistão. Governantes e chefes que os britânicos permitiram manter seus principados foram, naquele momento, convidados a se juntar a qualquer um dos dois países por meio de atos legais conhecidos como “Instrumentos de Adesão”. J&K era um estado predominantemente muçulmano – três em cada quatro cidadãos eram muçulmanos.
Mas, o governante Dogra era hindu. Ele queria manter sua independência, o que ele pensava que só poderia fazer cometendo um genocídio contra a inquieta maioria muçulmana. Em outubro de 1947, suas forças já haviam matado cerca de 200 a 500 mil muçulmanos no estado. Milicianos muçulmanos do recém-formado Paquistão, muitos dos quais tinham famílias e parentes em J&K, apareceram para ajudar a população sitiada. Sentindo seu fim, o rei Dogra buscou ajuda da recém-cunhada Índia.
Plebiscito
A Índia recusou-se a ajudar a menos que ele assinasse um Instrumento de Adesão, o que ele supostamente fez no final de outubro de 1947. As forças indianas desembarcaram na Caxemira para lutar contra os milicianos tribais, aos quais logo se juntaram as tropas regulares do exército do Paquistão. Na guerra que se seguiu, a força militar indiana, muito maior, empurrou os paquistaneses de volta antes que um acordo de cessar-fogo mediado pela ONU fosse assinado em 26 de julho de 1949. O Conselho de Segurança da ONU aprovou várias resoluções para que um plebiscito fosse realizado em J&K para determinar seu futuro.
A parte mantida pelo Paquistão, a parte norte e oeste da J&K, passou a ser conhecida como Azad Kashmir. É declarada livre, com parlamento e governo próprios, mas não é reconhecida como tal pela ONU, que o denomina Caxemira Administrada pelo Paquistão (PAK). A parte mantida pela Índia (parte central e sul do estado) é denominada “Caxemira administrada pela Índia (IAK). Gozava de autonomia limitada (incluindo proteção contra a compra de terras da população indígena por indianos) até 5 de agosto de 2019, quando o governo extremista hindu da Índia decidiu encerrar unilateralmente o status de autonomia.
China
Antes disso, em 1914, o governo colonial britânico assinou um acordo com o reino independente do Tibete definindo a fronteira entre ele e os territórios britânicos. Essa fronteira era conhecida como Linha McMahon. No entanto, quando a República Popular da China nasceu em 1949 e o Tibete passou a fazer parte dela, o novo governo comunista rejeitou a Linha McMohan e reivindicou muitas áreas ao sul e oeste dela como parte da China. Grande parte do território da J&K, no norte e no leste, fazia parte das reivindicações chinesas. As forças chinesas capturaram uma grande parte da terra conhecida como Aksai Chi em uma guerra com a Índia em 1962, e continua a reivindicar uma parte significativa do território mantido pela Índia.
Assim nasceu o conflito mais mortal do mundo hoje. Três das quatro guerras travadas entre a Índia e o Paquistão nos últimos 75 anos foram pela Caxemira. Milhões morreram nessas guerras. A linha de controle entre IAK e PAK é uma zona de guerra implacável. Além da guerra de 1962 entre a China e a Índia, os militares dos dois países mais populosos do mundo – lar de mais de um terço de toda a humanidade – freqüentemente se chocam na fronteira em J&K (bem como em outras áreas). Na verdade, desde abril do ano passado, os dois lados estão travados em um estado de tensão que resultou na morte de muitos soldados de ambos os lados.
A Caxemira não é apenas uma disputa de fronteira entre três potências nucleares. E quanto ao povo da Caxemira? O que queremos e como o conseguiremos?
O Conselho de Segurança da ONU tem aprovado diversas resoluções sobre a realização de um plebicito em J&K para decidir seu futuro. O Paquistão concorda que os caxemires têm direito à autodeterminação. A China também. A Índia, por outro lado, se recusa a reconhecer o direito do povo de J&K de decidir seu próprio futuro, embora o primeiro primeiro-ministro do país, Jawaharlal Nehru, tenha afirmado que a promessa de um plebiscito sob a égide da ONU será honrada.
Nos últimos 75 anos, os caxemires tentaram todos os meios à luz do conhecimento para obter seu direito à autodeterminação – meios pacíficos, meios parlamentares, movimentos de massa e, desde 1989, uma insurgência contra a ocupação indiana. Quase um milhão de caxemires foram mortos na horrível campanha indiana anti-insurgência. Dez mil desapareceram e dezenas de milhares foram torturados e estuprados pelas forças indianas.
Por que a Índia nega o direito de autodeterminação ao povo da Caxemira? Bem, colocando de forma simples, a Índia é tanto um subcontinente quanto um país. O subcontinente indiano – sul asiático – está espalhado por 5.13 million km² e tem quase três vezes a população de toda a América Latina. Muitos indianos (incluindo seu governo) confundem os dois e reivindicam todo o território geológico chamado Índia como seu país. Mas, é como afirmar que o oceano Índico pertence à Índia ou que os nativos americanos são indianos só porque os europeus os chamaram assim. Por outro lado, ou, como os latino-americanos bem sabem, assumir que “americanos” são somente aqueles nascidos nos Estados Unidos da América – que é um país, não um continente. Esse hipernacionalismo irracional é uma ameaça constante à paz na região e no mundo em geral.
Então, agora você sabe sobre o ménage-à-trois mais mortal do mundo
China, Índia e Paquistão estão em um impasse nuclear por causa da J&K. Nenhum governo em qualquer um dos três países pode se dar ao luxo de ser visto como perdedor neste conflito. Então qual é a solução?
Em nosso mundo de hoje, temos armas de destruição em massa, mas, também temos a democracia e respeito pelos direitos indígenas. O povo da Caxemira terá permissão para determinar seu futuro e o futuro de sua terra natal? Essa é a coisa certa a fazer, além de proporcionar aos três países em guerra uma saída honrosa. Ou será o destino da Caxemira, nascido de um conflito sísmico entre as placas continentais asiática e indiana, destruir a região, possivelmente o mundo, em uma guerra nuclear catastrófica?
*Arif Ayaz Parrey é um escritor e advogado caxemiro, parceiro do Instituto Calanam. Este artigo é parte de um projeto piloto que visa a cooperação entre países do eixo Sul-Sul para troca de conhecimento mútuo. No projeto, escritores, jornalistas e ativistas asiáticos escrevem sobre seus territórios para leitores latino-americanos, em especial para a classe trabalhadora brasileira.
[1] A encomienda era uma instituição em vigor nos reinos de Castela e foi adaptada nos territórios americanos invadidos por espanhóis. Permitia ao encomendero, um fidalgo espanhol, cobrar tributos na forma de trabalho ou de bens materiais a determinada população indígena, além de evangelizá-la.