15 anos dos crimes

Mães de Maio denunciam Brasil à OEA por respostas sobre desaparecimentos forçados

Defensoria de São Paulo e a ONG Conectas também assinam petição enviada nesta quarta (12)

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Petição cobra a devida investigação sobre o desaparecimento de Paulo Alexandre Gomes. Diego Augusto Sant’Anna, Everton Pereira dos Santos e Ronaldo Procópio Alves durante os Crimes de Maio em 2006 - Foto: Olivia Soulaba/Mães de Maio

A Defensoria Pública de São Paulo, junto com o Movimento Mães de Maio e a Conectas Direitos Humanos apresentaram na quarta-feira (12) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) uma petição denunciando o Brasil pelos 15 anos do desaparecimento forçado de vítimas dos Crimes de Maio. Como ficou conhecida a chacina cujo saldo foi a morte de um total de 564 pessoas, com cerca de outra 100 feridas, além de ao menos quatro desaparecidas até hoje. 

Os chamados Crimes de Maio ocorreram durante revide das forças policiais a ataques praticados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Foram 10 dias seguidos de violência que ficaram marcados como o maior massacre da história recente do país. Em uma ação desproporcional, policiais e grupos de extermínio reagiram à morte de 59 agentes.

Ao final, 505 civis foram assassinados. Àquela época, no entanto, pouco se repercutiu as vozes abafadas das famílias que denunciavam o destino de seus entes, todos pobres, negros e periféricos, no mesmo período de 2006. O que, segundo a Defensoria, contribuiu para que essas denúncias ficassem ainda mais invisibilizadas. 

Diante do que descrevem como “descaso e negligência”, o órgão e as entidades da sociedade civil recorrem às instâncias internacionais para cobrar respostas do estado brasileiro sobre os desaparecimentos. 

Descaso do Estado brasileiro

“É urgente olhar para as violações de direitos humanos ocorridas em decorrência do desaparecimento forçado dessas pessoas. Não só por elas, mas também pelos familiares que sofrem de forma permanente com a ausência do ente querido, com a falta de um corpo para velar e concretizar o luto e também pelo descaso e negligência estatal em não investigar adequadamente os fatos, em não responsabilizar os envolvidos e não dar às famílias as respostas que buscam”, contesta a coordenadora auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, Letícia Avelar. 

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A petição foi divulgada durante evento na manhã de hoje que integra a campanha organizada pelas Mães de Maio para marcar os 15 anos da chacina que vitimou seus filhos. No seminário, a Defensoria Pública também lançou o Caderno de Direitos Humanos: Defesa de Vítimas de Desaparecimento de Pessoas. O documento reúne artigos apresentando a questão e os caminhos de abordagem do tema para o atendimento humanizado e de efetiva resolução. 

A avaliação do Núcleo de Cidadania é que, desde a ditadura civil-militar, os desaparecimentos forçados “são uma das vertentes silenciosas das atuações violentas praticadas por agentes da repressão estatal direcionada a pessoas negras, pobres e periféricas”.

Em 2017, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que os desaparecimentos são de fato comuns no país. O estudo, encomendado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, identificou que oito pessoas somem por hora.  “No caso dos meninos de Belford Roxo, o inquérito policial foi aberto, mas a investigação está parada. A Defensoria do Rio de Janeiro, que tem prestado assistência, afirma que existe uma grande demora no repasse de informações da Polícia Civil às famílias. O que as deixa no escuro sem qualquer explicação sobre o que tem sido feito”, relaciona Letícia Avelar. 

Os desaparecidos da democracia

Estudiosa do tema, a assistente social Francilene Gomes Fernandes, vivencia diariamente as diferentes dimensões dessa violência. Autora da tese de mestrado “Barbárie e Direitos Humanos: As Execuções Sumárias e Desaparecimentos Forçados em Maio de 2006 em São Paulo”, ela é também irmã de Paulo Alexandre Gomes, uma das quatro vítimas dos Crimes de Maio, desencontrada há 15 anos. 

Paulo Alexandre tinha 23 anos quando sumiu na noite de 16 de maio de 2006. A última vez que o irmão de Francilene foi visto, ele estava sendo levado de Itaquera, na zona leste de São Paulo, por policiais militares em um veículo da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Três dias antes, Ronaldo Procópio Alves, de 30 anos, também desapareceu após ser abordado por PMs em Parelheiros, no extremo sul da capital paulista. No dia 14 de maio, os jovens Diego Augusto Sant’Anna, de 15 anos, e Everton dos Santos Pereira, de 24, também não foram mais encontrados depois de serem levados por policiais em Guarulhos, na Grande São Paulo. 

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A família de Paulo Alexandre acredita que o jovem foi morto e teve o corpo ocultado pela polícia. A exemplo de como ocorreu com outras 38 vítimas, que foram enterrados pelos agentes sem identificação à época. “O mês de maio todo é doloroso. As lembranças são mais presentes até porque há 15 anos estamos sem nenhuma justiça e apartados de qualquer possibilidade de acesso à ela. Quatro jovens foram sequestrados por agentes da segurança pública, e a gente sequer teve acesso ao corpo. A Justiça de São Paulo não reconhece que esse crime é continuado e não prescreve”, lamenta a assistente social. 

O peso da impunidade

Por pressão das Mães de Maio e da Defensoria, em 2019, o caso do irmão de Francilene foi levado pela segunda vez a julgamento. Mas o TJ-SP invalidou a ação, alegando que o processo deveria ter sido ingressado antes de 2013. A fundadora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, analisa que a ausência de respostas por parte do Estado é o que também permite que massacres continuem ocorrendo pelo país, como o mais recente, em Jacarezinho, no Rio, na última quinta (6). 

“As mães de maio não estão aqui para romantizar essa luta porque essa luta sangra. A gente vai vendo o que aconteceu no Jacarezinho, a criminalização (dos moradores e mães), e vê a nossa história sendo contada outra vez. Nós vemos novamente os nossos filhos sendo tombados e criminalizados”, compara a mãe de Edson Rogério Silva dos Santos, outra vítima da violência estatal. Débora completa que, “as mães correm há 15 anos atrás de Justiça. Acreditando que um dia o Judiciário tire a venda e pare de nos matar com a canetada pedindo o arquivamento de crimes contra a vida”. 

Na petição encaminhada à OEA, as entidades solicitam o reconhecimento de que o Brasil violou a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. A Defensoria e as organizações também cobram a oferta de atendimento psicológico aos familiares das vítimas. O documento demanda ainda que cursos e outras medidas para capacitar juízes e promotores quanto ao tema do desaparecimento forçado sejam requisitadas. A petição destaca que, no caso do governo brasileiro não atender às recomendações da CIDH, as denúncias sejam remetidas à Corte Interamericana de Direitos Humanos. 

15 anos sem respostas

O coordenador do programa de Violência Institucional da Conectas, Gabriel Sampaio, explica que o documento “é inseparável de todo o fenômeno da violência institucional e sua representação do racismo estrutural”. De acordo com ele, o julgamento dos crimes de maio na OEA é importante para chamar a responsabilidade do Estado, que há quase duas décadas é omisso em esclarecer as execuções praticadas por policiais e grupos de extermínio. 

“É em decorrência dessa necropolítica que se escolhe os corpos para os quais o Estado dará atenção na procura de onde eles estão, na investigação. Mães e pais encontram respostas incompatíveis com o conjunto de direitos que deve reger a nossa sociedade. Informações são negadas. E o trabalho essencial de investigação é deixado de ser feito porque determinados agentes públicos se conformam com aquela resposta racista que pautou o início da nossa nação”, critica Sampaio. 

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Uma década e meia depois dos Crimes de Maio, as investigações ainda não foram concluídas. A petição de hoje marca ainda a terceira vez que a OEA é acionada para atuar no julgamento dos Crimes de Maio. Levantamento da Defensoria Pública indica que, em 2009, a Conectas e os familiares das vítimas recorreram ao órgão para denunciar o massacre. Seis anos depois, a Defensoria solicitou à CIDH o reconhecimento das violações. Em 2018, a entidade e o Ministério Público de São Paulo também foram signatários de um pedido de indenização por danos morais e coletivos. 

Também tramitam recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF) recorrendo das decisões em primeira e segunda instâncias que apontaram prescrição dos casos. Em 2016, após pedido da Conectas, a Procuradoria-Geral da República também apresentou ao STJ o pedido de federalização dos Crimes de Maio. O caso, no entanto, segue até hoje sem julgamento.