Com uma taxa recorde de desemprego de 14,4%, o Brasil vive um período de políticas que fazem retroceder conquistas trabalhistas históricas. O alto grau de precarização atinge até mesmo quem conseguiu se manter no setor formal, segundo o professor e cientista social Marco Aurélio Santana, que coordena o Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade (NETS-UFRJ) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ).
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Na entrevista a seguir, o professor afirma, contudo, que o 1º de maio, Dia Internacional do Trabalhador e da Trabalhadora, deve sempre ser lembrado e comemorado porque, diante do desmonte da categoria nos últimos anos, a data traz a dimensão da presença da classe trabalhadora e de suas lutas.
"No front ideológico, as ideias de 'trabalho' e 'trabalhador/a', que sempre remeteram a coletivos e formação de classe, têm sido estrategicamente retiradas do horizonte de sentido diariamente, substituídas por termos individualizantes que não remetem a qualquer conflito tais como 'empreender' e 'empreendedor/a'. Por isso a data do 1º de Maio é importante", afirma Santana.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: O 1º de maio é historicamente dedicado, no mundo todo, à celebração das lutas da classe trabalhadora. Diante do quadro que vivemos no país em termos laborais, há o que comemorar?
Marco Aurélio Santana: É uma data importantíssima e que ao longo de sua trajetória tem acompanhado as mais diversas conjunturas atravessadas pela classe trabalhadora nos diferentes momentos do desenvolvimento do capitalismo.
Diria, recuperando a ideia de que é uma data de luto e luta, que, por um lado, pouco temos a comemorar.
O Brasil experimenta por conta de um conjunto de políticas regressivas, só para ficarmos na experiência recente, um cenário de devastação de direitos conquistados pela classe trabalhadora, o que produz um quadro dramático em termos de desproteção social.
Isso se agrava com a fragilização, também resultado dessas políticas, dos sindicatos e das formas de representação que tradicionalmente canalizavam a conflitividade social, impondo limites ao processo de exploração.
Qual é a parcela de responsabilidade do neoliberalismo do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente Jair Bolsonaro?
O neoliberalismo acabou com qualquer visão fantasiosa de promessa integradora no mundo do trabalho. Em meio às taxas estratosféricas de desemprego, ele amplia cada vez mais a informalidade, e precariza crescentemente aqueles que conseguem se manter no setor formal.
Além disso, ele tenta aniquilar todas as formas possíveis de resistência, concreta e simbolicamente. O atual governo extinguiu o Ministério do Trabalho, subalternizando o trabalho enquanto questão.
Na mesma linha, no front ideológico, as ideias de “trabalho” e “trabalhador/a”, que sempre remeteram a coletivos e formação de classe, têm sido estrategicamente retiradas do horizonte de sentido diariamente, substituídas por termos individualizantes que não remetem a qualquer conflito tais como “empreender” e “empreendedor/a”. Por isso a data do 1º de maio é importante.
A memória faz parte da luta. Historicamente, comemorar o 1º de Maio traz constantemente, entre outras, essa dimensão da presença da classe trabalhadora e de suas lutas.
No mundo atual, em que o capital busca incessantemente retirar o trabalho e suas forças sociais de cena, é um ato importante esse retorno à classe trabalhadora, como um retorno de trabalhadores e trabalhadoras que afirmam sua condição e seus projetos de sociedade.
Estamos em um dos governos que menos protegeu o trabalhador e a trabalhadora. E o mundo tem a economia afetada por uma pandemia. Qual é a parcela do Bolsonaro e a parcela da covid-19 no atual contexto de direitos trabalhistas?
É muito evidente, de qualquer forma que se olhe, que o governo Bolsonaro foi fator central na devastação que a pandemia vem causando em nosso país. Na verdade, o vírus encontrou um campo social muito favorável no Brasil seja por conta de sermos um país historicamente com uma desigualdade social absurda.
Seja pela intensificação, desde 2016, de políticas regressivas em termos sociais e laborais, que produziram como resultado um mercado de trabalho marcado pelo desemprego e pela informalidade, com generalização de precarização e intermitência.
Sem proteção social, o quadro obviamente foi agravado. Se produziu um ambiente mais do que favorável para o avanço destrutivo do vírus.
A visão ilusória de que na pandemia “estamos todos no mesmo barco” e de que ela é “democrática” em seus impactos foi desmascarada rapidamente quando todos os números passaram a mostrar que a sua tragédia tem classe, raça, gênero e etnia. São os vulnerabilizados socialmente os mais atingidos.
O governo federal relançou o programa de redução de jornada, corte de salários, suspensão de contratos e de pagamento do FGTS. O que isso significa em termos de direitos conquistados pelo trabalhador no Brasil?
O governo, ainda que fale em “proteção ao emprego”, se preocupou mais com a proteção das empresas do que com a da classe trabalhadora. Mesmo as pequenas empresas, que mais empregam, foram marginalizadas em termos de proteção.
Para a classe trabalhadora, no geral, sobrou para alguns setores aceitar a suspensão de contratos e as reduções de jornada e salários, para outros terem de ir para a rua buscar seu sustento correndo o risco da contaminação e da morte, para outros ainda depender do auxílio emergencial, que o governo sequer ia dar e que reedita agora em valores ultrajantes. Nada sobre taxar as grandes fortunas, que aliás cresceram durante a pandemia.
O pagamento da crise social e sanitária caiu, como sempre, nas costas calejadas da classe trabalhadora.
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) compilou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e mostrou que 600 mil trabalhadoras domésticas deixaram de contribuir com a Previdência em 2020. Qual é a causa e que impacto isso gera?
Na pandemia, vários setores da classe trabalhadora foram duramente atingidos. As trabalhadoras domésticas estão em segundo no topo desta lista, abaixo apenas de trabalhadores de alojamento e alimentação. Principalmente por conta do desemprego e da redução de renda de setores os mais variados que contratavam esse trabalho, ele sofreu impacto duríssimo.
Estamos falando de uma categoria com cerca de 6 milhões de pessoas, com cerca de 95% de mulheres, sendo cerca de 70% destas composto por mulheres negras. Na verdade, esse é o segundo impacto.
Após anos de luta que culminaram na aprovação da chamada PEC das domésticas, que trouxe reconhecimento e direitos para essas trabalhadoras, pouco tempo depois, a contrarreforma trabalhista de Michel Temer (MDB) já lhes havia sido bastante adversa.
A pandemia agravou ainda mais a sua situação. As pesquisas de Alexandre Fraga e Thays Monticelli, da UFRJ, mostram que a contribuição previdenciária dessas trabalhadoras, tanto com carteira quanto as diaristas, cresce bem e se estabiliza após a PEC. No caso das diaristas, a contribuição despenca no pós-golpe de 2016. Segundo a PNAD contínua do IBGE, de janeiro de 2021, 1,5 milhão de postos foram perdidos neste setor entre setembro e novembro de 2020.
Como contribuir se você não recebe e quando qualquer recurso que entra você precisa usar na manutenção imediata e de sua família?
A questão, para o grande grupo de mulheres nesta categoria, é que após longo tempo de desemprego, perdem um conjunto de direitos, agravando muito a sua situação.
O que leva o Rio de Janeiro a ter a maior taxa de maior desemprego entre os estados da Região Sudeste e ser o quarto estado com mais desemprego no Brasil?
O Rio de Janeiro, de forma geral, acompanha o cenário sombrio que estamos vivendo. Contudo, é preciso lembrar que o Rio tem suas especificidades e vem atravessando já um longo período de crises econômicas e políticas pelo menos desde 2014 e que foram intensificadas com o golpe de 2016.
Uma sequência longa de governos predadores e desastrosos cujos resultados nefastos recaíram sobre a classe trabalhadora do estado.
No geral, a associação de fatores como, entre outros, recessão econômica, encolhimento da economia do petróleo e queda drástica na arrecadação compuseram um quadro difícil. O estado permanece em condições muito ruins com dívida elevada com a União, a desmontagem de um lado e arrestamento de possibilidades de investimento do outro.
O Regime de Recuperação Fiscal (RRF) impõe limitação e obrigações severas. Têm sido anos muito difíceis no que diz respeito ao emprego no estado.
Além disso, com a pandemia, os setores ligados, por exemplo, ao turismo, alojamento e alimentação, foram praticamente fechados em longos períodos e mesmo quando abertos o fizeram com capacidade bastante limitada.
Assim, a pandemia agrava o já longo período de crises o que afeta sobremaneira o mercado de trabalho, com efeitos deletérios sobre o emprego e a renda da classe trabalhadora. E, ao que se vê, não dá sinais de recuperação à vista.
Como tem sido a resistência a todo esse quadro no mundo do trabalho brasileiro?
A emergência sanitária vai encontrar as entidades sindicais ainda bastante impactadas pelas mudanças da regulação trabalhista efetivada na conjuntura anterior, principalmente em termos de sustentação financeira. Neste contexto, novas complexidades em termos organizativos e mobilizatórios se apresentaram aumentando os desafios postos aos sindicatos e suas lideranças.
Eles tiveram trabalho importante, e que deve ser aqui realçado, onde foi possível, por exemplo, no sentido da negociação dos processos de suspensão parcial ou integral dos contratos de trabalho, e/ou garantindo, sempre que a correlação de forças permitiu, que o rolo compressor e a devastação não fossem totais. Se pode imaginar o que ocorreu em setores sem ou de baixa representação sindical.
Além dessa importante ação institucional dos sindicatos, a resistência também passou pela ação coletiva de setores precários da classe trabalhadora. As greves de entregadores e entregadoras ou o #brequedosapps, de julho de 2020, agitaram a cena pública com sua mobilização que tomou conta de várias capitais do Brasil.
Eles/as se situaram na ponta mais aguda da luta contra a precarização do trabalho e da vida no país, em um quadro de desproteção social instituído.
Foram, sem sombra de dúvida, um ponto luminoso da resistência da classe trabalhadora no Brasil da pandemia, abrindo, em termos de sua organização e mobilização, possibilidades e experimentações políticas importantes.
Edição: Mariana Pitasse