A semana do 57º aniversário do golpe militar de 1964 mal começou e já é, de longe, a mais conturbada no alto escalão do governo Bolsonaro. Só na segunda-feira (29), foram seis mudanças no comando de ministérios, com impactos diretos sobre a relação entre o Planalto e as Forças Armadas.
Logo após a demissão do general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica colocaram seus cargos à disposição.
As saídas de Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Moretti Bermudez (Aeronáutica) foram confirmadas no início da tarde desta terça-feira (30). Os substitutos ainda não foram anunciados.
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“É um sinal muito negativo. Isso nunca aconteceu na história republicana do Brasil e indica que a cúpula das Forças Armadas está em discordância com os pedidos feitos pelo comandante-em-chefe”, ressalta Lucas Rezende, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
“Não é preciso ser um expert para entender que Bolsonaro pressionou mais do que devia as Forças Armadas”, completa o pesquisador com estágio pós-doutoral em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP).
O perfil do general Braga Netto, escolhido para substituir Azevedo, confirma a hipótese levantada por Rezende.
“Braga Netto está em uma categoria muito específica, que é a dos generais palacianos – aqueles que não vão abandonar Bolsonaro nunca. O problema é saber se ele vai arriscar um conflito com seus colegas de farda”, analisa João Roberto Martins Filho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (2005-2008).
“Ele é um general bolsonarista no sentido exato da palavra, assim como [Augusto] Heleno e [Luiz Eduardo] Ramos”, acrescenta Martins Filho, professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Especulações
A saída de Azevedo pegou de surpresa mesmo quem acompanha os bastidores da política em Brasília (DF). A esperada demissão de Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, em poucas horas se transformou em uma reforma ministerial, e os motivos de cada mudança se tornaram alvo de especulação.
O conjunto de versões inclui até a insatisfação de Bolsonaro com o general Edson Pujol, Comandante do Exército Brasileiro, por não se manifestar diante das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) que beneficiaram o ex-presidente Lula (PT) no âmbito da operação Lava Jato.
“Tenho visto as mais diferentes hipóteses, e cada jornalista está falando uma coisa diferente. Por isso, não me posiciono em relação a nenhuma delas. O que é evidente é que ele quer obediência cega desses setores”, ressalta Martins Filho, chamando atenção para o aniversário do golpe, na próxima quarta (31).
“Pode ser que ele [Bolsonaro] quisesse fazer um bafafá tremendo no 31 de março, como foi feito em 2019 e 2020. Mas, agora, o clima mudou. Não há condições de fazer festa, porque o país está de luto. Então, isso pode ter sido um dos fatores”, diz.
Além de abraçar o bolsonarismo, Braga Netto, escolhido para assumir a Defesa, representa uma ala saudosista da ditadura militar dentro das Forças Armadas. Azevedo, por outro lado, já foi assessor do ministro Dias Toffoli, do STF, e possui um conjunto mais amplo de relações que lhe confere certa autonomia em relação ao presidente.
O fator Pazuello
A saída do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde na semana passada, em meio à pior crise sanitária da história brasileira, contribuiu para amplificar as tensões.
“Pazuello foi um fantoche. Fez exatamente o que Bolsonaro queria, e depois se tornou um bode expiatório. Isso pegou muito mal no alto comando das Forças Armadas, por se tratar de um general da ativa”, lembra Lucas Rezende.
João Roberto Martins Filho também vê uma conexão possível entre os acontecimentos.
“Você nunca via nenhum general criticar a gestão do Pazuello, mas havia um reconhecimento de que ele causava um grande dano à imagem do Exército. Bolsonaro foi pressionado, demitiu [Pazuello] a contragosto e, talvez para compensar, resolveu mostrar ‘quem é que manda’. E aí, passou do limite, tentando interferir na política militar”, resume.
O papel da crise sanitária na reconfiguração desse tabuleiro é decisivo. Em 31 de maio de 2020, antes da covid levar todas as regiões do país ao colapso, Bolsonaro e Azevedo sobrevoavam juntos de helicóptero a Praça dos Três Poderes, saudando manifestantes que protestavam pelo fechamento do Congresso Nacional e do STF.
“Se Azevedo e Silva tivesse pedido demissão naquele momento, ele teria encontrado repúdio nos meios militares. Hoje, ele encontra amplo apoio, porque a situação mudou muito, e me parece que Bolsonaro está elevando a aposta – o que não significa que não possa sair perdendo no longo prazo”, aponta Martins Filho.
Crise militar?
Os dois analistas ouvidos pelo Brasil de Fato concordam que, se o Ministério da Defesa fosse liderado por um civil, como ocorria até fevereiro de 2018, o impacto da demissão seria menor.
“Todos sabemos dos arroubos autoritários do presidente, e sabemos também que o relacionamento das Forças Armadas com a política é um aspecto negativo em qualquer democracia. Esse é um cargo político, e o civil assume o ônus no caso de uma crise”, enfatiza Rezende.
O Ministério da Defesa foi criado em 1999, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
“A Marinha não queria, porque achava que o Ministério cairia na mão do Exército. Isso só aconteceu a partir do governo Temer”, lembra Martins Filho.
“Até então, quando o presidente queria demitir o ministro – e já tivemos isso 12 vezes na história –, não gerava uma crise militar. Os quartéis e as bases continuavam a funcionar normalmente. Agora, que o Ministério é comandado por um general, a demissão desperta muito mais interesse. E o problema é que tem almirantes [Marinha] e brigadeiros [Aeronáutica] na jogada”, completa o professor aposentado da UFSCar.
Perspectivas
Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC, Lucas Rezende avalia que a saída dos comandantes das Forças Armadas abre caminho para Bolsonaro conquistar seu objetivo imediato.
“Saindo os três comandantes e o ministro, que eram vozes não tão radicais dentro das Forças Armadas – embora não possam ser chamados de ‘moderados’ –, provavelmente eles serão substituídos por vozes que aceitem os comandos do presidente da República”, afirma.
“É a mesma lógica do Ministério da Saúde: Bolsonaro foi trocando de ministro até que um, general [Pazuello], aceitasse os absurdos dos comandos da Presidência da República. Bolsonaro quer colocar mais um fantoche que aceite cegamente seus comandos, e isso é muito preocupante”, acrescenta Rezende.
As novidades desta semana podem ter impactos até nas eleições presidenciais de 2022.
“Há uma tendência de desembarque do governo Bolsonaro por parte da hierarquia militar, que pretende estar no domínio da oficialidade toda. Há uma tendência de que eles apoiem, no ano que vem, para permanecer no poder, uma chapa de centro, que pode ser encabeçada pelo [ex-juiz Sergio] Moro”, projeta Martins Filho.
Para o especialista, não haverá uma ruptura declarada entre militares bolsonaristas e não-bolsonaristas.
“A ala que não está comprometida com o governo não vai querer reconhecer isso. Porque, ao anunciar um desembarque, eles precisariam reconhecer que estiveram em algum momento dentro do barco, o que seria complicado”, adverte.
O ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa entende que os cargos e benesses concedidas por Bolsonaro ainda mantêm os militares “acomodados” ao atual governo.
“É muito difícil que alguém vá largar a mamata, as gratificações. Acho que esse pessoal não vai sair, principalmente os que estão na reserva. Mas, se eles querem mesmo se afastar do governo, vão ter que chamar todos os oficiais da ativa [que ocupam cargos políticos] de volta para as Forças. Eles podem fazer isso”, lembra o pesquisador.
Bolsonaro mais que dobrou o número de militares em cargos políticos e propôs um aumento de 48,8% no orçamento do Ministério da Defesa em 2021.
Lucas Rezende avalia que o cenário está cada vez mais grave. Para ele, as interferências de Bolsonaro são mais uma razão para o impeachment.
“Podemos esperar, certamente, um maior radicalismo e uma maior associação entre militares e política. O que já é absolutamente danoso pode ser tornar ainda mais desastroso se as Forças Armadas obedecerem ao presidente da República em desacordo com a Constituição Federal”, alerta.
O especialista conclui lembrando que “os dois lados estão errados”, e que as movimentações observadas esta semana são de natureza política.
“A única forma de corrigir esse erro é os militares saírem dos cargos políticos e voltarem urgentemente para os quartéis”, finaliza.
Edição: Rebeca Cavalcante