Duas décadas e meia depois, o Massacre do Carajás continua divergindo do seu tempo e do esquecimento
Em maio de 2020 morreu, de covid-19, Paulo Sette Câmara, o todo poderoso chefe da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará, que se foi sem nunca ter enfrentado, na justiça, a acusação sobre a sua decisão que culminou com o 'Massacre de Eldorado do Carajás', em abril de 1996.
Assim como a biografia política de Câmara, a vida pública do governador da época, Almir Gabriel, ruiu cada ano após o massacre. Este último, para ter “paz”, foi morar em Bertioga, no litoral de São Paulo; e morreu por lá.
Na década anterior, Hélio Gueiros, outro governador do Pará tornou-se o responsável direto pelo massacre da ponte Rodoferroviária sobre o rio Tocantins, em Marabá, ao esbravejar contra a mobilização de garimpeiros que buscavam melhoras em Serra Pelada. Era o 29 de dezembro, dia litúrgico de São Bonifácio, em 1987.
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Naquela data, morreram a tiros da Polícia Militar ou jogados da ponte, camponeses que haviam se transformados em garimpeiros e novamente se transformariam nos sem- terras assassinados em 1996.
A ponte havia sido inaugurada um ano antes, em 1986 com o início das atividades de exportação de manganês do Projeto Grande Carajás. O número de mortos não se sabe até hoje.
Em 2018 a polícia militar do Pará completou seu bicentenário e a sociedade paraense não tem nada a comemorar. É dela a força motriz da violência que sufoca os despossuídos.
E a elite da corporação continua alheia a esta trama que, seguidamente por razões políticas, resulta em mortes coletivas, criada em 1818, pouco antes da carnificina que se transformou a repressão à cabanagem 1833 -1838, cujo resultado foi 43 mil mortos aproximadamente.
A "cabanagem", foi o que o historiador conservador da época Domingos Antônio Rayol denominou de “ rastilho de pólvora sobre a relva ressequida”. Nela, a violência utilizada na perseguição aos cabanos ´se exemplifica nos dias de hoje, como o Massacre de Pau D´arco, onde 11 policiais assassinam camponeses como obrigação de oficio na ocupação da Fazenda Santa Lúcia em maio de 2017, é o perfil que caracteriza o “monopólio da violência” dos que a sofrem sem ter a quem reclamar e a dos que praticam sem ter a quem dá satisfação.
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Paulo Sette Câmara, foi sócio fundador da empresa de segurança “Sacramenta”, que nasce do "acordo de cavalheiros" da ditadura militar com parte dos ganhos da elite política de Belém, que sofria da "demência" de achar que o Pará é Belém e Belém é o Pará, quando a ditadura decidiu "espacializar" as atividades da empresa de mineração Companhia Vale do Rio Doce-CVRD para o sudeste paraense, à época município de Marabá, hoje de Parauapebas.
A empresa de segurança sofreu mutações, virou negócio de muitos negócios e foi até recentemente o braço armado dessa espacialização, prendendo, matando e espancando aquelas pessoas avultas que, por ventura, entravam na área destinada a Companhia Mineral. Hoje as empresas de segurança são outras, mas a violência é a mesma.
A CVRD, atualmente VALE. SA, até hoje não explicou publicamente por que financiou o transporte que levou as duas tropas que encurralaram os manifestantes da curva do “S” em 17 de abril de 1996 do lado de Marabá e Parauapebas saindo de quarteis locais.
Pelo que se sabe, por motivações locais e nacionais desde que o MST passou a ocupar, cinco meses antes, em 5 de novembro de 1995 no município, a Fazenda Macaxeira, um latifúndio por extensão e símbolo da oligarquia dos “Castanhais”, a 700 quilômetros de Belém.
O município fora criado em maio de 1988 com o nome de Curionópolis em homenagem ao assassino e ainda vivo Major Curió, depois de exterminada a Guerrilha do Araguaia virou líder de uma parcela dos garimpeiros, vindo inclusive ser deputado federal constituinte.
Anos depois virou prefeito da cidade, que carrega seu funesto nome. Há rumores de que haverá plebiscito para que se substitua o nome por outro. Naquele município, estão enterrados 11 dos 19 mortos do dia 17 de abril.
Essa cidadela, antes uma vila de comercio dos camponeses posseiros e dos garimpeiros de Serra Pelada é de onde sai a marcha com quase quatro mil participantes no dia 10 de abril, sob o olhar incrédulo das autoridades locais, e sob o insulto à época do então prefeito João Chamom Neto, seguramente um dos responsáveis por inflar os ânimos do que iria acontecer. Político de carreira, Neto é hoje dono do maior conglomero de comunicação do sudeste Paraense o “Grupo Correio”.
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Do MST que se introduz no sul e sul do Pará, pelo município de Conceição do Araguaia na final década de 80, tem no ano de 1991, a prisão na cidade de Marabá de cinco dos seus militantes. Até serem libertados, ficaram seis meses presos sob a acusação de “remanescentes da guerrilha do Araguaia” feita na época pelo delegado geral da policia Federal, Romeu Tuma.
Na tribuna da Assembleia Legislativa, na capital do estado, Vavá Mutran, deputado da cidade e representante dos fazendeiros, comemora a prisão. Os dois jornais da capital dão a manchete.
É provável que as ações do MST na região tenham sido observadas desde o início, área de segurança nacional até três décadas atrás e a beligerância estatal com 5 quarteis em Marabá. Não resta dúvida da aliança, para o uso do solo e subsolo a partir de grandes fazendas e a empresa estatal ou empresas a ela associadas.
O negócio da terra e dos minerais é lucrativo. Não há chão para os camponeses pobres e nômades que passam a habitar essa porção de terra e contra eles se repetirá a dialética da violência, de muitos massacres, prisões, torturas e assassinados, em Carajás revelará essa continuada tradição de impedimento por morte violenta.
Voltando a história, em 2012 veio a luz o poderoso exército de espionagem, a sofisticada operação de “vigilância e punição” que a empresa VALE.SA mantinha sobre os movimentos populares, pesquisadores, dirigentes políticos e lideranças indígenas e suas ramificações com juízes, comando militares do exército e da política militar, advogados e tribunais de justiça numa região em que ela ultrapassa a marca de maior empresa produtora de commodities minerais para ser a ideologia é o pensar sentir do cabedal da violência, ecológica, economia e social.
Todo massacre é morte e o que difere um do outro é o nível como a violência é exercida. Serra Pelada, a epopeia do ouro virou filme, sutil e enganoso sobre a poderosa armação de ideias fúteis, “riqueza, sexo e violência”. Uma espécie de segunda injustiça, já que as vozes ou mesmo o sacrifício mais genuíno daqueles “desterrados da terra” foram subtraídos, na justiça e na sua imagem pública; Para eles, a morte é banal.
Em 2018 parte do que de fato sucedeu foi recuperada em livro do jornalista Paulo Ferreira, “Encurralados na Ponte”, como uma das formas de pôr a coisas no lugar. No rastro dos massacres deste lado de cá o catálogo de “quando e como? ”, é infindável em números e em argumentos.
O 'Estado Centauro', meio homem e meio cavalo, força e hegemonia, descrito por Gramsci segue provocando subalternidade dos pobres pela violência de uma marca implacável dos donos da terra no poder.
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No Massacre de Carajás, logo no início, a sociedade não aceitou o que aconteceu como “confronto” como duas forças potencialmente delicas e o agir policial em legitima defesa.
Foi massacre sem chance de defesas. Na luta dos tribunais, foram três julgamentos, três juris populares e um resultado: a sociedade entendeu como farsa.
Mas o massacre de Eldorado do Carajás preserva singularidades pela preponderância dos fatos, na sua montagem está a conflagração das partes envolvidas com início meio e fim, a morte de camponeses sem-terra.
No entanto, o que era para ser circunscrito aos círculos de poder, da aliança empresarial a oligarquia regional transformou-se numa comoção nacional e internacional e mudou de maneira abrupta o que se pensa e se escreve a 25 anos.
A experiência da luta pela terra e pela reforma agraria no Brasil e no mundo tem seu antes e o depois. Provoca um sem fim de ações e debates no país e no mundo.
A curva do “S” se transformou no campo sagrado do campesinato mundial e dela origina a implacável busca por justiça como trajeto de luta, memoria política e reivindicação de direitos.
O massacre de Eldorado de Carajás está em movimento e se situa em ambiente de luta conflagrada. É a marcha que deixou sua interrupção pela ação dos camponeses mundo afora no movimento implícito de solidariedade internacional para a instituição do símbolo de luta – dia 17 de abril, como o Dia Internacional de Luta Campesina.
Em 2016, entre dos dias 10 a 17 do mesmo mês, realizou-se em Marabá a Conferencia Internacional da Reforma Agrária e no dia 17 de abril, quando o Massacre de Eldorado de Carajás completava 20 anos, o Parlamento brasileiro destituía a presidente da República Dilma Rousseff (PT).
Duas décadas e meia depois, o Massacre do Carajás continua divergindo do seu tempo e do esquecimento que lhe era dado como certo, a força social que reuniu já de início destitui Badan Palhares, o controverso legista que sugeria no laudo de autopsia que os sem-terra haviam "matado-se entre si".
Nelson Mancini, outro legista, deu a última palavra da tese que se sustenta até hoje. Dois dos seus encaniçados comandantes, Major Oliveira enfrenta prisão domiciliar, num jogo de força até que o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou cumprir a sentença.
O outro, coronel Mario Colares Pantoja, está morto. Em 2007 Ana Julia Carepa então governadora do estado pediu desculpas à sociedade pelo crime de estado praticado pela corporação militar, o que lhe valeu na outra ponta beneficiar com cargos e promoções os soldados que estavam impedidos pela justiça por participar do "evento de guerra".
Em campanha no início de 2018, o atual presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) gravou um vídeo em passagem na curva do “S”, em frente ao monumento das Castanheiras, para os seus correligionários. Para as câmeras ele comenta a seguinte frase: “aqui não houve massacre, os policiais fizeram o que era para ser feito”.
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Com dois massacres durante sua gestão, Corumbiara, em novembro de 1995, em Rondônia, e Carajás, no Pará, o sociólogo tucano Fernando Henrique Cardoso, em 2002, no final do seu segundo mandato como presidente da República, decreta o dia 17 de abril como 'Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária'.
Um pouco antes, José de Souza Martins, outro sociólogo com uma carreira brilhante, escreve a pedido do seu amigo presidente o livro “Reforma Agrária: O impossível Diálogo”.
O livro, traduzido em muitas línguas, tinha como principal objetivo, descaracterizar o MST na comunidade internacional, junto com o ministro do então criado Ministério da Reforma Agrária.
A publicação afirmava que, enquanto o governo acenava com a reforma agrária a partir do mercado de terras, a política do Banco Mundial (BID) para a reforma agrária do MST queria era fazer luta política e agitação contra o neoliberalismo. Além dos 19 mortos do dia 17 de abril, há 69 com sequelas graves. Além disso, três deles já morreram.
Foi dos camponeses organizados pelo MST e outros setores sociais a marcha que se elevou a cem mil na chegada no dia 17 de abril de 1997 em Brasília como a primeira mobilização de massas contra o neoliberalismo e o presidente Fernando Henrique Cardoso. Inaugurou-se ali uma "pedagogia das lutas" no mês de abril.
A “Exposição Terra”, com fotografias de Sebastião Salgado, músicas de Chico Buarque de Holanda e textos de José Saramago transformaram-se em ângulo inquietante desde então. Na curva do “S” há o monumento “As castanheiras lembram e você? ”.
E todo ano jovens de todas as regiões do país, montam seu acampamento pedagógico “Oziel Alves Pereira”. Dezenove anos era a idade do mais jovem dos dezenove assassinados naquele dia.
A terra onde eles morreram lutando virou o 'Assentamento 17 de Abril', no município em que 80% das terras estão nas mãos de quase 20 mil camponeses de Eldorado dos Carajás .
*Por Charles Trocate
Edição: Douglas Matos