Neles três vemos a negação de vários estigmas sobre o que se crê do nordeste até os dias de hoje
Por Emilly Firmino*
Em sua 21ª edição, na noite da última terça-feira (4) chegou ao fim mais um capítulo do Big Brother Brasil. Em um contexto político, social, econômico e sanitário diferenciado das edições anteriores, o BBB 21 iniciou sob a autoproclamação de ser “O Big dos Bigs” e, fazendo jus às expectativas, quebrou recordes de audiência; mexeu com ânimos de brasileiros; gerou mobilizações na internet. E, ainda que sob uma perspectiva liberal, enfrentou debates como racismo, lgbtfobia e machismo.
Entre as tantas abordagens e reflexões que poderiam ser feitas sobre os fenômenos desta edição, aqui vamos nos deter a duas delas: a representatividade do nordeste e o que isso tem a ver com os impactos dos anos 2003 a 2015 para a região.
Através de Gilberto, Juliette e Lumena, podemos dizer que, via a exaltação de elementos da cultura nordestina, o BBB 21 foi capaz de quebrar estereótipos ao apresentar a diversidade do Nordeste com indivíduos distintos, mas também, nas trajetórias desses três participantes, trouxe a possibilidade de refletir as consequências de inúmeras políticas públicas que a região vivenciou entre os anos 2003 e 2015.
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Assim, em um campo de resistência, são pessoas que vivenciaram as mudanças que ocorreram na região ao longo dos governos Lula e Dilma, do Partido dos Trabalhadores (PT). Trajetórias que não podem ficar restritas à mera meritocracia, porque, além de esforços individuais, são sinais nítidos de que é possível um Brasil que dá certo quando há investimentos em políticas públicas que priorizam as melhores condições de vida do povo.
Vinda de uma família humilde, Juliette nasceu em Campina Grande (PB), cursou Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e antes de entrar no BBB 21 dividiu seu tempo entre trabalhar como maquiadora e estudar para concursos públicos, seu sonho é (ou talvez, era) ser delegada e dar melhores condições de vida para sua mãe e irmãos.
Gilberto nasceu em Jaboatão (PE), vindo de uma família religiosa, chegou a ser missionário e mórmon, raiz religiosa que deixou diversas marcas e conflitos para alguém que teve que se compreender e se assumir gay numa sociedade LGBTfóbica. Gil estudou em escolas públicas durante toda sua vida e, mesmo com dificuldades, não desistiu e seguiu a carreira acadêmica. Se formou em economia e, enquanto participava do reality, foi aprovado em dois programas de PhD nos Estados Unidos.
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Já Lumena, nasceu em Salvador (BA), é DJ, formada em psicologia e mestre. Diferente de Gil e Juliette, teve uma base familiar privilegiada, com acesso a boas escolas, curso de inglês e outros espaços restritos a uma pequena parcela do povo brasileiro. Ainda assim, enquanto mulher, negra, nordestina e lésbica, ter melhores condições fincanceiras não a privou de vivenciar as opressões do racismo, machismo, lesbofobia e xenofobia.
Neles três vemos a negação de vários estigmas sobre o que, por desinformação e/ou falta de interesse, se crê do nordeste até os dias de hoje: “uma região atrasada”, “aculturada”, “pobre”, que “vive sob a miséria”, “fome” e “restrição de conhecimento”.
De fato, o povo nordestino já passou por muitos maus bocados, recentemente, o livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, foi certeiro em resgatar e resumir parte dessa história. Mas, ainda que sob condições adversas e também com muita luta, os nordestinos foram muito bons em sobreviver e superar essa realidade.
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Além da resistência, políticas pública pautadas pelos movimentos populares durante os governo PT, como o Bolsa Família, Universidade Para Todos, Minha casa Minha Vida, Luz para Todos, Pronatec e o incentivo a novos postos de trabalho e implementação de cisternas no interior, também foram portas para que o nordeste caminhasse em uma conjuntura muito mais favorável para seu crescimento.
Com isso, vemos neles também o embate à crença e a forma que o governo Bolsonaro e seus aliados acreditam que é correta para conduzir o Brasil, estes três indivíduos cumprem características que em tese só os colocariam um destino: a margem.
Enquanto Paulo Guedes, que é um retrato de parcela da burguesia brasileira, usa sua tesoura para fazer cortes em políticas públicas, critica o FIES e mostra descontentamento pelo filho de seu porteiro estar na universidade. Entre os anos de 2003 e 2014 foram criadas 18 novas universidades federais e 173 campus universitários no Brasil, processo que possibilitou a interiorização das universidades públicas, através da criação de pólos em zonas rurais e afastadas das capitais, e que também permitiu quase que a duplicação do número de brasileiros no ensino superior.
Como retrato do fruto desses anos, não foram poucos os momentos de diálogo dentro do reality em que foi afirmada a necessidade e o papel desses investimentos, em umas de suas primeiras entrevistas após ser eliminado, Gilberto mais uma vez defendeu que “a educação é a única forma que o brasileiro pobre tem de tentar mudar de vida”, e que ela deve vir acompanhada do nivelamento de direitos em um país de desigualdades.
Por fim, além de um convite a olhar o nordeste sob uma nova ótica, é preciso refletir também sobre a importância do cuidado com a cultura, com o compromisso e necessidade contínua em valorizar tradições que foram marginalizadas e desprezadas ao longo da história.
A simbologia do cacto, do chapéu de couro e da cantoria das músicas que marcam parte da história do nordeste deve ultrapassar o estereótipo xenófobo, que também foi presente tanto no programa quanto nas redes sociais ao longo dessa edição e que vem estigmatizando a região por séculos.
O nordeste é grande, é diversidade e resistência, um lugar do tamanho de uma nação de maracatus, cocos, frevos, congadas, quadrilhas, caroços, axés, reisados, folias e caboclinhos. Entre dores, brincadeiras e trejeitos, se cresce e, na luta para subverter o atual governo genocida, representado por Jair Bolsonaro, crescerá mais ainda.
*Emilly Firmino é jornalista, mestranda no Programa de Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (UNESP) e militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo