Injustiça fiscal

Paraísos fiscais ocupam 4 das 5 primeiras posições no ranking de vacinação da covid

População reduzida facilita campanhas de imunização, mas pode não ser a única explicação para eles terem saído na frente

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Seychelles, um paraíso fiscal, foi o primeiro país africano a obter vacinas contra a covid-19 - ALBERTO PIZZOLI / AFP

Dos cinco países que lideram o ranking mundial de vacinação contra a covid-19, quatro são paraísos fiscais.

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Conforme monitoramento realizado pelo projeto Our World in Data, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, com atualização na última quinta-feira (25), 99,05% da população do território ultramarino britânico de Gibraltar, na costa sul da Espanha, recebeu ao menos uma dose da vacina.

Em Seychelles, arquipélago de 115 ilhas no Oceano Índico, próximo à costa leste da África, a vacina chegou a 71,76% da população. Em seguida, aparecem os Emirados Árabes Unidos, na península arábica, com 59,11%. Nas Ilhas Cayman, situadas 260 km ao sul de Cuba, 32,12% dos habitantes começaram a ser imunizados. 

O intruso no “top-5”, com 91,55%, é Israel, que não é considerado um paraíso fiscal e aparece atrás apenas de Gibraltar no ranking.

Entenda

Paraísos ou refúgios fiscais são territórios cuja legislação facilita a aplicação de capitais estrangeiros, com alíquota de tributação nula ou muito menor que nos países de origem. Na maioria deles, as operações financeiras se dão sob segredo fiscal.

Abrir uma conta nesses países é uma manobra comum, entre grandes empresários, para pagar menos impostos e ocultar bens e patrimônio. Não se trata de uma operação ilegal, desde que o dinheiro ou bem tenham origem lícita e sejam declarados ao fisco do país.

Dentre os quatro paraísos fiscais citados, os Emirados Árabes têm a maior população, cerca de 10 milhões de habitantes. Os demais estão entre os 50 menos populosos do mundo, mas essa pode não ser a única explicação para sua posição privilegiada no ranking global da imunização.

“Não há como descartar a hipótese de que a questão tributária seja um elemento relevante para explicar a diferença para países subdesenvolvidos, da periferia do sistema capitalista”, analisa o economista Bruno Moretti, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e assessor técnico do Senado Federal.

“A massa de recursos que esses países recebem, com tratamento fiscal privilegiado, nenhum ou pouquíssimo pagamento de imposto sobre essas rendas, contribui para essa disparidade”, acrescenta.

Na comparação com os vizinhos, fica claro que os paraísos fiscais começaram a vacinar antes. Seychelles foi o primeiro país do continente africano a aplicar doses contra a covid-19, em janeiro de 2021.

Território ultramarino britânico na América do Norte, as Ilhas Cayman receberam doses da vacina da Pfizer “de presente” do Reino Unido, logo após a virada do ano, e saíram na frente de qualquer outro território caribenho.

“Cerca de US$ 85 bilhões migraram do Brasil para as Ilhas Cayman em 2019”, ressalta Moretti. “E essa enorme perda tributária acaba reforçando, no governo e no Legislativo, uma agenda de austeridade, que ataca a questão fiscal pelo lado da defesa e pressiona, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS), sem combater de fato essa sangria de recursos aos paraísos fiscais.”

Injustiça fiscal

Em novembro de 2020, a organização TaxJustice Network (Rede Internacional de Justiça Fiscal, em português) estimou que paraísos fiscais “tiram” do Brasil cerca de US$ 15 bilhões ao ano – o equivalente a R$ 80 bilhões.

O dado se baseia em uma estimativa de perdas tributárias, enquanto Moretti se referia ao total de Investimentos Diretos Externos (IDE) de brasileiros nas Ilhas Cayman.

“Nações estão perdendo em média o equivalente a 9,2% de seus orçamentos de saúde para paraísos fiscais a cada ano, com países de baixa renda perdendo comparativamente mais do que o triplo dos países de maior renda”, diz documento publicado pela organização em meio à pandemia.

“Os países de baixa renda perdem o equivalente a 5,8% de sua receita tributária arrecadada, enquanto os países de alta renda perdem 2,5%.”

O material produzido pela Rede Internacional de Justiça Fiscal reforça que há desigualdade dentro dos próprios paraísos fiscais: “Mesmo as populações dos paraísos fiscais mais agressivos, que minam os direitos tributários de outros países, normalmente não se beneficiam dos limitados ganhos obtidos.”

O documento é anterior à descoberta de vacinas contra a covid-19, que complexifica essa análise. Afinal, para a imunização ser eficiente, é preciso que o conjunto da população tenha acesso a doses, e não apenas um grupo restrito – como poderia ocorrer com outras políticas públicas de saúde.

Como eles têm condições de comprar vacinas

Apesar das baixas alíquotas, os paraísos fiscais costumam ter arrecadação – proporcionalmente a suas populações – superior à maioria dos países da Ásia, África e América Latina.

Essa arrecadação se baseia, em primeiro lugar, em altas taxas alfandegárias e de importação, muitas vezes aplicadas ao preço de qualquer item vendido localmente.

Movimentar dinheiro em contas nesses países custa pouco, mas o Estado também arrecada com taxas de registro bancário e renovação anual mais altas que a média mundial, além de cobrar licenças específicas para certos tipos de atividade.

Vários paraísos fiscais sobrevivem ainda do turismo, que funciona como receita extra.

Outro fator relevante é que os governos de países considerados paraísos fiscais costumam cooperar entre si. As Ilhas Seychelles, por exemplo, só puderam começar a imunizar sua população graças às 50 mil doses da vacina chinesa Sinopharm doadas pelos Emirados Árabes Unidos.

O país do Oriente Médio comprou tantas doses – o número exato não foi divulgado – que a campanha de imunização local se tornou chamariz para agências de viagem internacionais.

Desde fevereiro, clubes de elite do Reino Unido oferecem pacotes para idosos em que uma das atrações é tomar vacina – além de passear pelos shopping centers de luxo da capital, Dubai.

Países desenvolvidos têm responsabilidade

O economista Bruno Moretti adverte que a crítica às causas dessa desigualdade deve mirar os países do centro do capitalismo, e não apenas a legislação desses refúgios fiscais.

“Esses paraísos fiscais são uma parte importante da ‘regra do jogo’, para preservar o valor dessas massas de riquezas, concentradas em países centrais. E isso faz toda a diferença para explicar a desigualdade do caso específico, do acesso às vacinas”, explica Moretti.

Desde 2019, o Reino Unido e sua "rede de paraíso fiscal corporativo" são considerados pela Rede Internacional de Justiça Fiscal o "maior facilitador do mundo de elisão fiscal corporativa". Elisão fiscal é o  planejamento tributário baseado em métodos legais para diminuir a carga de impostos.

"O Reino Unido fica com a parte do leão ao assumir esta responsabilidade, graças à sua rede de jurisdições satélites. Estas minam de forma agressiva a capacidade dos governos ao redor do mundo em aplicar impostos às multinacionais", avalia a organização.

Ao mesmo tempo, Moretti pondera que a situação desfavorável do Brasil na pandemia e na corrida por vacinas não decorre apenas de um problema tributário. “O que existe, no nosso caso, é a combinação de fatores políticos – negacionismo do governo e boicote dos protocolos de distanciamento social – com o fator econômico”, finaliza.

Alternativas

Para Grazielle David, doutoranda em economia, produtora do podcast É da sua conta e assessora da Rede Internacional de Justiça Fiscal, o mundo poderia ter encarado o processo de vacinação de forma diferente.

“Ao invés de ser uma disputa, poderia ser uma cooperação para acesso à vacina”, afirma.

 “Junto à OMC [Organização Mundial do Comércio], seria possível avançar para obter a licença compulsória, uma permissão para se abrir a patente, por se tratar de uma situação extraordinária, e assim mais países conseguiriam produzir. Se isso não é feito, a vacina fica na mão das grandes corporações, que distribuem para quem pode comprar.”

A especialista ressalta que o Canadá, um país rico, fez acordos para comprar o dobro de doses do que o necessário para imunizar sua população. Mas, por não terem indústrias produtoras de vacina, ficaram fora da lista de países preferenciais e receberam as vacinas depois de Estados Unidos e União Europeia.

“Isso mostra como ter indústria, laboratórios públicos, é essencial, não só como questão de saúde, mas de soberania nacional”, analisa David. 

“No Brasil, a Fiocruz e o Butantan fizeram parcerias importantes, mas o princípio ativo vem de fora, porque nossos investimentos nessa área vêm caindo ao longo dos anos.”

Grazielle David lembra que o valor que o Brasil perde por ano em forma de fluxos financeiros ilícitos e abusos tributários seria suficiente para vacinar, com duas doses da vacina russa Sputnik, toda a população.

“Pelo menos um terço dos países estão passando por um cenário de austeridade fiscal, mas existe uma série de alternativas. Ao limitar esses fluxos financeiros no cenário internacional, ou mesmo implementando revisões de gastos tributários em cada país, seria possível fechar os canais de evasão e obter recursos para políticas públicas”, conclui.

O Brasil vacinou menos de 3% de sua população contra a covid-19 até o momento.

Edição: Leandro Melito