As vidas das mulheres mais pobres e negras estão sendo negligenciadas
Por Sonia Coelho*
O Brasil vive uma tragédia anunciada desde o início da pandemia. Secretarias de Saúde, cientistas, infectologistas, todos foram unânimes em afirmar que o Brasil precisava se preparar e ter coordenação nacional centralizada, empenhada em enfrentar o vírus e cuidar da vida.
Porém, o governo de Bolsonaro caminhou sempre na direção contrária às medidas de contenção da pandemia. Desestruturou o Ministério da Saúde com generais incompetentes como Pazuello. Agiu com uma estratégia de morte, com normas, decretos e comportamentos que disseminam o vírus, como revelou o estudo organizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CEPEDISA/FSP/USP) e a Conectas Direitos Humanos.
Enquanto boa parte dos países do mundo se organizava e investia recursos para garantir um amplo e ágil programa de vacinação, o governo brasileiro desdenhava das mortes e das vacinas. Bolsonaro contradiz e desmoraliza o acúmulo histórico do Brasil na área de vacinação, que tem inclusive um Programa Nacional de Imunização.
Esse era o momento chave para investir na ciência, no Sistema Único de Saúde, em vacinas próprias, já que o Brasil tem capacidade cientifica e técnica.
O governo Bolsonaro rejeitou a compra de vacinas pelo SUS, colocando o Brasil no último lugar da fila internacional, mas não titubeou em incentivar as empresas a adquirir vacinas pelo sistema privado.
Trata-se de uma lógica cruel: quem tem dinheiro poderia pagar pela vacina. Mas o dinheiro não pode ser a régua para definir quem vive e quem morre. A opinião publica pressionou contra e fez o governo recuar, criando uma lei que permite, ainda, que o mercado adquira vacinas, mas não lhe é permitido vendê-las ou organizar novas listas de prioridade.
Uma nota na página da ABRASCO assinada por mais de 100 organizações e movimentos sociais chama a atenção: “A abertura da vacinação para clínicas privadas pode impactar negativamente o controle da pandemia, aumentar as desigualdades sociais na saúde e os riscos inerentes ao prolongamento da circulação do vírus na população. A mercantilização da vacina não será tolerada por um Brasil que luta pela vida, por um país mais justo e solidário”.
E ainda afirma: “Num momento de imensa necessidade de fortalecimento do SUS, renuncia-se ao seu potencial para vacinar a população brasileira com equidade, efetividade, eficiência e segurança, em prol do fortalecimento do mercado setor privado de saúde”.
No último dia 26 de março, o Instituto Butantan anunciou que o Brasil terá uma vacina própria no final do ano, a partir do investimento do governo do estado de São Paulo. Apesar das muitas propagandas, sabemos que o governo Dória também é responsável pela precarização e privatização da pesquisa, da ciência e da saúde.
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Não está preocupado com a vida e saúde da população e muito menos em fortalecer o SUS. Caso estivesse, não teria deixado a circulação no estado aberta por tanto tempo em nome do lucro das empresas e da circulação do capital. A vacina no Brasil foi politizada e está sendo usada para a corrida eleitoral.
Para o mercado, a saúde tem preço
A pandemia revela o que discutimos frequentemente no âmbito dos movimentos em defesa do SUS: saúde não é mercadoria. Mas, para o neoliberalismo, a corrida pelo lucro não cessa. Estamos assistindo a corrida das empresas farmacêuticas para liderar a venda de vacinas.
As ações da empresa Biotecnologia Moderna subiram em 501% no mercado financeiro. A Novavax disparou também no mercado financeiro, crescendo 3149%. Há uma grande disputa para ver quem ganha mais com este filão. Enquanto isso, os sistemas de saúde estão desmilinguidos, saturados, com pessoas morrendo nas portas dos hospitais e nos corredores.
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A vacina tem uma dimensão coletiva, de prevenção e, neste momento, de salvar vidas. Os Estados nacionais deveriam tomar para si os conhecimentos e produzir vacinas, quebrar as patentes para preservar a vida, exercer a solidariedade entre países para que os povos mais empobrecidos não fiquem sem vacina.
Mas a realidade não é bem assim: países como EUA e Canadá compraram vacinas para mais que o dobro de sua população. Essa compra exagerada pelos países ricos fortalece as transnacionais da vacina, a maioria delas nos EUA e Europa, inflaciona e eleva os preços para os países pobres.
No Brasil, as mulheres fizeram ecoar um só grito durante o 8 de março: “Mulheres em luta pela vida, vacinação para toda a população, fora Bolsonaro e auxilio emergencial já!”. Esse lema continua embalando as lutas de resistência n a pandemia. A vacina é o único caminho para preservar a vida, principalmente daquelas pessoas que não têm as condições de fazer isolamento social.
A negligência com o SUS aumenta as desigualdades sociais
O Brasil há muitos anos enfrenta o desfio de diminuir a mortalidade materna, uma morte que é inaceitável porque pode ser prevenida e evitada. Em 2020, o Ministério da Saúde divulgou um boletim epidemiológico apontando que o Brasil tem 59,1 óbitos por 100 mil nascidos vivos – dos mais altos índices na América Latina; dessas mulheres, 65% são negras.
Em comparação, segundo a OMS, os países desenvolvidos têm um índice de 12 mortes por 100 mil nascidos vivos. Desde os anos 80, o movimento feminista denuncia essas mortes, dizendo que nenhuma mulher deveria morrer durante a gravidez, parto ou por aborto. Nos anos 80, o movimento criou comitês de prevenção e estudo da mortalidade materna. Tais mortes são mais um indicador de que o sistema de saúde está funcionando mal.
O Brasil e o Ministério da Saúde já possuem amplo conhecimento sobre esta realidade. No momento de uma pandemia, essas mulheres deveriam receber atenção redobrada, considerando o desconhecimento dos efeitos da covid-19 nas gestantes. As desigualdades tendem a aflorar na pandemia, e isso não seria diferente com a mortalidade materna.
Os primeiros estudos organizados pela Fiocruz, USP e outros centros de pesquisa já apontam o Brasil como o país com maior número de mortalidade materna hoje. 77% das mortes maternas ocorridas no mundo por covid-19 são no Brasil, sendo que a mortalidade das mulheres negras é duas vezes maior que de mulheres brancas.
É preciso mais investimento para estudos da vacinação com mulheres grávidas, orientações, organização dos hospitais e maternidades para que as mulheres não se infectem durante o parto, cuidados redobrados no pré-natal. As vidas das mulheres mais pobres e negras estão sendo negligenciadas.
Porque é tão fundamental ter vacina suficiente para toda população?
Olhando o contexto da falta de vacinas, é correto vacinar primeiro profissionais de saúde e, depois, seguir a ordem da população mais idosa para a mais jovem, considerando também quem possui comorbidades. Mas, em nossa sociedade tão desigual, muitas pessoas pagarão essa espera com a vida.
Outro problema é a expectativa de vida. A Rede Nossa São Paulo revelou em 2020 a disparidade da expectativa de vida entre os bairros nobres e a periferia da cidade, apontando que o morador da periferia vive 23 anos a menos.
No Jardim Paulista, a média de morte é aos 81,5 anos; já no Jardim Ângela ou Cidade Tiradentes, é aos 58,2 anos. A população morre cedo pela precariedade de vida e saúde, reforçada agora pela Reforma da Previdência que faz tardar ainda mais a aposentadoria.
Além disso, muitas pessoas que se aposentam recebem um salário baixo e precisam continuar trabalhando para manter a qualidade de vida de suas famílias.
Os movimentos populares e feministas têm mantido a resistência dentro das condições possíveis em uma pandemia, mas é preciso mais. É preciso que a sociedade como um todo expresse seu rechaço a esse governo genocida, mas também cobre do Congresso Nacional.
Boa parte de deputados e senadores foram comprados para manterem a apatia e vistas grossas a este genocídio.
Neste próximo 7 de abril, Dia Mundial da Saúde, as plenárias de saúde e os movimentos irão expressar mais uma vez nosso repúdio a Bolsonaro, gritar pela vacinação para toda a população, exigir a revogação da Emenda 95, o fortalecimento do SUS e a retomada do auxílio emergencial para sobreviver. Esta tem sido a bandeira de luta que tem unidade em nossos movimentos.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
*Sonia Coelho é assistente social, integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.
Edição: Rebeca Cavalcante