Com quantas “antipesquisas” se constrói uma verdade conveniente?
Por Cláudia Maria Dadico*
Guimarães Rosa, em “Desenredo”, conta a história de Jó Joaquim e sua amada (Li-ví-ria, Rivília ou Irvília). Jó Joaquim já a conhecera casada e, mesmo ciente dessa condição, tivera com ela um caso de amor clandestino. Apaixonado, tomou um susto com a notícia de que sua amada fora flagrada pelo marido com um outro, um terceiro amante. Precisou de uma pausa para refazer. Curar as feridas do sofrimento que a notícia lhe causou. Superado o incômodo, pediu-a em casamento assim que soube de sua recente viuvez. Tudo ia muito bem, até que a esposa o traiu, como já adivinhava o povo nas rodas de conversa.
O que fez Jó Joaquim? Expulsou a esposa, para recompor sua honra maculada. No entanto, o amor não arrefecia. Para remediar a situação, decidiu recontar o passado, afirmando aos quatro ventos que ela nunca teve amantes. Que tais afirmações não passavam de “embustes, falsas lérias escabrosas”. Feito caprichoso artífice, foi desfazendo o enredo, des-enredando, como quem desfaz o tecido “por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos”. Foi assim que “Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?” - indaga o autor.
Jó Joaquim, ao se dedicar a recontar, refazer, reconstruir, tecer novamente o passado, fez triunfar a única verdade que o permitiria viver seu grande amor e, por consequência, “o verdadeiro e me-lhor de sua útil vida”.
Hoje, Jó Joaquim talvez fosse acusado de disseminar “fake news”.
:: Celebridades espalharam 20% das notícias e informações falsas sobre covid na internet ::
Desinformação
Afinal, com quantas “antipesquisas” se constrói uma verdade conveniente? Com quantos “remendados testemunhos” e “conversinhas escudadas” erguemos nossas defesas contra as dores mais insuportáveis de nossas vidas?
Ocorre que, na atualidade, “fake news” ou desinformação - nomenclatura utilizada na Comissão Europeia - extrapolam, em muito, o âmbito do autoengano, das dores e sofrimentos individuais.
Na jurisprudência eleitoral, campo do direito em que o tema já vem sendo debatido há tempos, a categoria “fake news” é reservada para “o conteúdo manifestamente falso que é intencionalmente criado e divulgado para o fim de enganar e prejudicar terceiros, causar dano, ou para lucro”.
O termo “fake news” passou a ganhar dimensão global, sobretudo por ocasião do plebiscito do Brexit, da eleição de Donald Trump e das eleições de 2018 no Brasil, quando o tema passou a ocupar a agenda dos organismos internacionais, sendo exemplar, nesse sentido, a Declaração Conjunta da ONU, OEA, OSCE e ACHPR sobre Liberdade de Expressão, Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda.
Nesse documento, são elencados parâmetros e recomendações aos Estados, a fim de que a liberdade de expressão não sofra limitações indevidas, sob o pretexto de regular as “fake news”. Com essa preocupação, declara admissíveis, tão somente, aquelas restrições à liberdade de expressão que se mostrem adequadas, necessárias e proporcionais à finalidade de proteger um fim legitimamente estabelecido pelo direito internacional.
:: Assassinato de Floyd, infelizmente, não é uma exceção ::
No entanto, ainda que as preocupações com a liberdade de expressão sejam relevantes, não se pode ignorar a magnitude dos danos causados pela desinformação. Atribui-se à enxurrada global de “fakes news” novas e sofisticadas formas de fraudes eleitorais, direcionadas a públicos específicos a partir de estratégias de segmentação das populações em pólos binários inconciliáveis, tal como demonstram os documentários “Privacidade Hackeada” e “O Dilema das Redes”.
Anti-ciência
Além disso, notícias falsas também atuam como poderoso mecanismo de glorificação do ódio a grupos vulnerabilizados, cultivo das fórmulas anti-ciência, ataques às instituições democráticas e, no extremo, ruptura dos consensos que viabilizam a convivência em sociedades “bem ordenadas”, na concepção de John Rawls.
Os efeitos deletérios da desinformação, impulsionados pelos poderosos mecanismos inerentes ao mundo digital (algoritmos, disparos em massa em redes sociais, ausência de regulações), transformaram-na em poderosa arma das guerras híbridas, pela manipulação do debate público mediante controle de “nichos” de consumidores de notícias, sedentos por “verdades” instantâneas, acessíveis com poucos clicks, textos repletos de imagens, raciocínios simplificadores e manchetes curtas.
Saúde coletiva
A pandemia da Covid-19 recontextualizou as “fake news”, redirecionando a mira das baterias de desinformação para o ataque massivo à saúde coletiva, causando danos incomensuráveis ou de difícil mensuração, dada a gravidade dos resultados dessa prática no campo do direito sanitário.
Conteúdos falsos acerca do tratamento, prevenção, diagnóstico, transmissão, diretrizes sobre isolamento social ou mesmo sobre a própria existência da pandemia povoam a rede mundial de computadores e as redes sociais. Desde vídeos em que autoridades públicas difundem o uso da exposição à “claridade do equipamento de solda” até conteúdos sobre a utilização de esterco bovino para tratamento da Covid-19, tudo isso demonstra até que ponto da imaginação humana é pródiga na criação de narrativas dissociadas dos mais rudimentares parâmetros da ciência e da medicina baseada em evidências.
Pode até configurar crime
Diferentemente de Jó Joaquim que, com tijolos de “fake news”, ergueu seu muro de autoengano para suportar as dores da infidelidade da mulher amada, a depender das circunstâncias do caso concreto, a disseminação de “fake news” em matéria sanitária representa dano à coletividade e, portanto, pode até configurar crime, dentre os quais o gravíssimo crime de epidemia (art. 267 do Código Penal), cujas penas oscilam entre dez e trinta anos de prisão e que se define como “hediondo” pela lei brasileira.
De fato, a depender das circunstâncias, o compartilhamento de notícias falsas pode constituir uma, dentre as muitas formas de propagar criminosamente, germes patogênicos. Acrescente-se que a prática do crime de epidemia em ocasião de calamidade pública - como é o caso da pandemia da Covid-19 - é circunstância que agrava a pena (art. 61, II, “j” do Código Penal), além de sujeitar seus perpetradores à perda do cargo, no caso do crime ser praticado por agente público em violação de seus deveres funcionais (art. 61, II, “g” combinado com o artigo 92, I, “a’, todos do Código Penal).
Fontes confiáveis
É preciso destacar que os efeitos danosos da produção e compartilhamento de notícias falsas sobre a Covid-19 atingem com maior gravidade pessoas não habituadas a identificar fontes confiáveis ou acessar agências de checagem, tal como as pessoas idosas.
Por essas razões, antes de compartilhar por impulso conteúdos duvidosos, faça uma pausa e pense. No amor, criar e crer nas próprias “fake news” para se proteger do sofrimento pode até ser uma opção, como o foi para Jó Joaquim. Discutível, é verdade, mas uma escolha individual. Na pandemia, entretanto, essa opção não existe. Ao contrário, disseminar “fake news” sobre a Covid-19 sem checar a seriedade da fonte e a veracidade da informação, além de não ser “de bom tom” — como diz Keila Melman —, pode ser crime.
*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo