São Paulo

Com aval do MP, posseiro tenta remover 100 famílias e montar fábrica de fertilizantes

Área da União em Jardinópolis (SP) é ocupada desde março de 2020; MPSP contraria CNJ e defende reintegração na pandemia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Famílias adotaram modelo agroflorestal e começaram a produzir alimentos saudáveis no local - Filipe Augusto Peres

Cerca de 100 famílias que vivem desde 9 de março de 2020 no acampamento Campo e Cidade Paulo Botelho, em Jardinópolis (SP), estão mobilizadas para tentar reverter um pedido de reintegração de posse da área em plena pandemia.

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A reintegração foi solicitada três dias após a ocupação da área. O empresário Marcos Antônio Rios Clementino, que alega posse e propriedade do terreno, pretende construir uma fábrica de fertilizantes e um posto de gasolina no local.

No último dia 25, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) recomendou que a Justiça não siga a orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para cancelar despejos durante a pandemia.

O Brasil vem quebrando recordes diários de mortes por covid-19 e, na avaliação do órgão, deixar mais famílias sem casa nesse período agravaria ainda mais a crise sanitária e econômica.

“A recomendação do CNJ, como dito, não é norma, é mera recomendação e não deve ser adotada de forma indiscriminada e a todas as situações”, diz documento assinado pela promotora Maria Julia Câmara Facchin Galati, ressaltando que a liminar para reintegração de posse da área aguarda cumprimento há um ano.

“O feito se prolonga há tempos, as famílias que vivem no local estão em estado de precariedade e muito longe da situação ser concretização do direito digo à moradia. Por outro lado, o autor está tolhido de usar a sua propriedade”, completa o texto.

Com base na recomendação do MPSP, a 1ª Vara Cível de Jardinópolis determinou o cumprimento imediato da liminar, mas os acampados prometem resistir.

Proposta é criar comunidade autogestionada

O acampamento é organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pela União dos Movimentos de Moradia (UMM). O terreno tem 81,5 mil m² e fica às margens da Rodovia Anhanguera, no Km 337, na área da antiga Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA), hoje administrada pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU).

O município de Jardinópolis pertence à Região Metropolitana de Ribeirão Preto (SP), a 330 km da capital paulista.

A proposta dos acampados é que a área seja destinada à construção de uma “comuna”, ou seja, uma comunidade autogestionada pelos trabalhadores, que sirva tanto para moradia quanto para produção de alimentos saudáveis. O prefeito de Jardinópolis, Paulo Brigliadori (Cidadania), concorda com essa alternativa e enviou um ofício à SPU no último dia 19 requerendo a área em disputa para implementação do projeto.


Acampados produzem alimentos saudáveis em área da União, em Jardinópolis (SP) / Filipe Augusto Peres

Posto de combustível e indústria de fertilizantes

Marcos Antônio Rios Clementino diz ter comprado o imóvel de posse do empresário Reginaldo Alexandre do Nascimento, que, por sua vez, afirma tê-lo adquirido anteriormente de outro indivíduo, José Carlos Junqueira de Andrade.

“Ele [Clementino] só tem uma escritura de compra e venda. Não é escritura do imóvel”, ressalta o advogado popular Luciano Botelho, que defende os acampados e critica a postura do MPSP. “Talvez eles nem conheçam o posseiro, mas o ódio de classe leva sempre a criminalizar o movimento.”

No dia 13 de fevereiro, a Advocacia Geral da União (AGU) reconheceu que o terreno pertence à União. O documento é assinado pelo superintendente do patrimônio da União no Estado de São Paulo, Dênis Fabrisio de Oliveira Selymes.

A intenção de construir um posto de combustível e uma indústria de fertilizantes no local foi informada por Clementino em ofícios enviados um ano atrás à prefeitura de Jardinópolis.


Documento mostra que uma das intenções é construir fábrica de fertilizantes no local do acampamento / Reprodução


Documento mostra que outra intenção é construir posto de gasolina / Reprodução

O Brasil de Fato entrou em contato com Marcos Antônio Rios Clementino e apresentou os questionamentos feitos por Botelho e pelos ocupantes do terreno. Não houve retorno até o momento. A reportagem será atualizada assim que as respostas forem obtidas.

Histórico do acampamento

O MST reivindica, desde 2011, áreas remanescentes da Rede Ferroviária Federal S.A., extinta em 2007. O terreno em disputa, no Km 332 da ferrovia em Jardinópolis, foi transferido do inventário da empresa para a Secretaria do Patrimônio da União.

A área não possui matrícula regularizada em cartório, constando ainda a Ferrovia Paulista S.A. (FEPASA) na documentação atual. A FEPASA, empresa pública estadual, foi incorporada à Rede Ferroviária Federal S.A. em 1997.

“A área não tinha nada, estava praticamente improdutiva, e inclusive ocorriam vários incêndios”, lembra Neusa Botelho Lima, integrante da direção estadual do MST de São Paulo, que acompanha de perto as mobilizações contra a reintegração de posse no acampamento em Jardinópolis.

Camponeses, organizados pelo MST, e trabalhadores urbanos, em sua maioria pedreiros e comerciantes informais, se uniram em torno do lema “terra, trabalho e teto.”

O solo, que antes era coberto por mato, capim e rejeitos agroindustriais, passou a servir de moradia, inicialmente, para 50 famílias. Daquela terra, devastada pelo uso ilegal de empresas locais para produção de cana-de-açúcar, começaram a brotar alimentos saudáveis para subsistência, como mandioca, feijão de corda e abóbora.

A dirigente do MST lembra que a produção está apenas começando, e será potencializada assim que o projeto da comuna for autorizado.

Nos últimos meses, os acampados e assentados da reforma agrária na região viraram notícia por duas iniciativas positivas. Primeiro, a entrega de 37 toneladas de alimentos para moradores de favelas locais. Em seguida, pela introdução do modelo de produção agroflorestal, como parte da campanha “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”.

Neusa Botelho Lima enfatiza que o acampamento marca o retorno de uma geração de filhos de trabalhadores rurais, que migraram à cidade nas últimas décadas, e agora planejam novamente tirar o sustento do campo.

A pressão decorrente do pedido de reintegração de posse e dos incêndios criminosos no local vem atrasando a estruturação das moradias, que ainda são precárias no acampamento.

“A gente ainda não conseguiu dar um gás na questão da moradia porque está com esse processo de reintegração. Então, a gente fica meio com o pé atrás de fazer. Mas cada um já construiu seu barraquinho, pelo menos para conseguir pernoitar e fazer seu trabalho”, explica Lima.


Parte do acampamento Campo e Cidade Paulo Botelho foi destruída por dois incêndios criminosos. / Filipe Augusto Peres | MST / Filipe Augusto Peres | MST

As famílias organizadas no entorno da UMM geralmente são oriundas de favelas. Só em Ribeirão Preto, são 90 comunidades com essa característica, e o movimento está presente em 18 delas. Quase todas enfrentam processos de reintegração de posse.

A disputa

O processo movido em 2020 pelo posseiro Marcos Antônio Rios Clementino, alegando a propriedade do imóvel, tem mais de 550 páginas.

Reginaldo Alexandre do Nascimento, que vendeu o terreno a Clementino, alega tê-lo comprado em 1989. O reconhecimento da firma data de 2011. Para o advogado popular Luciano Botelho, as inconsistências mostram que há um movimento orquestrado para aproveitar brechas legais e abrir caminho para a especulação imobiliária.

“Eles estão se aproveitando do fato de que não há registro dessa área no cartório e estão entrando com usucapião”, explica. “A prática é a mesma da grilagem. Então, o Marcos Antônio é um dos grileiros dessa faixa, porque no Km 336 [da ferrovia] tem outro, com o mesmo advogado [Odair Nunes de Siqueira], e tem mais uns dois ou três nessa mesma faixa. São pessoas que têm dinheiro e estão ali no intuito de especular sobre a área.”

Os acampados conseguiram suspender a liminar que determinava a reintegração de posse em março de 2020. No final do ano, assim que Ribeirão Preto passou da fase vermelha à a fase amarela na classificação de risco da covid-19, a Justiça local ordenou o cumprimento imediato da reintegração.


Integrante do MST reconhece que, devido ao assédio dos especuladores, a moradia no acampamento ainda é precária / Filipe Augusto Peres

Em 15 dezembro, os acampados foram avisados por um oficial de justiça que deveriam sair até cinco dias. O prazo foi considerado inviável, e eles permaneceram.

O recesso de final de ano deu novo fôlego à resistência dos ocupantes. Com o reinício das atividades, houve nova determinação para cumprimento imediato da reintegração, mas o reconhecimento da AGU de que as terras são públicas podem mudar o cenário.

A secretaria que administra o patrimônio da União juntou aos autos do processo o documento que afirma o domínio do local onde está o acampamento, mas aquela informação foi desconsiderada pelo MPSP.

“Ao ignorar manifestação da SPU, AGU, recomendação do CNJ para a suspensão de reintegrações de posse durante a pandemia, o Ministério Público não só advoga para posseiro e favorece a grilagem de terras no interior do estado de São Paulo, mas se crê maior que o próprio Estado”, diz nota divulgada pelo MST na última terça-feira (2).

Segundo o advogado Luciano Botelho, a reintegração só não foi cumprida devido à intercessão de parlamentares paulistas, como o deputado federal Paulo Teixeira (PT) e as deputadas estaduais Marcia Lia (PT) e Professora Bebel (PT).

Em 12 de fevereiro, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), Helder Salomão (PT), solicitou ao governador João Doria (PSDB) que realize “esforços para que a solução desses conflitos seja obtida por meio de políticas públicas, objeto de diálogo entre as três esferas de governo”. 

A reforma agrária está paralisada no Brasil desde 27 de março de 2019, conforme determinação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Edição: Poliana Dallabrida