Grande maioria das trabalhadoras atua sem o fornecimento de máscaras, luvas e álcool em gel
Por Márcia Silva*
Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divino. (Machado de Assis - Bons Dias!)
Estamos atravessando um período de barbárie – marcado pela pandemia e por um governo violento, racista, cínico e perigoso. No cenário em que vivemos a equipe presidencial não está preocupada em incidir sobre planos governamentais ou medidas de enfrentamento à Covid-19, pelo contrário – o atual governo se alimenta do caos, do desespero, do medo.
Inflama contra a vacinação, o distanciamento social e qualquer medida que vá em benefício do povo, ataca a economia, incide na precarização do trabalho – politiza o vírus e nada de braçada em fake news.
Essas debilidades que nos atingem diariamente, escancaram as vísceras de uma sociedade brasileira capitalista medíocre, decadente e doentia, que vive o sonho (ilusório) de uma classe média americanizada, ressentida – que deixa no Brasil o contorno dramático de 420 mil mortes somada a 15 milhões de pessoas contaminadas, vítimas da covid-19 e de Jair Messias Bolsonaro.
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As performances dos setores bolsonaristas são corriqueiras. O número de mortos não os assusta, a defesa da vida não os comove, a ideologia individual do capitalismo liberal se instalou. Esses “cidadãos de bem” sustentam a narrativa inescrupulosa de que a covid-19 é ‘democrática’, atinge todas as faixas sociais, sem distinção.
Em um país desigual como o que vivemos, a população pobre e negra que se encontra nos rincões da nossa sociedade é a mais afetada, tanto na questão da saúde quanto na econômica – é a que mais morre, pois não tem condição de entrar no isolamento social.
Patrões insinuam que a trabalhadora doméstica tem mais chances de trazer o vírus para o trabalho, quando sabemos que parte da classe média e alta está viajando, realizando e frequentando festas “seguindo os protocolos de segurança”. Fato é: a trabalhadora doméstica continua significando uma série de vulnerabilidade e precarização.
A primeira vítima fatal da covid-19 no Rio de Janeiro, em março de 2020, foi uma empregada doméstica de 63 anos infectada pela patroa que tinha retornado da Itália. A patroa estava contaminada, mas não liberou a funcionária. Uma outra questão que coloca em voga os marcos da desvalorização do trabalho doméstico e da vida da população negra, é a morte de Miguel Otávio Santana da Silva de 5 anos, no Recife.
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Para a pesquisadora Lorrayne Santos a relação que temos com o serviço doméstico tem origem na escravidão. E, segundo a historiadora Luciana da Cruz Brito, esta característica torna este país supremacista branco. Vide o caso da patroa Sarí Corte Real ter matado uma criança, Miguel (filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata de Souza), abandonando-o no elevador.
Essa prática abusiva e desumana é sobre a herança da casa grande, sobre ter alguém a disposição o tempo todo, sobre o abismo entre a vida vivida por patrões e trabalhadoras domésticas no Brasil. Em reportagem divulgada pelo Correio Bahia em abril de 2021 é destacado casos de empregadas obrigadas a ficar na casa dos patrões “enquanto a pandemia durar”.
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Ou seja, práticas de trabalho análogo a escravidão, na qual as trabalhadoras são privadas de sua liberdade, vistas enquanto “ameaça”, pela exposição em transportes públicos e nos locais onde moram. Os patrões quando interpelados pela fiscalização, costumam repetir três frases: 1) "Ela era da família", 2) "Eu estava ajudando" e 3) "Não sabia que era uma situação de exploração".
Em relação as trabalhadoras domésticas há uma questão sutil que se fortaleceu na pandemia – o uso da aproximação afetiva entre as trabalhadoras domésticas e os seus patrões.
Apagamentos
Para o professor Cristiano Rodrigues da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ao dizer que a trabalhadora é quase da família, há um apagamento dessa distinção entre a atividade profissional e a afetividade social entre aquelas pessoas. Isso contribui ainda mais para a exploração de seus serviços, elas são tiradas do seu lugar de trabalhadora.
Outra questão pontuada é a utilização de eufemismos para referir-se a profissão – “secretária do lar”, ou “a moça que trabalha lá em casa”, há um apagamento de sua atividade profissional e até de seu próprio nome, o que contribui ainda mais para a exploração de seus serviços.
Sobre ser “como se fosse da família”, Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), diz: “Não somos e não queremos ser. Nós temos a nossa família. O que queremos é que nossos direitos sejam respeitados”.
No Sindicato de Empregadas Domésticas da Bahia há registros de muitos casos de trabalhadoras confinadas. A associação fala “em muitos casos” não descobertos, ofuscados pelo medo das trabalhadoras em denunciar seus patrões. Essas mulheres são, em sua maioria, negras – 92%, mostra o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) –, chefes de família e moradoras de periferias.
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O salário médio de uma empregada doméstica com carteira assinada, no Brasil, é de R$ 1,2 mil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Organizações que representam as domésticas apontam que 75% delas vivem na informalidade. Ou seja, sem direitos trabalhistas.
Vulnerabilidade
A pandemia nos deu a dimensão da situação de extrema vulnerabilidade que a categoria se encontra e dos seus desafios estruturais. Em 2020, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou um diagnóstico sobre a situação de vulnerabilidade e risco de contágio à covid-19 enfrentada pelas trabalhadoras domésticas no país.
De acordo com a pesquisa, 70% das profissionais não possuem Carteira de Trabalho assinada. A falta de fiscalização e condições precárias de trabalho representam os principais fatores que expõem as profissionais no atual contexto da pandemia.
As trabalhadoras domésticas representam atualmente cerca de 6 milhões de mulheres no Brasil, o que corresponde a quase 15% das trabalhadoras ocupadas (10% das brancas e 18,6% das negras). Na avaliação da advogada e pesquisadora do Ipea, Carolina Tokarski, uma das autoras do estudo, a situação de risco atinge uma grande parcela das trabalhadoras no Brasil.
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“A grande maioria trabalha sem o fornecimento de máscaras, luvas e álcool em gel. É uma condição de risco na rotina de trabalho considerando a crise sanitária, em que não há fiscalização dos órgãos competentes”, observa a pesquisadora.
Para Milca Martins, diretora da Federação Nacional das Empregadas Domésticas, “a pandemia remete a situações que remetem à escravidão em uma modalidade diferente”. “Nem sempre elas percebem isso”, lamenta.
Mulheres negras
Fica evidente que a maioria das pessoas inseridas no trabalho doméstico são de mulheres negras. Como já disse Preta Rara, fazer parte desta categoria não é demérito, mas não pode ser a única opção para estas pessoas. Falamos de uma atividade marcada por uma exploração hierárquica.
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É necessário que essas ocupações que existem somente para garantir o conforto da classe média, deixem de existir e caso existam que essas trabalhadoras sejam incluídas da forma mais respeitosa e justa, usufruindo de todos os direitos.
Cabe a nós lutarmos junto de tal categoria neste período e nos que virão, em prol do salário-mínimo, benefício do seguro-desemprego, a garantia do acesso à saúde, o fomento a formalização do trabalho doméstico, a promoção e a ampliação dos regimes contributivos a todas as trabalhadoras domésticas.
Sem trabalho digno, não há país, não há esperança, não há futuro.
*Márcia Silva é professora no Distrito Federal, militante do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e da Consulta Popular.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo