BDF Entrevista

Superpoderes de ministros do STF colocam em xeque a democracia, diz Pedro Serrano

Segundo o jurista, há uma disfunção no sistema brasileiro que confere poder em demasia a decisões individuais de juízes

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Pedro Serrano aponta que CPI da Pandemia é melhor instrumento para combater o bolsonarismo
Pedro Serrano aponta que CPI da Pandemia é melhor instrumento para combater o bolsonarismo - Reprodução
CPI da Pandemia é a mais eficaz que nós temos.

O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou aos holofotes do debate político neste ano. Desde a prisão de detratores, à liberdade de opositores do presidente da República, a principal corte do país tem se colocado à frente de uma série de decisões, no mínimo, polêmicas.

O jurista Pedro Serrano, personagem do programa BDF Entrevista desta semana, lembra que os ultra poderes entregues aos 11 ministros do STF têm precedentes perigosos para o sistema democrático. Segundo Serrano, “há uma disfunção estrutural” no sistema judicial brasileiro. 

“O problema é que nós temos a possibilidade, no nosso sistema, de que um relator, um ministro, suspenda a eficácia de uma Emenda Constitucional por liminar. Ou seja, ele suspende a decisão de três quintos do Parlamento”, aponta.

Na conversa, Serrano destaca ainda recentes decisões da Corte, como a que impeliu o Senado a instaurar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, para investigar ações e omissões do governo federal no combate à covid-19. 

“É obrigado a instaurar, porque ela é um instrumento de minoria, para fiscalizar a maioria e o Executivo. Eu fui a favor da decisão, quando no governo Lula, resolveram instaurar uma determinada CPI [do Apagão Aéreo]. Era uma polêmica na época e eu fui contra o pessoal de esquerda, é assim mesmo”, comenta Serrano.

Para o jurista, "a CPI é uma vantagem para enfrentar o bolsonarismo e o cometimento de crimes de lesa humanidade". “Essa postura é a mais eficaz que nós temos, porque a outra alternativa seria investigar pela Justiça. Mas a Justiça não vai investigar, depende do [Augusto] Aras [Procurador-Geral da República], depende de um homem só. Tudo que depende de um homem só é muito mais fácil o governo dar seu jeito”.

Confira alguns trechos da entrevista: 

Brasil de Fato: Como o senhor acompanhou a decisão do ministro Barroso, de instaurar a CPI da Pandemia no Senado? É comum que as cortes superiores tomem este tipo de atitude, cumprindo os requisitos para a instauração das comissões?

Pedro Serrano: Não é uma decisão nova no Supremo. O Supremo tem várias decisões. Eu fiz um artigo, quem tiver interesse pode ver no Conjur, aquele site jurídico, onde eu detalho isso. 

E existem várias decisões do Supremo, até uma comissão estadual foi considerada inconstitucional pelo Supremo, porque determinava que CPIs tinham que ser instaladas com decisão do plenário.

E exatamente o Supremo considerou inconstitucional, porque é um direito da minoria. E o Supremo está certo. É assim que a Constituição determina, o artigo 58. Tem que ter três requisitos: tem que ter 27 deputados apoiando, tem que ter fato certo determinado, para a investigação não se tornar uma devassa e funcionamento temporário, para não ser eterno. 

Aí, é obrigado a instaurar, porque ela é um instrumento de minoria, para fiscalizar a maioria e o Executivo. Eu fui a favor da decisão, quando no governo Lula, resolveram instaurar uma determinada CPI [do Apagão Aéreo]. Era uma polêmica na época e eu fui contra o pessoal de esquerda, é assim mesmo.

No plano político, vão tentar boicotes e obstruções à investigação. Um dos mecanismos é o de querer ampliar muito seu objeto. A Constituição diz que tem que ser um fato certo e determinado. 

Porque eu acho que a CPI é uma vantagem para enfrentar o bolsonarismo e o cometimento de crimes de lesa humanidade? Essa postura é a mais eficaz que nós temos, porque a outra alternativa seria investigar pela Justiça. Mas a Justiça não vai investigar, depende do [Augusto] Aras, depende de um homem só. Tudo que depende de um homem só é muito mais fácil o governo dar seu jeito. 

Nesse caso, nós os democratas, temos uma vantagem, porque nós temos a mídia do nosso lado. Nós temos força. E o ambiente mais sensível à mídia é o Parlamento. Então mesmo que seja verdade, que o Bolsonaro tem maioria, mas ali a gente tem mais chance. Fora isso, eu não consigo enxergar outro caminho.

Algumas pessoas da esquerda, em um primeiro momento, reagi muito mal à opinião delas, mas depois ponderei, dizendo que a CPI não vai funcionar. Tem um certo derrotismo na esquerda, que tem imobilizado a oposição. O Bolsonaro ameaça e a gente acredita na ameaça dele, vamos deixando, achando que na eleição ele perde. Quem disse que ele perde?

Mas também precisamos ressaltar que a gravação [de Bolsonaro em conversa com o senador Jorge Kajuru] é a prova de cometimento de crime pelo presidente da República. Isso não pode ficar em vão. Temos que pressionar o Procurador Geral da República. Ou ele exerce o papel dele, ou temos que decretar o impeachment do Procurador. 

Porque ficou claro que o presidente de República estava manipulando e pressionando um senador para ter um relatório favorável, antes mesmo de começar as investigações. Ou seja, ele está obstruindo as investigações do Legislativo. Isso é grave. 


Gravação mostra o presidente Jair Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru tramando uma forma de inviabilizar a CPI, mesmo ela sendo instalada / Reprodução

Assim como a decisão de Barroso no caso da CPI, outras decisões monocráticas têm dado o tom do Supremo Tribunal Federal.

É uma tendência antiga no nosso direito, ruim. O nosso sistema de justiça tem problemas estruturais que não é nesse momento que devemos tratar. Não estamos no momento histórico para tratar. Isso é uma questão de conveniência e oportunidade.

Mas falando no plano técnico, sem conveniência e oportunidade, nós temos um judiciário atípico no mundo. A Constituição de 1988 fez uma junção do modelo europeu, continental, com o modelo norte americano. No modelo norte americano, é o judiciário que faz o controle de constitucionalidade, mas ele faz o contrário de João contra José. Um caso específico. 

E como as decisões da Suprema Corte vinculam os tribunais inferiores, você acaba realizando esse controle por mecanismos de vinculação. Mas é uma decisão em um caso comum. 

Eu me lembro dos casos dos direitos civis, na década de 1950. Uma pessoa ingressava contra a segregação racial nas escolas, tentava a matrícula, orientada pelo movimento negro. A matrícula era negada e vai para a justiça tentar reverter. A matéria chegou ao Supremo e reverteu a política de segregação racial nas escolas.

O sistema europeu é o contrário. É um sistema político. Você tem uma corte constitucional que representa os três poderes, está acima deles e que controla, em tese, em abstrato, a validade constitucional do Judiciário, do Executivo e do Legislativo. 

Aqui no Brasil, como nós juntamos os dois modelos, o judiciário tem o poder de controlar a validade dos atos dos outros poderes. Isso é complicado. Porque um poder fica acima dos outros. Nós não criamos uma corte constitucional acima dos outros poderes. Nós temos um poder controlando a validade dos atos dos outros poderes.

E o pior é que, desde a década de 1940, por excessos de casos, nossos tribunais superiores, ao invés de delegar funções aos tribunais inferiores, resolveram acumular funções. E esse excesso de casos levou à necessidade de cada vez mais, nas nossas cortes, se tornar importante a figura do relator. 

O que é trágico porque, o que caracteriza a modernidade, em termos de sistema de justiça, é o voto colegiado. A modernidade surge com o Common Law, na Inglaterra e lá surgem as cortes de Westminster, que são colegiados. Sempre se considera que o grupo julga melhor que o indivíduo. Então é mais atrasado, mais primitivo, o julgamento por um juiz individual. 

O problema é que nós temos a possibilidade, no nosso sistema, de que um relator, um ministro, suspender a eficácia de uma Emenda Constitucional por liminar. Ou seja, ele suspende a decisão de três quintos do Parlamento. 

Então é evidente que há uma disfunção estrutural nesse papel do relator. Mas gente, é o que temos para hoje. O Supremo é a melhor corte que nós temos no país, ele tem criado mecanismos de limitação. 

Outra distorção jurídica é a Lei de Segurança Nacional. Quais os perigos de sua aplicação e há um caminho para alterá-la?

Não há como se admitir a legitimidade constitucional da Lei de Segurança Nacional. É verdade que ela foi produzida no fim da Ditadura, mas mantém integralmente o espírito da Ditadura. É transformar em crime, a crítica. 

Ainda era um momento autoritário. Aliás o autoritarismo só começa a ser rompido no Brasil com a Constituição de 1988.

Veja o artigo 26 da Lei de Segurança Nacional que é, qualquer crítica, que vá contra a imagem do presidente da República, ou dos presidentes dos poderes, é crime contra a Segurança Nacional. 

Eu alertei quando foi da adesão daquele deputado e aplicaram a lei: vão começar a processar gente - já estão começando - por chamar Bolsonaro de genocida, que é uma crítica política, absolutamente legítima, mas vão entender como uma ofensa à imagem dele e enquadrar no artigo 26. Não deu outra. Aconteceu com aquele blogueiro famoso, Felipe Neto. 


O sociólogo Tiago Rodrigues em frente a outdoor que gerou intimação contra si com base na Lei de Segurança Nacional / Arquivo pessoal

Essa lei é um malefício para o país. Nós precisamos revogá-la, mas temos que substituí-la por outra, porque a democracia precisa de mecanismos de defesa. Toda democracia no mundo tem mecanismos de defesa das suas instituições. 

Eu coordenei uma equipe de juristas que produziu um projeto, apresentado na Câmara, que é minimalista, que tem muito cuidado para não repercutir efeito sobre o direito à opinião e o direito à manifestação pública dos movimentos sociais. São direitos muito importantes de serem preservados, ao ponto de a gente ter preferido fazer um projeto que deixe de punir condutas que talvez devessem ser punidas, mas para não correr o risco de ter condutas legítimas punidas.

Nós passamos a considerar, com essa lei, movimento popular uma instituição da democracia, ser protegido pelo Estado, tanto quando a imprensa, quanto a advocacia. São instituições privadas da democracia. Não há democracia sem advocacia e sem imprensa, mesmo sendo privadas. Então não há democracia sem movimento social. 

Mas o segundo elemento é preocupação mesmo. Por exemplo: a nossa ideia é punir levantes contra o Estado, mas levantes com uso ou ameaça de uso de armas de fogo. Ou seja, mesmo o porte de uma foice por um Sem Terra, não é crime.

A democracia tem que conviver com os extremismos, senão ela não é democracia. Ela tem que conviver com a crítica ácida. “Ah, mas ofendeu a honra de um ministro, do presidente da República”. Eles podem se defender pelo código penal comum, que continua vigente. Você não pode ofender a honra de ninguém.

A ideia é tentar punir uma tentativa de golpe de Estado, é tentar punir discursos que resgatem como legítimos a prática de crimes lesa humanidade durante a Ditadura, ou seja de sanção mais típica e específica. 

O discurso de ódio deve ser punido, mas ele deve ser muito bem definido. Nós estamos debatendo o conteúdo da lei novamente, eu pedi para as pessoas: tragam por escrito a definição. Nós precisamos ver como é que fica no papel. Nós estamos falando de uma lei, que põe pessoas na cadeia. 

Edição: Vinícius Segalla