Minas Gerais

REPARAÇÃO

Integrantes de religiões de matriz africana cobram revitalização do Rio Paraopeba

Rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, impactou rituais de reinados,  terreiros de Umbanda e Candomblé

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
"Os rituais do Congado com a Nossa Senhora do Rosário, que antes eram realizados nas margens do rio, hoje não acontecem mais" - Foto: Mídia NINJA

Não é novidade que o rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão, em Brumadinho, além das 272 vítimas fatais, deixou milhares de atingidos ao longo da bacia do Rio Paraopeba. E os impactos são diversos e, por vezes, incontáveis: vão desde a agricultura, pesca, pecuária, até práticas culturais e religiosas. Somente em Mateus Leme, Betim, Igarapé, Juatuba, Mário Campos e São Joaquim de Bicas são 31 unidades tradicionais territoriais que tiveram seus rituais e cosmologia afetados pelo crime da mineradora.

Dessas unidades, 5 Reinados, 11 Terreiros de Umbanda, 2 Candomblés Nação Jeje, 1 Candomblé Nação Angola Muxikongo, 5 Candomblés Nação Angola, 2 Omolocô, e 5 Candomblés Nação Ketu estão sendo acompanhadas pela Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), que é uma assessoria técnica independente. Uma reparação justa para os Povos e Comunidades Tradicionais de Religião Ancestral de Matriz Africana, segundo Mametu ria Nkise Dandalumuenu Kiamaza, envolve necessariamente revitalizar e conservar o Rio Paraopeba.

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“Falaram que não é possível, que nunca mais ele vai ser o que era antes. Mas a gente tem esperança que seja feito um trabalho de restruturação pela Vale, que é quem causou todo esse dano”, reivindica a Mãe de Santo do Terreiro de Candomblé Nação Angola Nzo Nguku Kukia.

Foi um assassinato! A água, para nós, é o início de todos os rituais, o que a gente mais necessita é dessa água

O Terreiro, que fica localizado em Azurita, distrito de Mateus Leme, dependia da água do rio para vários rituais. Mametu ria Nkise Dandalumuenu Kiamaza, conta que os integrantes do Terreiro iam com frequência para a beira do rio – a mais ou menos 10 quilômetros – fazer oferendas, limpeza, energização e cultuar divindades, as quais têm relação forte com as forças da natureza. Com a contaminação do rio, pela lama tóxica que vazou no rompimento da barragem, muitos Filhos de Santos, principalmente os mais velhos, têm adoecido e passado por sofrimentos mentais.

Assassinato do rio, das práticas culturais e religiosas

“Foi um assassinato! A água, para nós, é o início de todos os rituais, o que a gente mais necessita é dessa água, ainda mais a água do Paraopeba que nos fornecia todos os elementos, todos os materiais naturais que nós precisamos nos nossos rituais. Até a natureza que o cerca, as folhas... É muito traumático pra todos nós”, relata. Hoje, devido à pandemia, o Terreiro suspendeu as sessões abertas, mas continua mobilizando ações de solidariedade, com arrecadação de cestas básicas e roupas para contribuir com a comunidade.

Em Betim, Rodrigo Cosme Barbosa, que é Capitão de Reinado da Guarda de Congo de Santo Expedito e zelador da Casa de Santo Pai José de Angola, também relata as mudanças causadas pela contaminação do rio. “No Terreiro, a gente fazia lavagem de cabeça no Rio Paraopeba. A gente pegava daquela água para fazer banho de descarrego. A gente se purificava através daquela água. Como a água está contaminada, a gente está tendo que deslocar para um local mais longe, tendo um custo maior de transporte”, aponta. Os rituais do Congado com a Nossa Senhora do Rosário, que antes eram realizados nas margens do rio, hoje não acontecem mais.

Os danos sofridos pelos povos e comunidades tradicionais vão além do âmbito material e afetam os modos de vida e tradição espiritual. Segundo a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo decreto 6.040, de 2007, povos e comunidades tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

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Reparação

A relação sagrada com os diferentes elementos da natureza faz parte da cosmologia dos povos e comunidades tradicionais de religião de matriz africana, o que aponta para a particularidade dos impactos do rompimento da barragem da Vale.

Segundo informações da Aedas, a proteção garantida a esses povos e comunidades tem respaldo em diversas leis relacionadas à violação do território, à violação dos direitos culturais, à garantia do livre exercício dos cultos religiosos, à preservação dos costumes e práticas para a manutenção de seus locais sagrados e suas comunidades.

Documento da Aedas que sistematiza medidas emergenciais, lançado em janeiro deste ano – chamado de Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais – aborda que aos povos tradicionais devem ser garantidas condições para a retomada, continuidade e manutenção das práticas culturais, religiosas e rituais das comunidades.

No processo de construção das medidas, os Povos e Comunidades Tradicionais de Religião Ancestral de Matriz Africana apontaram caminhos para reconhecimento da sua cosmologia, valorização dos conhecimentos e preservações dos saberes e modos de vida, também transmitidos pela oralidade.

Reinados, Terreiros de Umbanda, Candomblés e Omolocô estão entre as comunidades tradicionais atingidas

Maria Helena Villachan, coordenadora da Aedas, explica que, agora, a assessoria está em processo de mobilização para os registros individuais e coletivos elaborados com as lideranças das unidades tradicionais territoriais, o que envolve também um mapeamento dos integrantes dessas unidades. Esses registros complementam o levantamento de danos diferenciados, já começados na elaboração das medidas emergenciais.

“A gente traz a dimensão do religioso compreendendo que essa população, os povos tradicionais, foi atingida em função do exercício de sua religiosidade que está relacionada ao território. Então, não foram atingidos, necessariamente, a partir do lugar de moradia ou onde trabalha”, aponta Maria Villachan.

Edição: Elis Almeida