A saída do general Pazuello do Ministério da Saúde responde às crescentes pressões sobre o governo num contexto de agravamento da crise sanitária da covid-19.
Inicialmente camuflada por um falso problema de saúde, as pressões são oriundas da consternação popular em torno do crescimento exponencial do número de mortos; da investigação que pesa sobre o Pazuello no Supremo Tribunal Federal (STF); e de pressões, inclusive da base governista, para instauração de uma CPI no Senado para investigar a gestão da pandemia, sem falar no já conhecido e insaciável “apetite” do centrão por novos cargos.
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Ademais, a demissão suavizava as pressões sobre as forças armadas, cujo vínculo com a crise sanitária se tornava evidente num governo militarizado e cujo Ministério da Saúde se encontrava nas mãos de um general da ativa. O esforço pelo descolamento é evidente.
Alçado a ministro por seu suposto conhecimento logístico, Pazuello rapidamente deu a tônica de sua gestão: negligência quanto às recomendações de especialistas e subserviência aos desmandos do Planalto.
Com o general à frente da Saúde, nos aproximamos dos 300 mil mortos por covid-19, despontando como uma ameaça à saúde global.
A esta altura, falar no fim do mito da competência administrativa militar é insuficiente, e surgem as necessárias discussões sobre as responsabilidades individuais e coletivas de atores no governo diante do atual cenário de morte.
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O próprio ministro-general está preocupado com isso, e estudam-se outros postos para o mesmo, de modo que ele continue a gozar do foro privilegiado.
Para essa discussão, desejamos contribuir com o regaste de um documento. Em abril de 2020, foi publicado na página do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx) um texto que tratava da pandemia da covid-19.
Intitulado “Crise Covid-19: estratégias de transição para a normalidade”, discutia aspectos como as características da pandemia e seus efeitos na economia global, estratégias adotadas por outros países e possíveis correlações destas com a realidade brasileira.
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O documento trazia recomendações claras sobre a gestão da pandemia, organizadas em uma Matriz de Medidas, proposta para os quatro cenários possíveis em relação à Covid-19 – subida, estabilidade, queda e normalidade – e com propostas estruturadas em torno de quatro eixos: Saúde, Economia, Social e Política.
Poucos dias depois, o documento desapareceu das fontes abertas. Em abril de 2020, em sua coluna no UOL, Reinaldo Azevedo questionou o desaparecimento do texto, e o disponibilizou integralmente em seu portal. Não se tem conhecimento se houveram atualizações posteriores, que não vieram a público.
Acreditamos ser necessário resgatar alguns itens desse material para comparar as propostas listadas pelo CEEx e as medidas efetivamente implementadas – ou a ausência destas – pelo governo.
Ele também é particularmente útil uma vez que o general a frente da pasta é da ativa do Exército, e o CEEx é uma instituição que alimenta o Comando da Instituição com estudos estratégicos elaborados para situações de crise, como a atual. Esta avaliação conformada no documento pode ser resumida em:
1. reconhece a Organização Mundial de Saúde (OMS) como “principal referência na área”, indicando de início que se trata de uma instância cujas recomendações devem ser observadas. Com isso, vai na contramão dos diversos ataques do governo contra a organização;
2. destaca, em diversas passagens, a importância da testagem em massa. Em sua Matriz de Medidas, o documento do CEEx prevê a aplicação de algum nível de testagem em todos os cenários vislumbrados.
A testagem massiva, entretanto, não foi realizada no Brasil, tendo sido negligenciada pela gestão de Pazuello na Saúde. Exemplo disso foi o episódio dos testes de Covid-19 que, estocados pelo Ministério da Saúde, arriscavam ser descartados por perda do prazo e seriam objeto de doação para o Haiti, passagem tão reveladora da visão sobre a Missão de Paz da ONU naquele país que mereceria individualmente um novo texto;
3. afirma que “embora seja cedo para uma avaliação mais conclusiva”, a adoção de forma antecipada de “estratégias de isolamento horizontal tem apresentado resultados parciais mais efetivos, no achatamento da curva”.
Destaca ainda o risco de novos surtos de covid-19 num cenário de relaxamento precoce das medidas de isolamento, em um claro assentimento ao isolamento social como medida válida de prevenção;
4. ressalta a necessidade de formulação de indicadores e metas objetivas para adoção e/ou mudanças de estratégias, o que tampouco ocorreu no governo. Convivemos, pelo contrário, com mensagens desconexas, muitas vezes falsas, partindo até mesmo de agentes públicos. As fake news, no Brasil, impuseram um desafio a mais para a gestão da pandemia;
5. o CEEx valoriza no documento a necessidade de embasar as medidas adotadas em dados e na pesquisa científica, utilizando-se dessa prática em sua elaboração. No Brasil, entretanto, o negacionismo foi a regra. É sintomático, nesse sentido, a insistência de Bolsonaro e Pazuello no “tratamento precoce”, com base em medicamentos sem eficácia contra a covid-19;
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6. reconhece, por fim, a importância da cooperação entre os diferentes entes federados, indicando, inclusive, a eventual primazia de algum deles a depender da estratégia de prevenção a ser adotada. Esse ponto é particularmente relevante se consideramos as mentiras disseminadas pelo governo sobre um falso impedimento por parte do STF quanto à atuação do governo federal na gestão da pandemia.
Em suma, o documento apresentado pelo CEEx era uma síntese de um consenso existente sobre a gestão da pandemia, com recomendações objetivas para ação, prevendo, inclusive, a mudança de curso, desde que bem embasada e a partir de indicadores objetivos.
Sua negligência por parte do governo é indício contundente das opções feitas pelo Executivo e pelo general no comando do Ministério da Saúde de como lidar com a pandemia.
Alegar desinformação não é factível, particularmente em virtude do fato de tratar-se de um material produzido pelo CEEx para um governo militarizado.
Muitas perguntas pairam desde então. Em um governo em que “um manda e o outro obedece”, como eximir o presidente da República e seu ministro, um general da ativa, da prevista tragédia brasileira?
Os militares no governo deliberadamente optaram por não adotar uma postura embasada em estudo estratégico produzido pela Instituição Militar. O general Pazuello seguiu como um militar da ativa.
Quem mandou tirar o documento do ar? É alguém de dentro da Instituição ou de fora? Por quê? Quanto a corporação vai proteger seus próprios membros envolvidos em crimes?
A "bolsonarização" dos quartéis nitidamente comprometeu a capacidade de formulação estratégica das forças armadas, como na prospecção de cenários elaborada pela ESG no qual a França surge como potencial inimigo.
No caso da pandemia, por outro lado, o documento mostra capacidade propositiva para o gerenciamento de crises. Como essas diferenças se acomodam internamente? Ganhos corporativos compensam a falta de credibilidade profissional?
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Poliana Dallabrida