Coluna

A dialética da ação: vozes juntas na luta antirracista

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Escutem a voz da liberdade que fala no coração de todos nós

Por Euzamara de Carvalho* e Marilia Lomanto Veloso**

 

Uma das maiores sonegações do racismo é o confisco da palavra [...]. O abafamento das vozes negras em última instância tem garantido a naturalização do terror racial, vendido o extermínio como necessidade e projetado o genocídio como consenso blindado a qualquer questionamento consequente. (Ana Flauzina e Felipe Freitas, Discursos Negros)

 

Juristas “quase sempre” se alimentam de disputas teóricas e da construção de paradigmas com os quais estimulam pautas em torno do Direito na sua mais fiel tradução: instrumentalizar as classes dominantes para manter a vitalidade do modo de produção capitalista.

A Academia é o sítio ideal para fermentar essa ebulição de proposições e preparar sujeitos “brancos” para “governar” o mundo. Nessa perspectiva, abrem-se trincheiras para estruturas e superestruturas de racionalidade de precisão cirúrgica, identificadas por um aparato organizado de Estado: o sistema de justiça, autoritário, excludente, monolítico, pleno de “colonialismo ideológico”, que funciona como uma “agência burocratizada, aliada do poder e de realização de acordos e pactos na política de interesses”.

Esse sistema de justiça “contramajoritário e, por natureza, garantista”, sem contrapartida nas prerrogativas (Jose Genoino, I Ciclo de Formação ABJD), empoderado pelo Constituinte, tenta consolidar um desenho no imaginário do “planeta jurídico” conformado com sua função “instrumental, política e simbólica”.

Não obstante essa intencionalidade, seus protagonistas principais – Poder Judiciário e Ministério Público – se ressignificam no campo das contradições sociais e se afirmam como “possibilidades de esperança dilacerada” (Vilma Reis, I Ciclo de Formação ABJD), adiando a exigência de que passem a “redefinir seus espaços de atuação e forjar uma identidade funcional mais precisa” (José Eduardo Faria. https://www.scielo.br/scielo).

A Constituição Federal de 1988, “fruto e produto de lutas e de acordos”, marcada pela participação popular, se constitui um espaço de disputas que fomenta alianças entre os corpos vulneráveis e organizados na resistência. Com isso, amplia o surgir de pontes que provocam a interlocução entre uma pluralidade e diversidade de sujeitos coletivos, amalgamados por um projeto de sociedade inclusiva, justa e comprometida com a efetivação de pautas construídas pelas forças populares.

A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) comparece nessa “miragem” de consolidar um potencial de hipóteses de pensar novas formas de atuação de um sistema jurídico realmente compromissado com princípios democráticos e realizadores do direito.

Nesse sentido, a Secretaria de Assuntos Acadêmicos da ABJD retoma processos de encontros de reflexão e de formulação coletiva sobre as pautas conjunturais e o sistema de justiça, com objetivo de contribuir com estratégias que se façam necessárias e contínuas para o fortalecimento das lutas dos grupos sociais construtores da democracia.

De modo igual, amplia sua atuação, ao não lutar para a defesa de um Estado de Democrático Direito abstrato. Ao contrário disso, opta por um modelo plural e em constante recriação pelos sujeitos de lutas, arquitetos sociais de direitos.

Defender os princípios democráticos de um Estado de direito é reconhecer o ambiente de desigualdades que permeia sua confirmação e fazer o enfrentamento para superação das formas históricas de dominação racial, de gênero, de território, de saberes.

O que seduz é a remoção dessas disparidades potencializadas pelo sistema de justiça na sua configuração de ser e agir conforme seu lugar de poder e de privilégio de alguns. Nesse contexto, um sistema penal de forte matriz seletiva e racializada parece agarrar todas as instâncias do “mundo jurídico”.

Enxergar esse universo de contrastes historicamente violento exige um olhar e um sentir do “compromisso militante”, enquanto “ruptura moral com a ideia de se adaptar ao mundo como ele é, que não aceita a exploração/opressão/domínio”, (Valério Arcady, I Ciclo de Formação ABJD).

Alinhado ao propósito de pertença com a luta antirracista, o primeiro encontro do Ciclo de Debates da Secretaria de Assuntos Acadêmicos da ABJD debateu o "Racismo estrutural e o Sistema de Justiça”, abrindo a tela Mística com o canto combatente de Emicida com Gilberto Gil, “É tudo pra ontem”.

A denúncia no verso “Eu sei, caramba, nem estrelas são iguais”, para além da descrença no discurso igualitário, escancara a banalização do morrer anunciado no horizonte de violência de “quem mora em tapume”, para quem a “Morte é quando a tragédia vira um costume”.

A fala de Abertura por Vera Lúcia Santana Araújo, da Secretaria de Diversidades da ABJD, foi de plena concretude de “viver na carne” a experiência racial.

Com narrativas de elevado folego teórico e na militância do povo negro, participaram os professores Tatiana Gomes, da UFBA, e Jadir Brito, da UFRJ, cabendo o lugar de fala final à “força/sabedoria” política e ancestral da Yalorixá Dulce Lino.

Tatiana Dias, uma representação da consciência negra que dignifica o lugar que ocupa no campo teórico e nos fóruns de debate sobre o racismo, pontuou o domínio do mito da democracia racial na academia, o racismo como poder e conhecimento, que “atinge o todo da vida das pessoas negras” e “a branquitude que mata, sempre no atacado”. Objeto do racismo, desse modo, “é uma certa forma de existir que não se encaixou na forma de existir dos brancos”.

Na concepção de Jadir Brito, também revelando oxigênio teórico de especial profundidade, o racismo estrutural é categoria de análise, mas não é conceito. Trata-se de um campo de análise com inúmeras abordagens.

Brito destacou o papel do direito e do sistema de justiça na reprodução das desigualdades, a sintonia fina entre o sistema criminal e a eugenia pura, ressaltando a importância de debater o racismo, especialmente, no contexto do sistema de justiça.

As narrativas sobre o tema evidenciaram o superior coeficiente de produção e de conhecimento acumulado por uma geração negra, jovem, inquieta, rebelde e apta a desafiar a construção social de raça pelo racismo científico, a farsa no discurso do “paraíso racial brasileiro, isento de preconceitos”, a afirmação de que “o negro não era igual ao branco”, defendida pelo médico Luiz Pereira Barreto, positivista, em 1860. (Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda Negra Medo Branco).

Esse pensar branco sobre o corpo negro é histórico na agenda cultural, política e no imaginário popular, na construção do ideal branco e na memória da sociedade contemporânea.

A área jurídica, nesse sentido, se comporta de modo caricato quando afronta princípios constitucionais de igualdade no cotidiano de suas relações com as pautas da racialidade.

A advogada Angela Borges Kimbangu expõe essa “úlcera” na categoria, sem disfarces retóricos: “Quando você é preto no mundo e vira advogado, é como se parte da sociedade não quisesse que você estivesse em um lugar que sempre foi majoritariamente branco".

De fato, segundo dados da pesquisa do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), de 2019, é apenas de 1% o percentual dos advogados negros de grandes escritórios. Isso precisa ser modificado.

Não foi o critério de generosidade ou de pacto com a armadilha dos “discursos” contra o racismo, e, contraditoriamente, das “práticas” racistas que vitalizou esse debate.

A busca de espaços dialógicos para a discussão temática que vem se impondo em razão dos episódios de inegável manutenção da crucial afronta à igualdade racial, como garantia de iguais oportunidades ao povo negro, atraiu a escolha por incluir uma “Agenda Negra” no epicentro de uma organização que se propõe a debater a defesa do Estado Democrático de Direito. À evidência do conteúdo “identitário” do tema, ressalta a ousadia do enfrentamento proposto por “vozes brancas”.

Juliana Gonçalves, jornalista, ativista antirracista e uma das organizadoras da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo aponta que “há espaços que são tão embranquecidos e tão segregados que os negros nem chegam para ter voz”, desse modo, “ter aliados brancos, pessoas brancas conscientes de seus privilégios é essencial”. Com isso, confirma a ABJD a atitude política de colocar também nos espaços de falas, vozes pautando nos diversos campos da militância, o apoio à luta dos movimentos onde falam vozes negras.

Valerio Arcady, em referência ao compromisso ideológico da militância pelos que se foram, pelos que estão vivos, ressalta a Chama Utópica da militância pelos que virão. Alerta que o socialista nunca perde a esperança na humanidade, esperança que é a prova mais antiga de nossa humanidade.

Essa Chama Utópica se fez acesa no desafio de tramar espaços de “escrevivências”, contribuir com o “recontar” histórias das vidas negras a partir das narrativas construídas por vozes que trazem essas histórias nos seus corpos e na memória de sua ancestralidade e que signifiquem o direito de se reconhecerem como sujeitos históricos de sua liberdade para serem negros e negras, humanos e humanizados.

Que chegue o tempo em que possamos cantar, em coro uníssono, a frase que marca a Revolução Haitiana:

Escutem a voz da liberdade que fala no coração de todos nós.

 

*Euzamara de Carvalho, Membro do Coletivo de Direitos Humanos da Via Campesina Brasil. Pesquisadora do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos - PPGIDH/UFG, Pesquisadora Associada do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais – IPDMS e Integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

**Marilia Lomanto Veloso é advogada, Mestra e Doutora em Direito Penal PUC-SP, Professora aposentada da UEFS, Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, Membro do CDH da OAB-BA, da AATR, da RENAP e da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Poliana Dallabrida