Lavagem do ouro

Como o ouro ilegal do garimpo se torna legal? A palavra basta

Garimpeiros mentem e empresas forjam documentação para declarar o ouro como retirado em outro território

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Ouro bruto encontrado através do garimpo - Henrique Silveira

Mais de 20 toneladas de ouro ilegal foram retiradas de solo brasileiro em 2018, segundo estimativa da Agência Nacional de Mineração (ANM) - são quase 3 bilhões de reais não declarados.

O garimpo ilegal no Brasil acontece principalmente na região Norte do país, em áreas de fronteira e muitas vezes dentro de territórios indígenas e de preservação ambiental. 

A garimpagem hoje se dá de duas formas: a que funciona dentro da lei, com base nas diretrizes da Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), e a clandestina. A exploração mineral no estado de Roraima é efetuada 100% dentro da ilegalidade.

“Um grama de ouro está valendo pouco mais de R$ 300 e, por causa da valorização deste minério, nos últimos meses a procura nas terras indígenas aumentou muito”, afirma Ivo Cípio Aureliano, indígena Macuxi, e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

Aureliano explica que muitas vezes o ouro é vendido pelos garimpeiros aos pequenos compradores em Boa Vista, capital de Roraima. “Em muitos casos o dono do maquinário que está no garimpo vende diretamente aos compradores que ficam fora do estado”.

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E aí que a lavagem do ouro começa. Quando o garimpeiro vai fazer a venda do minério, ele precisa apresentar uma documentação que identifique de onde aquele ouro foi extraído. Tanto para o garimpeiro, quanto para o comprador, é mais vantajoso mentir, já que não há fiscalização.

O Banco Central autoriza apenas Distribuidoras de Valores e Bancos a fazerem a primeira aquisição do ouro bruto em regiões garimpeiras.

Mas, na prática, a coisa acontece de outra forma. Este ouro então é recolhido, refinado e inserido no circuito legal como se houvesse sido encontrado em terras que possuem a lavra garimpeira.  

A lavra garimpeira é um regime de extração de substâncias minerais com aproveitamento imediato do jazimento mineral que, por sua natureza, sobretudo seu pequeno volume e distribuição irregular do bem mineral, não justificam, muitas vezes, investimento em trabalhos de pesquisa, tornando-se, assim, a lavra garimpeira a mais indicada.

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São considerados como minerais garimpáveis o ouro, diamante, cassiterita, columbita, tantalita, volframita, nas formas aluvionar, eluvional e coluvial, scheelita, demais gemas, rutilo, quartzo, berilo, moscovita, espodumênio, lepidolita, feldspato e mica.

A fraude no sistema foi descoberta pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Polícia Federal (PF), que identificaram diversas empresas que compravam ouro sem documentação e que forjavam legalidade com papeladas falsas. 

“O processo é bem fácil, basta mentir e as empresas já dão os papéis pra gente assinar. Eles não pedem detalhes de nada porque só querem comprar - e nós queremos vender”, conta um garimpeiro que não quis se identificar. 

A extração ilegal do ouro contamina a água, o solo e até o ar nos territórios invadidos pelos garimpeiros. A prática gera problemas sanitários, ambientais e culturais em terras indígenas.

Quem enriquece com o garimpo? 

“O garimpeiro é apenas o trabalhador que está sendo explorado, eles ficam em condições insalubres, colocando a vida em risco, muitas vezes contraem doenças como malária e acabam morrendo. Então quem ganha são os donos dos maquinários, ou seja, o empresário que financia. O garimpeiro fica apenas com uma porcentagem”, explica Ivo Cípio Aureliano. 

Ainda de acordo com o assessor do CIR. “Os garimpeiros trabalham com maquinários que eles não conseguem comprar, então há alguém por trás que financia. Eles trabalham em equipe, têm informantes, olhares e pessoas que avisam quando tem operação [de fiscalização]”, acrescenta.

Há muitos conflitos nessas regiões. “Sempre há rivalidade e disputa por pontos, praticamente toda semana tem morte, tiroteio e outros tipos de violências. Sempre brigam entre eles, principalmente em razão do consumo de bebidas alcóolicas e drogas nos pontos de garimpo”, ilustra Aureliano.

Segundo relatos de garimpeiros de Roraima, a média mensal de um trabalhador do garimpo é de R$ 6 mil. 

O dia a dia no garimpo


Garimpeiro ajusta a iluminação para começar mais um dia de trabalho em Cachoeira do Piriá (PA) / João Paulo Guimarães / Jornalistas Livres

O garimpo ilegal do ouro acontece principalmente nas periferias da região Norte, onde a fiscalização é ainda mais escassa. Nesses espaços não há luxo ou glamour. Boa parte dos garimpeiros enfrentam rotinas análogas à escravidão. 

Cachoeira do Piriá, município do estado do Pará com apenas 25 anos de existência, é forjado na exploração garimpeira do ouro. A cidade é toda moldada de acordo com as demandas do garimpo. 

Lá a exploração é urbana, então se dá de uma forma diferente de Roraima, por exemplo. A atividade ilegal é praticada por jovens, adultos e idosos.

Minas são abertas e aprofundadas todos os dias. O repórter fotográfico João Paulo Guimarães, do Jornalistas Livres, esteve na região acompanhando a rotina da garimpagem em um poço de 32 metros de profundidade. 

O trabalho é feito em dupla, um desce na galeria para trazer os dejetos e outro realiza a extração de ouro - já que é preciso saber manusear o mercúrio. Segundo o fotojornalistas, os garimpeiros costumam trabalhar armados. 

"Pra descer não existe segurança. Um cabo de aço te desce com você sentado em couro de pneu. Não há segunda corda. Se cair, caiu", lembra o fotojornalista.


Poço de 32 metros utilizado para descer até a galeria de garimpo em Cachoeira do Piriá (PA) / João Paulo Guimarães / Jornalistas Livres

Dentro das galerias o cheiro é de pólvora e lama. "O ambiente é frio porque a água na terra fica pingando na gente, mas a gente transpira demais. Tudo fica muito tenso com a estrutura frágil que segura a terra ao redor. A madeira que eles usam para segurar as paredes e o teto não traz confiança nenhuma", explica Guimarães. 

"Os fios elétricos usados para levar luz lá pra baixo podem causar um curto circuito e eletrocutar também. Um dos rapazes que recolhe a terra me disse pra não ficar pegando na parede onde as lâmpadas ficam encostadas. De cima vem um tubo que leva ventilação para eles não se sufocarem na medida que a galeria vai aumentando", explica. 

Dias antes do fotojornalista chegar na região, um rapaz "se explodiu" em uma galeria por uma ligação errada da fiação e um outro jovem faleceu após ser atingido por um balde de pedras na cabeça. 

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Questionado sobre as condições de vida desses trabalhadores, ele classificou como "miséria pura".

"Não existe indício de luxo ou uma educação requintada. É muita pobreza na cidade. Quem enriquece são os donos do garimpo que comandam a política dentro da cidade. Vereadores, ex-prefeitos e delegados. A crise do país com essa gestão genocida só ajuda o trabalhador de garimpo a ficar mais dependente da prática", conta. 

"Antes de descer no poço tive que esperar pelo outro dia porque na hora que cheguei, uma banana tinha acabado de explodir lá embaixo. Imagina viver assim? Insegurança, miséria, doença e mesmo assim não haver opção de ganhar o sustento com outra atividade? Quem lucra com a atividade é um fantasma para essa gente", explica Guimarães.

"Nem a cidade se beneficia com o ouro. Ruas esburacadas e sem iluminação noturna, Cachoeira do Piriá é uma cidade por onde você apenas passa. Sem atrativos.

O município nasceu exatamente da prática da mineração e extração do ouro. Quando acabar o minério não fica ninguém. Só um buraco a céu aberto cheio de mercúrio com a vegetação, rios e animais doentes", desabafa o documentarista.

Cachoeira do Piriá tem o nono pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, 0,473. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a renda na cidade não chega a R$ 250 por mês.  

Parlamentares e o garimpo ilegal

Em outubro de 2020 a Polícia Federal apreendeu na casa do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) uma pedra que suspeita ser uma pepita de ouro durante uma operação sobre supostos desvios na Saúde. Na mesma ocasião, o senador foi flagrado com R$ 33 mil na cueca.

“Ele nega envolvimento [com a invasão e exploração clandestina], mas esteve no garimpo ilegal na Raposa Serra do Sol e fez um discurso favorável dizendo que era ‘um trabalho fabuloso’ e que precisa ser regularizado”, relembra o assessor do CIR. 

Procurado pelo Brasil de Fato, o senador Chico Rodrigues não se pronunciou sobre o caso.

“Acreditamos que a investigação da Polícia Federal irá trazer à tona quem são os financiadores e quais os parlamentares envolvidos. Acreditamos que de alguma forma certos parlamentares têm envolvimento. Há relatos de políticos envolvidos, mas é difícil identificar porque são informações que não temos muitos detalhes”, avalia Aureliano. 

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“Com o discurso favorável do governo federal e parlamentares locais, a atividade de garimpo aumentou nas terras indígenas e isso pode gerar conflito. O garimpo só leva destruição, doenças e outros tipos de violência para as comunidades”, finaliza.

O papel das mineradoras no garimpo ilegal

As mineradoras que estão no Brasil hoje tem como foco de venda o mercado externo. Mas o Conselho Indígena de Roraima (CIR) acredita que algumas mineradoras podem estar por trás das atividades de extração ilegal. 

“Existem muitas mineradoras que fizeram requerimento de pesquisa e lavra mineral em terras indígenas, mesmo não havendo nenhuma lei que permita isso; ou seja, é ilegal. Mas insistem em fazer porque elas têm a expectativa de regularização”, pontua o assessor jurídico.

Desta forma, o incentivo e financiamento da garimpagem ilegal ajudaria as mineradoras a ter acesso ao mineral sem tanto controle. 

Escoamento do ouro por outros países 

Fruto da falta de fiscalização adequada, as regiões de fronteira ficam à mercê dos invasores ilegais. 

"Você tem um descontrole total do Estado Brasileiro sobre essas áreas de fronteira. É muito fácil atravessar para outro país e vender ouro ilegal, sem precisar de nenhum tipo de comprovação de que é um ouro extraído de um local que tem lavra, que tem todo esse processo de legalização”, ilustra Francisco Kelvim, coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) sobre a realidade vivia hoje na região das fronteiras. 

Edição: Douglas Matos