Isso talvez seja uma coisa feminina. Porque a gente é sempre muito estimulada a dizer o que sente
Está em cartaz nas plataformas de streaming o documentário Outubro, dirigido pela escritora e atriz Maria Ribeiro.
O filme acompanha a rotina de Ribeiro na semana que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República. A partir de depoimentos de pessoas próximas e análises de conjuntura de nomes como Maria Rita Khel, se desenha uma pequena parte do caos em que o Brasil viveria nos dois anos seguintes.
Com tom pessoal, Ribeiro entrelaça sua vida, o fim de seu casamento, com a eleição de Bolsonaro. “No dia do “Ele Não” [ato de mulheres contra a eleição de Bolsonaro, que aconteceu em diversas cidades do país, nas semanas que antecederam o pleito de 2018] comecei a pensar: ‘gente, Bolsonaro não, nunca, de jeito nenhum. Eduardo Cunha, não. Aqueles homens que votaram pelo impeachment da Dilma, falando da mulher, da avó, da tia, não. Para quem eu quero dizer sim?’”, questiona.
Além da psicanalista Maria Rita Khel, o documentário conta com depoimentos do escritor Xico Sá, do poeta Sérgio Vaz, do filósofo Marcos Nobre, da atriz Martha Nowill, entre outros.
“Foi um filme que não sabia muito o que estava fazendo. Pensei que se não ficasse bom, tudo bem. Pelo menos eu vou ter sobrevivido a uma semana muito difícil. A gente foi pra rua, teve aquela história do vira-voto. E eu faço uma crítica, uma autocrítica: porque a gente tem que estar aberto para conversar o tempo inteiro”, explica Ribeiro.
Outubro se integra à uma série de registros documentais realizados nos últimos anos, que dão conta das agruras políticas do Brasil, desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff – classificado por alguns analistas como o marco de um processo de derrocada da democracia.
Se somam a obra, Democracia em Vertigem, da diretora Petra Costa, e o recém lançado, Alvorada, de Lô Politi e Anna Muylaert, que fez sua estreia no festival É Tudo Verdade. Ambos os documentários narram os últimos dias da presidenta Dilma na presidência.
“Isso talvez seja uma coisa feminina. Porque a gente é sempre muito estimulada a dizer o que sente, o que incomoda. A gente é autorizada a sentir. Muito mais do que os homens, culturalmente. E esse cinema que une a política com esse sentir, talvez seja mais fácil, embora a gente tenha documentários políticos brasileiros”.
Confira alguns trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Em Outubro, você conta que as manifestações feministas do “Ele Não” foram decisivas para a construção do filme. Como elas te influenciaram?
Maria Ribeiro: Quando aconteceram os movimentos do “Ele Não”, eu me lembro que fui chamada bem no começo. A Antônia Pelegrino fez um vídeo e convocou três mulheres, e eu estava entre as três. E eu fiquei muito mobilizada porque de cara percebi, que era um movimento que não tinha só a ver com a eleição do Bolsonaro.
Temos que tentar trazer todo mundo para o lado de cá e deixar barato quem se arrependeu
Era contra o Eduardo Cunha, era contra o machismo daquele 17 de abril, da votação do impeachment da Dilma [Rousseff]. Raramente a gente está dentro da história e se dá conta do que aquilo significa. A tendência é entender as coisas retrospectivamente.
Mas o “Ele Não” eu pensei, “caramba, isso é muito sério”. Tem muito a ver com a quarta onda feminista, mas também é um encontro das mulheres com a política. Porque tem muita gente se incomodando: “ah, agora todo mundo, de dois anos para cá, passou a falar sobre política”. Como se isso fosse uma coisa ruim. Eu acho que é ótimo.
Temos que tentar trazer todo mundo para o lado de cá e deixar barato quem se arrependeu. E achar bom que as pessoas comecem a falar. Estamos aprendendo, é tudo muito novo. A democracia brasileira é recente.
Eu estava em Portugal no dia do “Ele Não” e eu fiquei muito triste de não estar no Brasil. Só que em Lisboa. E mesmo em Lisboa, o movimento foi muito forte e foi muito bonito. A gente foi para a Praça Camões e tinham muitos brasileiros, portugueses, muitas mulheres, muitos homens e tinha criança também. Foi uma coisa muito alegre, em um momento muito sombrio, que a gente estava com a perspectiva do Bolsonaro ganhar. E dentro daquela tristeza, você via que tinha um movimento muito importante.
Aí comecei a viajar no dia do “Ele Não”: “gente, Bolsonaro não, nunca, de jeito nenhum. Eduardo Cunha, não. Aqueles homens que votaram pelo impeachment da Dilma, falando da mulher, da avó, da tia, não. Para quem eu quero dizer sim?”
E fiz esse paralelo com um casamento, com vestido de noiva e entrei nessa viagem. Pensei em fazer um filme misturando o “Ele Não”, com a minha separação. Mas não era uma coisa clara na minha cabeça. Chegando perto da eleição do Bolsonaro, me deu um desespero: “se eu não fizer alguma coisa, se eu não transformar esse meu desespero, eu não vou conseguir dormir”.
Foi um filme que não sabia muito o que estava fazendo. Pensei que se não ficasse bom, tudo bem. Pelo menos eu vou ter sobrevivido a uma semana muito difícil. Fomos pra rua, teve aquela história do vira-voto. E eu faço uma crítica, uma autocrítica: porque nós temos que estar abertos para conversar o tempo inteiro.
A história de todo mundo é muito importante. Não importa qual seja ela.
Como disse o Sérgio Vaz no filme, um poeta paulistano, um cara que é muito importante para mim, uma das grandes vozes do Brasil, um cara muito lúcido: a gente tem que juntar. Não dá pra buscar a periferia, ou o diferente e querer escutar as pessoas na hora do desespero. Você tem que querer escutar o tempo inteiro.
Além de Outubro, temos outros dois documentários recentes que tratam sobre a crise política brasileira, Democracia em Vertigem e Alvorada. Todos dirigidos por mulheres e, em dois casos, com diretoras que se colocam como personagens da história.
Eu acompanho o trabalho da Petra [Costa] há um tempo. Já tinha visto os filmes anteriores dela: o Olmo e a Gaivota e Elena, eu adoro. E adoro o Democracia em Vertigem, acho que é um filme importantíssimo. E gosto bastante também dessa coragem dela, de dizer de onde ela vem e dela também trazer para o pessoal. Acho que isso esquenta.
Porque, de um modo geral, documentário não é uma coisa que faz sucesso. Eu sou louca por documentário, mas eu vejo que não é popular. Dificilmente você vai ver no sábado à noite, depois da novela, um documentário.
Acho que, de alguma forma, quando a gente sai só do discurso e você vê o autor ali atrás, eu acho que a conversa fica mais quente e você consegue, inclusive politicamente, ir mais longe, porque você tem menos barreiras: “ah, isso aqui é um discurso de esquerda, é alguém tentando me enfiar uma coisa goela abaixo”. Não, é uma pessoa contando a sua história. E a história de todo mundo é muito importante. Não importa qual seja ela. É a única história que cada um tem para contar.
Isso talvez seja uma coisa feminina. Porque nós somos sempre muito estimuladas, ainda na coisa da construção, do machismo, do feminismo, a dizer o que sente, o que incomoda. Somos autorizadas a sentir. Muito mais do que os homens, culturalmente.
Então acho que, talvez, esse cinema que una a política com esse sentir, talvez seja mais fácil, embora há documentários políticos brasileiros. Mas realmente, tanto o [Eduardo] Coutinho, com o Cabra Marcado para Morrer, o Entreatos, do João Salles, são filmes onde você não vê tanto o Coutinho no filme, o João no filme. O filme da Petra, você vê a Petra no filme, no meu filme, você me vê no filme.
Dilma ser durona, é maravilhoso, porque é oposto do que se espera de uma mulher
O filme da Lô Politi e da Anna Muylaert, que acabou de estrear no É Tudo Verdade, eu achei um documento importantíssimo. O Alvorada tem tudo a ver com o Outubro. Eu brinco que Alvorada poderia ser abril. Porque, se a gente não tivesse tido aquele abril, não teria tido outubro. Então nós temos junho de 2013, abril de 2016 e outubro de 2018. Nós estamos até hoje vivendo as consequências disso tudo.
Eu saí do filme apaixonada pela Dilma. E eu não tendo a ser aquela que idolatra a Dilma, o Lula, o Haddad. Eu tento ter uma relação menos hierárquica. Acho que é, de certa forma, triste que a gente precise de líderes que nos deixem cegos. A Eliane Brum, que eu adoro, falava assim: “eu estou louca para o Lula ser solto, para eu voltar a falar mal dele”. Porque ele sofreu uma injustiça tão grande, que ali é realmente o momento de botar a camiseta e falar “nunca errou”.
Mas eu adoro no Alvorada, o fato da Dilma ser essa pessoa com menos carisma que eu conheço. Eu fiquei apaixonada, que maravilha, como isso diz muito da nossa maturidade – e da falta de maturidade, tanto que ela não ficou – mas você ter um líder que não seja carismático é maravilhoso.
Porque isso não tem a ver com você saber governar o país, ou não. Tem gente que nasceu para isso, tem uma super lábia e também sabe governar, como eu particularmente acho que é o caso do Lula. Mas a coisa da Dilma ser durona, é maravilhoso, porque é oposto do que se espera de uma mulher. E isso é tão feminista. Eu fiquei louca com aquela brava, queria ficar melhor amiga.
Em certo momento do filme, você diz que “não dá”, para manter laços afetivos com pessoas que estavam pensando em votar no Bolsonaro. Você rompeu muitos laços desde então, por conta dessa polarização que se criou?
Muito louco isso que aconteceu com o Brasil. Ao mesmo tempo, talvez, o Bolsonaro tenha mais a ver com o Brasil do que nós gostaríamos que ele tivesse.
Até que ponto os meus grupos de Whatsapp, eles são com a galera que eu conheço, pra ficarmos se auto amando e se auto lacrando?
Eu venho de uma elite do Rio de Janeiro, os meus pais eram super burgueses, eu não tive uma formação política. Eu nunca pensei sobre luta de classes. Aí eu me caso com Paulo Betti, com 21 anos, e aí tomo uma faculdade de luta de classes, de marxismo, de esquerda e direita.
Quando chega 2018 e vemos o Brasil tão dividido...Quando eu fui filmar na [Avenida] Paulista, vestida de noiva, eu quase apanhei algumas vezes. Foi muito duro, é muito triste...inclusive de mulheres. Eu não estava fazendo nada, estava simplesmente em uma coisa performática.
Mas existe um ódio muito grande, e esse ódio talvez venha de uma falta de comunicação nossa e aí, no caso, minha. Fico pensando: até que ponto eu entro em um Uber, ou no táxi, e converso pra valer com o motorista? Até que ponto os meus grupos de Whatsapp, eles são com a galera que eu conheço, pra ficarmos se auto amando e se auto lacrando? Ou eu procuro me comunicar com pessoas que são muito diferentes de mim e que eu posso realmente ter alguma escuta?
Eu tendo a olhar para um eleitor do Bolsonaro e falar: “meu Deus do céu, vou contar até 10 para conversar com essa pessoa”. Eu já fico irritada, já tenho esse preconceito. Acho que é uma pessoa que não está nem aí para o outro, que não tem noção das desigualdades do Brasil, mas pode ser que não. E certamente não.
Edição: Marina Duarte de Souza