Coluna

O 18 Brumário de Jair Bolsonaro

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Para garantir o centrão até 2022, Bolsonaro terá que pagar caro - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Podia o Congresso Nacional romper com o presidente da República?

Todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Quando estalou um conflito em 2013, quando o povo se levantou às ruas, a força de segurança manteve uma atitude relativamente passiva, o exército não ofereceu nenhuma resistência séria (...). Após as jornadas de junho a maioria das classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe trabalhadora.

Após aquele momento, toda reivindicação, ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente castigada como um "atentado à sociedade" e estigmatizada como "socialismo".

A história da classe política a partir das jornadas de junho é a história do domínio e da desagregação da fração republicana da burguesia. O domínio exclusivo dos golpistas burgueses durou apenas de agosto de 2016 a dezembro de 2018. Resumiu-se no desmonte de políticas públicas e na assinatura da intervenção Federal no Rio de Janeiro.

A burguesia brasileira rebelou-se contra um possível domínio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lúmpen proletariado tendo à frente o chefe do baixo clero (...). Finalmente, a ralé da sociedade burguesa constitui a sagrada falange da ordem e o herói Bolsonaro se instala no Palácio do Planalto como o "salvador da sociedade".

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Se o junho de 2013 removera seus dirigentes da época, tinha, por outro lado, aberto vaga para homens de menor envergadura, que se sentiam desvanecidos com esta nova posição. (...) A vitória de Bolsonaro representa uma paródia de restauração dos valores da ditadura, (...) representa não o esclarecimento, mas a superstição do lúmpen; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado.

O período compreendido após janeiro de 2019 abrange a história do declínio dos republicanos burgueses. Após terem “fundado” uma república para a burguesia, expulsado do campo de luta os setores de esquerda e reduzido momentaneamente ao silêncio a pequena burguesia democrática, são eles mesmos postos de lado pela massa da burguesia, que com justa razão reclama essa república como sua propriedade.

Essa massa era, parte dela, latifundiários, (...) a outra parte, os aristocratas da finança e os grandes industriais. Já da universidade, da igreja, da justiça, da academia e da imprensa podiam ser encontrados dos dois lados, embora em proporções várias.

Bolsonaro considera sua missão salvaguardar "a ordem burguesa". Mas a força dessa ordem burguesa também está na classe média. Ele se afirma, portanto, como representante da classe média, e promulga decretos nesse sentido. Outra ideia bolsonarista é o domínio dos pastores como instrumento de governo (...) e a preponderância do exército. O exército era o point d'honneur dos populares, eram eles próprios transformados em heróis.

Ensinaram Bolsonaro a apelar para o povo contra as Assembleias Parlamentares. Finalmente, chegou o dia no qual ele falaria em destituir o Parlamento e o STF.

Para isso, em um momento opôs que se decretasse um aumento no soldo dos suboficiais; mas, propôs a criação de um auxílio emergencial para garantir créditos ao povo. Dinheiro como dádiva (...), era com perspectivas como essas que esperava atrair as massas (...) Nunca um pretendente especulou mais vulgarmente com a vulgaridade das massas. (...) A linguagem respeitável, hipocritamente moderada, virtuosamente corriqueira da burguesia, revela seu significado mais profundo na boca do autocrata.

Por outro lado, seus interesses políticos forçavam-no a aumentar diariamente as medidas de repressão e, portanto, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto tinha ao mesmo tempo que empenhar-se em uma guerra ininterrupta contra a opinião pública e receosamente mutilar e paralisar os órgãos independentes do movimento social, onde não conseguia amputá-los completamente.

Jamais alguém demitiu lacaios com tanta sem-cerimônia como Bolsonaro a seus ministros. (...) As pequenas derrotas sofridas nesse ínterim pelos ministros da Justiça (...) e da Fazenda, através das quais o Parlamento expressava seus rosnados de desagrado, incomodavam-no muito pouco. Diz-se que Bolsonaro anda em busca de ministros para por em execução decretos ilegais. Um bando de patifes abre caminho para si na corte, nos ministérios, nos altos postos do governo e do exército, uma malta cujos melhores elementos, é preciso que se diga, ninguém sabe de onde vieram.

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Bolsonaro, que se erige em chefe do lúmpen-proletariado (...) que reconhece nessa escória, nesse refugo miliciano, nesse rebotalho de todas as classes a única classe em que pode apoiar-se incondicionalmente, é o verdadeiro Bolsonaro. Só faltava uma coisa para completar o verdadeiro caráter dessa república: substituir as noções de Liberté, Égalité, Fraternité, pelas palavras inequívocas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia!

Ele produz uma verdadeira anarquia em nome da ordem, ao mesmo tempo que despoja de seu halo toda a máquina do Estado, profana-a e torna-a ao mesmo tempo desprezível e ridícula.

Os arautos e escribas da burguesia golpista, sua plataforma e sua imprensa, em suma, os ideólogos da burguesia, e a própria burguesia, representantes e os representados, enfrentavam-se com hostilidade e não mais se compreendiam. Eles perderam a capacidade de governar. Já não existia um “governo parlamentar”. Tendo agora perdido, efetivamente, o controle sobre o exército (...) Só lhes restavam agora apelar para os princípios sem força.

A burguesia fez a apoteose da espada; a espada a domina. Destruiu a imprensa popular; sua própria imprensa foi destruída. (...) Substituiu os júris por comissões militares; seus júris são substituídos por comissões militares. Submeteu a educação pública ao domínio dos pastores; os pastores submetem-na à educação deles. Reprimiu todos os movimentos da sociedade através do poder do Estado; (...) transformara a obra de arte que era a república burguesa, em um monstro.

Agora, até o liberalismo burguês é declarado socialista, o desenvolvimento cultural da burguesia é socialista, a reforma financeira burguesa é socialista. (...) Isto não era mera figura de retórica, questão de moda ou tática partidária.

A burguesia golpista tinha uma noção exata do fato de que todas as armas que forjara contra os governos populares do PT voltavam seu gume contra eles, que todos os meios de cultura que criaram rebelavam-se contra sua própria civilização, que todos os deuses que inventara os tinham abandonado. Compreendia que todas as chamadas liberdades burguesas e órgãos e progresso atacavam e ameaçavam seu domínio de classe, e tinham, portanto, se convertido em "socialistas".

Esta era a Constituição de 1988, que não foi derrubada por uma cabeça, mas caiu por terra ao contato de um simples chapéu; esse chapéu, evidentemente, era um quepe bolsonarista. Ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam.

O período que temos diante de nós abrange a mais heterogênea mistura de contradições clamorosas: constitucionalistas que conspiram abertamente contra a constituição; revolucionários declaradamente constitucionalistas (...) um Poder Executivo que encontra sua força em sua própria debilidade e sua respeitabilidade no desprezo que inspira.

A divergência entre os partidos da ordem, dentre eles o Centrão, e o presidente assumira um caráter ameaçador quando um acontecimento inesperado atirou o segundo, contrito, nos braços do primeiro. Aos poucos, ele se escondeu atrás dos partidos do centrão. Rendeu-lhe tributo, pediu perdão de maneira pusilânime, prontificou-se a nomear o ministério que quisessem por indicação da maioria parlamentar.

O comércio diminuía dia a dia, o número de desempregados aumentava visivelmente, havia milhares de trabalhadores famintos. (...) registrou-se um declínio das exportações, o comércio experimentou um revés e as fábricas deixaram de trabalhar.

Podia o Congresso Nacional romper com o presidente da República em um momento em que rompera definitivamente, no fundamental, com a massa da nação? Depois da morte do Parlamento, uma nova intriga parlamentar, unia Lei de Responsabilidades, com a qual se pretendia manter o presidente dentro dos limites da Constituição e do mercado.

Tenho razão de reiterar quão grande seria a República Federativa do Brasil se lhe permitissem defender seus verdadeiros interesses e reformar suas instituições, ao invés de estar sendo constantemente perturbada, de um lado por demagogos, e de outro por alucinações autocráticas. 

A derrota de junho de 2013 pusera os setores progressistas fora de combate por muitos anos e que o processo histórico teria por enquanto que passar por cima de suas cabeças. Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade. Embora, a ressurreição dos mortos nas lutas populares tenha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas.

Todos os trechos tirados deste artigo foram escritos no ano de 1852 e são do livro de Karl Marx chamado “O 18 Brumário de Louis Bonaparte”. Marx não era vidente, ele fazia ciência a partir do materialismo histórico. Louis Bonaparte foi substituído por Jair Bolsonaro e a contextualização para adequar ao momento atual. Esta semana faz 138 anos da morte de Marx, que continua mais vivo do que nunca.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante