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O Brasil, a pandemia e as elites do chicote

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Vidas humanas são demasiado baratas nesta terra desprotegida para quem controla o jogo expressar alguma preocupação por elas - Paulo Desana / Fotos Públicas
O prefeito disse isso! Eles nem disfarçam mais

“Contribua com a sua vida para que a gente salve a economia”. Inacreditável? Você acha? Seria fácil tachar a fala de “inacreditável” não houvesse o Brasil se tornado um berçário de eventos inacreditáveis.

Quem proferiu essa jóia foi o prefeito Sebastião Melo, personagem que a população de Porto Alegre elegeu em 2020. Ao constatar o espantoso sincericídio espalhado em vídeo pelas redes sociais, um internauta comentou: “O prefeito disse isso! Eles nem disfarçam mais”. É verdade.

As eleições municipais tiveram o condão de converter Melo de velho água morna do MDB em bolsonarista raiz. Defendeu a abertura geral do comércio sem quaisquer restrições, doa a quem doer. E quis mandar as crianças para as escolas, mesmo com o estado sob bandeira preta. Hoje, com a cidade no pico da devastação viral, corpos estão sendo colocados em contêineres...

Apelidado Melonaro pelo triplo mortal carpado que deu em sua carreira política, o prefeito está gostosamente afinado com o patronato nativo na sua proposta de indução ao suicídio dos CPFs em favor da saúde dos CNPJs.

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A convocatória para trocar a vida própria pelo lucro alheio é um senhor disparate, mas não é bem um ponto fora da curva nas prioridades das elites brasileiras.

No xadrez da vida e da morte que se joga neste instante da história do país, Melo é um simples peão.

A exemplo de muitos prefeitos e governadores, funciona menos como um representante do voto popular e mais como despachante de luxo dos graúdos, responsáveis pelas mais polpudas doações de campanha.

É o mando e comando do dinheiro que, em última instância, movimenta os cordéis e tutela este tipo de gestor. Não apenas hoje, mas desde sempre. Logo, pouco importa que a proposta ignore e pisoteie centenas de milhares de cadáveres.

Vidas humanas são demasiado baratas nesta terra desprotegida para quem controla o jogo expressar alguma preocupação por elas.

Em 1964, os donos da grana conspiraram dois anos pelo golpe com o qual mantiveram relação carnal durante duas décadas. Baixaram as trevas, muita gente morreu, mas o que importa é que o golpe abriu muitos e bons negócios.

Foi tão bom que, em 1969, os cofres do Bradesco e do Banco Mercantil/SP alimentaram a Operação Bandeirante (OBAN), máquina de moer carne humana que prendeu, torturou e assassinou.

Grupos como Ultra, Ford, General Motors, Nadir, Camargo Corrêa, Objetivo, Nestlé, General Eletric, Mercedes Benz, Siemens e Light também deram sua força. O patrocínio das masmorras tinha também o beneplácito da Federação das Indústrias/SP, a Fiesp, conforme apurou a Comissão Nacional da Verdade.

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Em 2016, com a história se repetindo como farsa, a Fiesp engajou-se em mais um golpe, desta vez com seu séquito de patos amarelos. A meta, atrás das belas palavras, eram novas e boas oportunidades como aquelas de 1964.

Veio 2018 e a alta-roda colocou suas fichas em um palhaço sinistro e seu aprendiz de feiticeiro. No passado, ele havia traduzido seu desprezo pela existência humana ao proclamar a necessidade “de matar uns 30 mil”. Mas havia jogadas interessantes no horizonte. E o Brasil? Ora, dane-se o Brasil!

A nova OBAN propiciada pela inépcia perversa do bolsonarismo e a cumplicidade dos que a sustentam não distingue ideologias e dispensa porões e paus-de-arara. Mata por atacado nas casas, nos postos, nos hospitais. Por falta de distanciamento, de testes, de leitos, de vacinas, de ar. Mostra-se imensamente mais produtiva.

Em 1998, entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, Darcy Ribeiro situou o DNA das elites locais nos senhores de escravos, dispostos a arrancar, a poder de chicote, toda a renda em vida que aquele servo lhes poderia dar. Nas palavras do pensador, antropólogo e grande brasileiro, um escravo era usado como carvão que se queima para ter mais lucro.

Cruéis como sempre, reproduzindo o impulso atávico do escravocrata, essas classes dominantes já ajudaram Bolsonaro a queimar 257 mil vidas na pandemia.

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“Não há lugar no mundo para fazer um país melhor do que esse. Mas tem uma classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente”, resumiu Darcy Ribeiro.

O pior é que, agora, milhares de brasileiros e brasileiras, que ajudariam a fazer o país melhor pensado por Darcy, estão morrendo como nunca. E os senhores de escravos estão mais vivos do que nunca.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante