A pandemia da covid-19 deu novos contornos ao debate sobre as patentes e o monopólio das grandes indústrias farmacêuticas no mundo.
O título de propriedade exclusiva outorgado às empresas desenvolvedoras de medicamentos e vacinas em alguns países representa, hoje, grande parte do problema do pouco acesso às vacinas contra o coronavírus – ainda que não seja o único.
Patentes
O sistema de patentes foi criado na década de 1990 na Organização Mundial do Comércio (OMC), com o desenvolvimento de tecnologias médicas. As leis de patentes são estabelecidas por cada país que aderiu ao acordo sobre os Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (ADPIC).
Um dos principais argumentos para o período de 20 anos de direito de propriedade intelectual estabelecido no acordo é o incentivo aos desenvolvedores, uma vez que seria, automaticamente, um incentivo à inovação no campo da saúde.
"Em apenas um ano, as companhias farmacêuticas estadounidenses já cobrem todo o custo de produção. Os 19 anos seguintes são lucros exorbitantes", afirma Lorena Di Giano, advogada e coordenadora da Rede Latino-Americana de Acesso a Medicamentos (RedLAM) na Argentina.
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No sistema econômico global regido pelas grandes indústrias, não há laboratório que não solicite patentes. Entendendo esse cenário, é importante saber diferenciar os perfis. Di Giano sugere, por exemplo, que deixemos de usar o termo "laboratório" de maneira geral, pois o termo ativa um imaginário social que humaniza as "companhias farmacêuticas".
"Dizer 'laboratório' faz pensar em um cientista buscando a fórmula para uma cura, quando, na verdade, são empresas com acionistas e fundos especulativos de investimento, como Black Rock e Paul Singer, cuja única pretensão é obter lucro, e a essa altura já podemos dizer: em detrimento da saúde", afirma.
Por outro lado, há os laboratórios menores ou financiados por fundos públicos, como o Instituto Gamaleya, desenvolvedor da Sputnik V.
Há também o exemplo de Cuba, que desenvolve sua própria vacina, a Soberana. "É uma pequena ilha, bloqueada por todos os lados, que priorizou a saúde e investiu em desenvolvimento de tecnologia fazendo uso da soberania sanitária", pontua Di Giano.
Sputnik V
Enquanto o Brasil bloqueia a entrada da Sputnik V no país, a Argentina firmou um contrato com a Rússia para fabricar a vacina.
A partir deste acordo com o laboratório argentino Richmond, a Argentina produziu 21 mil doses da Sputnik V, atualmente em fase de controle de qualidade pelo Instituto Gamaleya.
A expectativa é que, com a validação russa, a fabricação argentina da Sputnik V seria distribuída a partir de junho no país latino-americano.
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Por outro lado, nos Estados Unidos as vacinas sobram: foram compradas 70 milhões de doses a mais que sua população. Além disso, o governo estadunidense impediu que laboratórios do país forneçam vacinas para fora.
Se não se interessam pelo aspecto da justiça social, que vejam pelo menos pelo lado econômico: se em vários países começam a surgir novas cepas, a pandemia continua.
(Sol Terlizzi)
A proporção de distribuição já representa 80% das vacinas do mundo concentrada nos países ricos, enquanto 130 países não receberam nenhuma dose.
Nesse ritmo, apenas em 2023 boa parte desses países excluídos começariam a vacinar suas populações – tempo suficiente para a imunização dos países ricos.
Em um contexto de pandemia, esse cenário impulsionou o lema das campanhas mundiais pelo acesso justo às vacinas: "Ninguém está salvo até que todos estejam salvos".
"Se não se interessam pelo aspecto da justiça social, que vejam pelo menos pelo lado econômico: se em vários países começam a surgir novas cepas, a pandemia continua", afirma Sol Terlizzi, filósofa e especialista em propriedade intelectual e bioética.
A resposta global mais imediata tem sido o fechamento de fronteiras. Diante da explosão de casos das novas variantes no Brasil, diversos países passaram a restringir a entrada de brasileiros, enquanto focam na vacinação de sua população.
Alternativas possíveis
Integrada por instituições como a Anistia Internacional e o Médicos Sem Fronteiras, a campanha em pedido de liberação das patentes engloba questões que vão além da propriedade intelectual, já que não é uma solução que viria sozinha.
Nem todos os países possuem laboratórios e capacidade de produção como, por exemplo o Brasil e a Argentina – que, com vontade política para fazer acordos com os desenvolvedores, poderiam abastecer a toda a região, segundo análises compartilhadas na RedLAM.
A experiência do México também é ilustrativa: em um convênio com a Argentina, ambos os países latino-americanos têm a licença para fabricar e distribuir a AstraZeneca, porém, os princípios ativos enviados da Argentina continuam parados no território mexicano por falta de abastecimento material de frascos para o envase. O plano previa 250 milhões de doses para a região.
"Ou se é proprietário ou consumidor, e na verdade, a questão é encontrar o balanço em dar incentivos ao criador e emitir o acesso público a essa tecnologia", pontua Terlizzi.
"No caso da covid-19, as empresas não podem estipular um valor muito alto, porque, como são muitas, há uma grande concorrência no mercado", afirma.
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Quando as patentes são concedidas, há dois tipos de licenças que podem ser outorgadas. Uma é a licença para a fabricação e produção de vacinas que os países desenvolvedores abrem para que outros explorem por um período determinado.
O outro tipo de licença é a obrigatória ou compulsória, evitada a todo custo pelas empresas e que costumam ter custos políticos, já que autoriza o uso público e não comercial do produto com a suspensão temporária das patentes. Houve exemplos em diversos países desse tipo de licença para atender a emergência sanitária do HIV.
Outra alternativa é enrijecer os controles sobre os requisitos de patentes, por exemplo, o que delimita a inovação de um medicamento ou vacina, para que os estados não concedam patentes demais.
"Esta é uma super ferramenta, porque permite homogeneizar a análise e que as patentes concedidas sejam de qualidade", observa Terlizzi.
A respeito da campanha pela liberação das patentes, a especialista destaca que o foco da mobilização global deve estar na questão de fundo.
"Devemos buscar ferramentas para exigir que os lucros sejam deixados de lado, pelo menos por um tempo. Por exemplo, dar força à Covax, uma iniciativa muito boa, mas que, ao distribuir vacinas a preço de custo, as farmacêuticas não têm interesse em colaborar. É um 'salve-se quem puder', mas a questão é global", diz, frisando que, ainda que um país vacine toda sua população, que os outros estejam expostos e contabilizando mortes, o problema persiste para todos.
Edição: Leandro Melito