A sanção da Lei Áurea, que há exatos 133 anos aboliu oficialmente o trabalho escravo no Brasil, consolidou o 13 de Maio como uma data de protestos contra violências que atravessaram séculos e continuam vitimando a população negra.
Uma realidade que, por si só, coloca em xeque a narrativa registrada por muito tempo nos livros de história de que os males da escravidão teriam sido sanados no momento seguinte à assinatura de Princesa Isabel.
Matheus Gato, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), afirma que o 13 de Maio é uma data importante pelo simbolismo que adquiriu nas lutas sociais do Brasil e pelo processo social que fora interrompido, transformando o significado de pertencimento dos negros à nação brasileira.
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Mas, explica que, ao longo do século 20, a data engendrou uma série de disputas de imaginário sobre como realmente se deu o processo da abolição.
“Primeiro, tínhamos uma narrativa que enfatizava muito a importância do Estado, na qual a abolição aparece como uma dádiva e não como uma conquista de movimentos sociais, uma conquista popular. De uma certa maneira, o 13 de Maio fez parte dessa narrativa de que as conquistas do povo brasileiro, no fundo, foram concessões. Aí está a armadilha ideológica”, aponta Gato.
Enxergar o processo da Abolição como farsa, a partir da anulação do protagonismo das camadas populares, é uma tônica histórica do movimento negro, como defende Seimour Souza, ativista da Uneafro Brasil.
Segundo ele, o 13 de Maio representa uma abolição para a população branca que escravizava negros e negras, e que, após a assinatura da lei, não indenizou a população preta e permaneceu sem criar mecanismos de amparo e inclusão no mercado de trabalho aos ex-escravos e seus descendentes.
Por isso, é importante relembrar a data e suas consequências, mas em uma perspectiva completamente oposta à celebração ou reconhecimento à monarquia, regime então vigente no Brasil quando foi promulgada a lei abolicionista.
“O 13 de Maio é um dia de denúncia contra o Estado brasileiro que ainda é responsável pela condição de miserabilidade e vulnerabilidade que a população negra enfrenta. Não só hoje, mas ao longo da história. Tudo isso se dá por um tipo de abolição inconclusa, que deixou ao léu milhares de pessoas por todo Brasil”, afirma Seimour.
O ativista ressalta que a luta do povo negro pela abolição surgiu desde o primeiro momento que uma pessoa escravizada foi trazida da África, contra um regime que buscava manter o controle social dos corpos negros, sem qualquer benevolência:
“Nossa luta não começou ontem, não começa hoje. Nossos ancestrais um dia ousaram sonhar com a liberdade, e nós somos frutos desses sonhos. Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez, de uma gente que sonhou com um futuro diferente. Somos frutos de teóricos e militantes como Abdias Nascimento, Lélia Gonzáles, Guerreiro Ramos, que há muito tempo denunciam a farsa da abolição”.
Para Matheus Gato, apontar a abolição como um engodo, de forma critica, é interessante na medida que alerta para a existência e a persistência do racismo, a despeito do fim da escravidão. Ele pondera, entretanto, que há o risco de incorrer em uma visão simplificada dos processos sociais.
O pesquisador traça um paralelo com a Constituição de 1988, já que, embora até hoje muitos direitos previstos na Carta Magna não sejam de fato assegurados, a Constituição Cidadã não deixa de ser uma conquista da luta pela democracia.
Gato ainda cita a convocação da Coalizão Negra Por Direitos para manifestações em todo país nesta quinta-feira (13), pelo fim do racismo, do genocídio negro e das chacinas como um exemplo de ressignificação da data histórica, como um dia importante na consciência antirracista.
A mobilização exige justiça para as vítimas na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e de todas as operações policiais que resultaram em mortes nas favelas e comunidades do Brasil.
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Ainda que 1888 e 2021 sejam momentos históricos muito diferentes, o pesquisador sublinha que, ao olhar para ambos, a retirada de direitos da população negra é um dos principais pontos em comum.
“Era isso que estava em jogo com a abolição. E é isso que está em jogo com a luta contra a violência de Estado. A pergunta é essa. A população negra tem ou não tem direitos civis? Se existe algum tipo de permanência e continuidade que tenha paralelo, embora a linguagem seja diferente e o tempo e as questões sejam outras, é que a instabilidade e a insegurança dos direitos civis dos afrobrasileiros permanece como uma dura realidade”, diz Gato, organizador do livro Treze de Maio: e outras estórias do pós-Abolição.
A obra reúne, de forma inédita, contos de Raul Astolfo Marques, escritor e intelectual negro que viveu em São Luís do Maranhão durante a passagem do século 19 para o 20. Os textos retratam como as pessoas negras, em particular, enfrentaram as mudanças e transformações do pós-abolição, dando ênfase para importância do movimentos sociais e da resistência as novas dinâmicas de inclusão e exclusão que surgiram desde então.
“Heróis invisíveis”
Na opinião de Seimour Souza, da Uneafro Brasil, a historiografia oficial tentou apagar a resistência de expoentes do movimento negro não dando visibilidade para suas trajetórias. Ainda que a história de Zumbi dos Palmares e Dandara, por exemplos, tenham se tornado mais conhecidas nas últimas décadas, muitos lutadores como Zacimba Gaba, Tereza de Benguela e Luísa Mahin, entre outros, não recebem o devido reconhecimento.
Gato, por sua vez, endossa que a compreensão coletiva do que foi a abolição enquanto processo social, de mobilização civil, também é afetada por esse apagamento que atingiu “não só randes abolicionistas negros ou brancos, como Joaquim Nabuco, mas gente comum que aceitou esconder uma pessoa escravizada, fugida. As rotas de fuga, a formação dos quilombos. Essa agência popular, de modo geral, ficou apagada nesse processo”.
Ele afirma ainda que a mobilização dos extratos populares que lutaram pela liberdade do povo negro “mudou a estrutura de percepções no Brasil”.
“A Abolição não é só uma reforma política. Foi passar a pensar o mundo de uma forma completamente diferente do que era. Reorganizar a forma como classifica as pessoas. Mudam-se sentimentos e concepções.”
Luiz Gama, do jornalismo aos tribunais
Ainda que tenham tentado contar outra história sobre o processo da abolição e apagar o passado escravocrata, de acordo com Ligia Fonseca Ferreira, escritora e professora de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), nos últimos 30 anos se fortaleceu uma corrente historiográfica, acompanhada pelo atuação do movimento negro, que juntos batalham pelo reconhecimento das figuras que fizeram a história do Brasil.
Entre os abolistas que são referências está o chamado “quarteto negro” composto por André Rebouças, José do Patrocínio, Ferreira de Menezes e o pioneiro Luiz Gama, um dos mais proeminentes pensadores e ativistas do século 19.
Ferreira é especialista na obra de Gama, considerado o maior abolicionista do país. Nascido em 1830 na cidade de Salvador (BA), era filho de pai branco de origem portuguesa e Luiza Mahin, negra livre que participou de insurreições de escravizados.
Foi vendido como escravo aos 10 anos de idade e se alforriou apenas aos 17. Autodidata, aprendeu a ler e a escrever sozinho, e sem cursar a universidade, estudou Direito para advogar em defesa dos negros escravizados.
Respeitadíssimo pelos demais abolicionistas e o mais velho deles, era chamado por José do Patrocínio como "nosso general". Gama advogou pela libertação de mais de 500 escravos, sem cobrar honorários, sustentando-se como jornalista.
Em setembro do ano passado, Ferreira organizou e lançou Lições de Resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, livro publicado pela Edições Sesc, com objetivo de jogar luz à obra jornalística de Gama.
"Luiz Gama insere uma perspectiva negra em órgãos da imprensa de São Paulo de forma pioneira. Nos primeiros periódios ilustrados como Diabo Coxo e Cabrião, ao lado do cartunista italiano Angelo Agostini. E depois na imprensa abolicionista e republicana. Luiz Gama é uma presença constante nesses movimentos todos. Fazia da imprensa um lugar para expor suas ideias e mostrar para o povo brasileiro, nas palavras dele, "a maneira extravagante" como se administra a Justiça do Brasil”, comenta Ferreira.
Ela destaca que, à época, tanto o jornalismo como a Direito eram lugares de influência, de poder, onde era rara a presença de homens negros.
Para a publicação da obra, a especialista mergulhou em arquivos físicos e digitais para realizar um levantamento desde 1864, data na qual a primeira publicação de Gama foi localizada, que vai até 1882, ano em que o intelectual publicou seu último artigo 15 dias antes de morrer.
A docente da Unifesp ressalta a importância da obra por possibilitar que os leitores “leiam Luiz Gama e não sobre Luiz Gama”, conhecendo de fato a obra original e a dimensão da trajetória do abolicionista.
“A faceta do jornalista não pode ser esquecida. Não é lembrar a memória de um abolicionista, apenas, mas lembrar a dinâmica de um homem que tinha um público, que era ouvido. Escrevia para ser lido. Ele dispensava porta-vozes. Como costumo dizer, ele não só escrevia notícia, mas ele era notícia.”
A professora da Unifesp detalha que, também enquanto poeta, Gama marcou a literatura brasileira. Grande orador, defendia os direitos dos escravizados com a autorização de advogado provisionado, que o permitia exercer a profissão mesmo sem o bacharelado.
Nas matérias jornalísticas, não perdia a chance de denunciar a conivência de juízes para manutenção da propriedade escrava, dando publicidade às ideias abolicionistas com grande habilidade retórica e agudas análises político-jurídicas.
“Temos relatos e comprovação documental que Luiz Gama encarnou uma liderança, uma coisa improvável, rara, especialmente em meados do século 19, onde se acreditava na inferioridade racial e na incapacidade congênita dos negros, africanos e descendentes, de praticarem as artes e ciências. Luiz Gama então, nesse sentido, vai mostrar exatamente o contrário de tudo isso.”
A memória de Luiz Gama é celebrada pela imprensa negra do século 20 pelas associações negras e pela maçonaria, que garantiu que sei nome Gama batizasse ruas e avenidas pelo Brasil.
Se algum dia [...] os respeitáveis juízes do Brasil, esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica [...]
Luiz Gama, Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871
O anti-monarquista aguerrido morreu em 1882, anos antes de assistir seus dois grandes sonhos, para qual tanto contribuiu, tornarem-se realidade: a abolição e a Proclama da República, em 1889.
Mais de cem anos depois, Seimour Souza, militante do movimento negro, condena a continuidade de políticas de embranquecimento e de eugenia, a exemplo da violência policial.
"Somos submetidos historicamente a um cotidiano de violência, ao cárcere, à morte, a um verdadeiro genocídio e a perseguição de expressões religiosas de matriz africana. É a continuidade do extermínio. Uma tentativa de apagamento étnico e a despeito disso o movimento negro vem há anos denunciando essa grande farsa que é a democracia racial", finaliza o militante da Uneafro.
Edição: Vinícius Segalla