Artigo

Cantão, 1927: a Comuna de Paris do Oriente

O levante ocorrido na China reivindica uma genealogia direta com a Comuna de Paris, de 1871, que completa 150 anos

Tradução: Vivian Fernandes

Pequim (China) | Texto originalmente publicado na revista The Funambulist 34 (março-abril 2021) |
Comemoração do 100º aniversário da Comuna de Paris (Poster de 1971) - Reprodução

No outono russo de 1920, Qu Qiubai ouviu pela primeira vez A Internacional (L’Internationale, em francês), o hino socialista nascido na Comuna de Paris, em 1871. Eugène Pottier, autor da letra da canção, foi um participante da comuna e membro eleito do Estado dos trabalhadores que durou 72 dias na capital francesa. Ainda que escrita quase meio século antes, a canção só havia sido recentemente adotada como o hino do Partido Bolchevique.

Até hoje, essa canção é um dos hinos mais traduzidos e cantados pelos oprimidos ao redor do mundo. Qu Qiubai esteve presente na celebração do terceiro aniversário da Revolução de Outubro, tendo viajado via Harbin (a capital provincial mais ao norte da China) para chegar à Rússia. Fluente em francês e russo, ele foi enviado para ser correspondente em Moscou para o jornal Beijing Morning News (晨报), cobrindo os primeiros anos da Revolução Bolchevique.

Em 1920, o movimento comunista na China mal havia começado, mas a nação estava faminta por suas ideias. Os saques coloniais das duas Guerras do Ópio marcaram o início do "século da humilhação", que viu a concessão de Hong Kong aos britânicos e o saque do Antigo Palácio de Verão, em Pequim, pelas forças anglo-francesas. A dinastia Qing caiu em 1911, mas foi sucedida por um governo fantoche republicano. O país estava dividido, o feudalismo e o coronelismo estavam desenfreados. O povo chinês estava faminto – física e espiritualmente – para que sua nação fosse libertada. 

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Como os milhares de jovens radicais da época, Qiubai foi politizado no Movimento Quatro de Maio de 1919. A Conferência de Paz de Paris, no final da Primeira Guerra Mundial, viu a traição final dos interesses da China – em vez de obter seus territórios de volta, os Aliados Ocidentais concordaram em transferir a província de Shandong das mãos coloniais do Japão para a Alemanha. 

Em resposta, nasceu um movimento nacional liderado por estudantes em Pequim, ancorado em políticas anti-imperialistas, antifeudais e antipatriarcais. Este despertar deu origem ao Movimento Nova Cultura – sendo a Nova Juventude sua principal publicação – e uma abertura para novas ideias para guiar a transformação do país. Entre seus líderes estavam professores da Universidade de Pequim, Chen Duxiu e Li Dazhao, que foram fundamentais para trazer ideias marxistas para a China. Ambos ajudaram a fundar o Partido Comunista da China (PCCh), em 1921.

A traição dos Aliados Ocidentais foi sentida ainda mais após as contribuições que o povo chinês fez para a Grande Guerra. Para suprir sua crescente escassez de mão-de-obra, França e Reino Unido dependiam fortemente das colônias da África, da Indochina e da China. Cerca de 140 mil chineses – a maioria camponeses – juntaram-se aos esforços de guerra de franceses e britânicos, enquanto outros 200 mil lutaram na frente leste com o Exército Vermelho russo. 

A Brigada de Trabalho Chinês fez todas as tarefas, exceto portar armas: cavaram trincheiras, trabalharam em fábricas de munição, consertaram equipamentos nas linhas de frente e enterraram os mortos. Milhares de pessoas morreram, embora esta parte da história seja pouco contada no Ocidente. 

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Por volta dessa mesma época, havia outro grupo de jovens chineses que se dirigia à França. Originalmente iniciado pelos anarquistas chineses, em 1908, a iniciativa se formalizou no programa de Trabalho Diligente-Estudos Frugais, em 1919, que levou 2 mil trabalhadores e camponeses chineses a Paris: eles trabalhariam em fábricas em troca de sua educação ocidental. As pobres condições de vida e de trabalho politizaram muitos deles. 

Em 28 de fevereiro de 1921, 400 estudantes-trabalhadores chineses se manifestaram contra novas reduções nas bolsas de estudo. Eventos como este, aproximaram o movimento dos trabalhadores e a geração da Primeira Guerra Mundial, quando começaram a se organizar juntos nas fábricas da Renault, a partir dos bairros industriais de Boulogne-Billancourt e La Garenne-Colombes. Era a partir dos andares das fábricas e nos salões universitários onde o marxismo entraria no pensamento revolucionário chinês. Entre os estudantes estavam Zhou Enlai e Deng Xiaoping, fundadores da filial europeia do PCCh. Zhou serviria como primeiro-ministro chinês por 26 anos e Deng, que sucedeu Mao Tse Tung como líder da República Popular da China (RPC).

Flor Brilhante, Fruta Feliz 

Embora a Comuna de Paris fosse em grande parte desconhecida do público chinês até aquele momento, essas trocas entre trabalhadores e intelectuais na França, além da abertura ideológica que o Movimento Quatro de Maio criou, ajudaram a fazer avançar essa história. Vários dos primeiros líderes comunistas estudaram, escreveram e popularizaram a história do Estado controlado pelos trabalhadores. 

Em 1920, Li Da, um dos 12 membros fundadores do PCCh, escreveu sobre a necessidade da Revolução Chinesa tomar o caminho da luta armada. Em 1922, Zhou Enlai escreveu no jornal Nova Juventude (新靑年) sobre a "flor de curta duração" da Comuna de Paris e sua continuação na Revolução de Outubro russa. No ano seguinte, na edição do 50º aniversário de Shen Bao (申報) – um dos primeiros jornais modernos da China –, Li Dazhao explicou, pela primeira vez, o conceito de "comuna" a um público chinês. Primeiro traduzido como kangmiaoen (康妙恩), o conceito revolucionário ganhou sua própria forma no idioma chinês, gongshe (公社): uma República de trabalhadores.

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Qu Qiubai estava entre os comunistas que não só traduziram textos essenciais sobre a história da Comuna, mas também foi o primeiro a traduzir A Internacional para o chinês, três anos depois de tê-la ouvido pela primeira vez, na Rússia. Enquanto tocava o órgão, ele revisou cuidadosamente a letra para encontrar uma tradução da palavra "internacional" – que tem apenas duas sílabas em chinês (国际) – que pudesse se adequar à melodia. Ele finalmente se acomodou à tradução do ying te na xiong nai er (英特纳雄耐尔) para se manter fiel à cadência da música, que permanece na versão adotada oficialmente até hoje.

Nessa época, Qiubai já havia se juntado ao PCCh, a convite de Zhang Tailei, em 1922. Um ano antes, ele também conheceu o líder bolchevique Lênin, que havia estudado intimamente as lições da Comuna de Paris. Poucos meses antes de levar seu próprio país à revolução, Lênin dedica um capítulo a ela em O Estado e a Revolução (1917):

"A Comuna é a primeira tentativa de uma revolução proletária para esmagar a máquina estatal burguesa; e é a forma política "finalmente descoberta", pela qual a máquina estatal esmagada pode e deve ser substituída. 

Veremos mais adiante que as revoluções russas de 1905 e 1917, em diferentes circunstâncias e sob diferentes condições, continuam o trabalho da Comuna e confirmam a brilhante análise histórica de Marx". 

Alguns meses depois da publicação da obra, a Revolução de Outubro de fato continuaria o trabalho da Comuna de Paris e confirmaria a análise de Marx. Nesta tradição, os comunistas chineses também levariam adiante o legado destas duas experiências revolucionárias. 

Em 18 de março de 1926, aconteceu na China a primeira comemoração em massa do 55º aniversário da Comuna de Paris. Dez mil pessoas se reuniram na capital sulista de Cantão. Eles cantaram A Internacional e cantaram Vive la Commune de Paris!, apesar da chuva. Nesta ocasião, Mao Tse Tung escreve que se a Comuna de Paris era uma "flor brilhante", então a Revolução de Outubro foi o "fruto feliz", do qual poderiam nascer mais frutos. Sobre a derrota final da Comuna, Mao aponta duas razões: a falta de um partido unificado e centralizado para liderar os trabalhadores e o excesso de misericórdia com o inimigo. Em seu discurso principal na celebração, o líder cantonês Zhang Tailei apontou a experiência concreta que a Comuna de Paris deu para que os trabalhadores chineses tomassem o poder – uma prefiguração do que viria no ano seguinte. 

Da cidade para o campo 

A década de 1920 viu uma rápida expansão da classe trabalhadora urbana: os sindicatos se multiplicaram, as greves eram frequentes e as fileiras do PCCh cresceram com a organização das massas. Somente no centro industrial de Xangai, em 1926, houve 169 greves que atingiram 165 fábricas envolvendo mais de 200 mil trabalhadores. Em Cantão, a Greve dos Estivadores de 1922 foi vitoriosa e a Greve Geral de Cantão-Hong Kong, de 1925, durou 16 meses e recebeu apoio em massa sem precedentes de trabalhadores domésticos, estivadores, motoristas de riquixá e os chamados "coolies" (trabalhadores semiescravizados). Estas experiências mostraram como o trabalho organizado poderia ameaçar a vida colonial e a ordem capitalista. 

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Apesar da industrialização, a China ainda era uma sociedade esmagadoramente camponesa. Em sua Análise das Classes na Sociedade Chinesa, de 1926, Mao estudou a composição da população chinesa de 450 milhões de habitantes. O proletariado urbano, por mais rápido que estivesse crescendo, ainda totalizava apenas 2 milhões de pessoas – a grande maioria do povo chinês era camponesa. Mao estimou que 400 milhões de pessoas eram "semi-proletários" que cultivavam suas próprias terras, mas também ganhavam salários como agricultores ou trabalhadores assalariados: ele os chamou de "nossos amigos mais próximos".

Em um mau presságio, Mao também advertiu neste texto que não se podia confiar nas forças burguesas nacionais. Naquele momento histórico, o PCCh estava em uma aliança com a burguesia nacional liderada pelo Partido Nacionalista (KMT) em uma "Frente Unida" contra o coronelismo e o imperialismo. Naquele ano decisivo, essa aliança teria um fim abrupto e o subsequente "Terror Branco" de assassinatos em massa de comunistas por nacionalistas e mercenários contratados. As insurreições em massa de 1927 foram tentativas de transformar o símbolo da Comuna de Paris em uma prática viva na China, e exigiram uma mudança estratégica no processo revolucionário.

A comemoração de 1927 da Comuna de Paris foi imensa e atraiu até 1 milhão de trabalhadores e camponeses em todo o país. Na celebração de Wuhan, o líder trabalhista Liu Shaoqi apelou aos trabalhadores para que levassem adiante o espírito da Comuna de Paris juntamente com a luta contra o imperialismo e o coronelismo. Três dias depois, 800 mil trabalhadores liderados por Zhou Enlai lançaram uma greve geral em Xangai, que derrubou o governo controlado pelo coronel local e estabeleceu um governo municipal provisório. Xangai tornou-se a primeira grande cidade sob a liderança do PCCh. Mas em 12 de abril, desafiando a estratégia da Frente Unida, o Partido Nacionalista, sob a liderança de Chiang Kaishek, desencadeou um golpe e ordenou o massacre e o desaparecimento de milhares de comunistas, com a ajuda da polícia das áreas ocupadas pelas potências coloniais e de organizações criminosas. A aliança PCCh-KMT estava terminada. As revoltas urbanas subsequentes, lideradas pelos comunistas de Nanchang (1 de agosto) a Hunan (7 de setembro), e finalmente a de Cantão (11 de dezembro), seriam todas brutalmente esmagadas.

"Todo Poder aos Sovietes de Trabalhadores, Camponeses e Soldados!"

Às 3:30 da madrugada do dia 11 de dezembro de 1927, o primeiro ataque começou nas delegacias de polícia. Foi liderado pelo comandante Zhang Tailei, que foi morto em uma emboscada no dia seguinte – ele tinha 29 anos de idade. Uma série de ações coordenadas tomou conta da cidade. Suas exigências eram: "Arroz para os trabalhadores, terra para os camponeses!"; "Abaixo o militarismo!"; "Todo o poder aos sovietes de trabalhadores, camponeses e soldados!". 

Por trás desta mobilização estava o soviete (conselho) de trabalhadores de Cantão, cobrindo uma área que abrangia meio milhão de camponeses, trabalhando em conjunto com os sindicatos de trabalhadores urbanos. Uma comissão de guerra com a proporção de 10:3:3, de trabalhadores, soldados e camponeses, respectivamente, liderou a revolta que durou três dias. Ao tomar a cidade, este órgão emitiu uma série de oito decretos, impressos em massa e distribuídos. 


Selos comemorativos chineses / Reprodução

Os três primeiros decretos se concentraram no estabelecimento do poder dos sovietes, no armamento do povo e na retaliação contra os contrarrevolucionários. O quarto garantiu uma jornada de trabalho de oito horas e direitos para os assalariados e desempregados. O quinto tratava da economia e da nacionalização da indústria. A sexta demanda era sobre a propriedade da burguesia. O sétimo decreto tratava dos salários do exército e da sua reestruturação. A oitava e última demanda exigia a reorganização dos sindicatos. 

Naquele momento, porém, a organização militar da burguesia ainda era muito forte. Se os trabalhadores tivessem mantido a cidade por tempo suficiente para a chegada dos reforços camponeses – em uma marcha de seis dias de duração – a história poderia ter sido diferente. Ralph Fox, jornalista britânico e comunista, que mais tarde morreu durante os combates da Guerra Civil Espanhola, escreveu sobre o significado da "Comuna de Cantão": 

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"Durante três dias uma grande cidade em um país oriental dominado pelo imperialismo foi tomada e mantida pelas classes oprimidas que governavam através de seus sovietes. Houve erros técnicos e militares, mas, politicamente, não foram cometidos erros. O Partido Comunista da China, que liderou e organizou a revolta, tem motivos para se orgulhar de sua aplicação dos ensinamentos de Lênin nas difíceis circunstâncias da China. O trabalho do partido na insurreição mostrou não apenas que tinha os contatos mais próximos com trabalhadores, camponeses, pequenos burgueses e soldados, mas que entendia como reunir as maiores massas de todas estas classes para o apoio à revolução através de slogans corretos e uma linha política segura". (A Comuna de Cantão, 1928) 

O ano de 1927 foi um ponto de viragem para a Revolução Chinesa. O fato de as revoltas terem sido brutalmente reprimidas foi fundamental para a mudança estratégica do PCCh das cidades para o campo – para a criação de um exército popular e para o campesinato – "nossos amigos mais próximos". Em Lições da Comuna (1908), Lênin escreve: "E embora estas magníficas revoltas da classe trabalhadora tenham sido esmagadas, haverá outra revolta, diante da qual as forças dos inimigos do proletariado serão ineficazes, e da qual o proletariado socialista sairá completamente vitorioso". 

Algo semelhante poderia ser dito sobre os levantes chineses. Depois daquele ano do "Terror Branco", no VI Congresso do PCCh, em 1928, o 11 de dezembro foi oficialmente marcado como o aniversário da Revolução de Cantão, que "não só abriu um novo capítulo para a Revolução Chinesa, mas também tem grande significado na história da revolução mundial, com o mesmo valor que a grande Comuna de Paris". Mantendo-se fiel a isto, a Comuna de Cantão tem sido de fato lembrada, estudada e honrada desde então.

Em 2020, foi celebrado o 93º aniversário da Revolta de Cantão, que ficou conhecida como a "Comuna de Paris do Oriente". Para esta ocasião, um novo "teatro vermelho" foi produzido em conjunto com uma exposição no Salão Memorial da Revolta de Cantão, em um edifício da dinastia Qing, que havia sido usado como Academia de Polícia antes de ser transformado na sede do Soviete de Cantão. Em 1987, este local foi transformado em um memorial oficial. No evento comemorativo de 12 de dezembro, estudantes da escola do Exército de Libertação Popular recitaram o conto de Zhang Tailei, um show de marionetes contou a história das líderes femininas do levante e a bisneta do herói Yang Yin amarrou uma fita vermelha ao redor do colarinho de uma estudante – a passagem simbólica de um legado revolucionário de uma geração para a próxima.

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Até o aniversário da revolta, o teatro imersivo era apresentado quatro vezes por semana. Atores e membros do público reencenavam juntos a revolta, vestindo figurinos e pegando adereços de armas, tudo isso enquanto cantavam A Internacional. Quando Qu Qiubai ouviu esta canção pela primeira vez, na Rússia, há um século, ele provavelmente não tinha ideia do papel que desempenharia ao trazer este hino da "flor brilhante" da Comuna de Paris para a Comuna de Cantão. Ele não viveu para ver o "fruto feliz" no estabelecimento da República Popular da China, em 1949, nem o centenário da fundação do Partido Comunista da China, em 1º de julho deste ano. Em 1935, ele foi capturado, torturado e executado pelas forças do Partido Nacionalista. Dizem que ele cantou A Internacional até seu último suspiro. ■

 

*Tings Chak é designer-chefe do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, editora do Notícias da China (Dongsheng) e bolsista do Globetrotter/Peoples Dispatch.

Edição: Vivian Fernandes