Paraíba

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Educação Étnico-racial e a difícil implementação no ensino de Relações Internacionais

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Antiga Sede da Organização da Unidade Africana em Acra, Gana, um país da África Ocidental. - Acervo Pessoal
a historiografia das relações internacionais tem relegado o continente africano à invisibilidade

Educação Étnico-racial e a difícil implementação no ensino de Relações Internacionais

 

Por Mojana Vargas*

 

Neste artigo, apresento algumas reflexões a respeito de como a formação socioeconômica do Brasil está associada à produção científica e ao ensino no campo das Relações Internacionais/ RI, com ênfase para a quase ausência de discussões sobre o racismo e as relações raciais no processo de desenvolvimento dos estudantes de graduação em RI, assim como nas pesquisas realizadas nesse âmbito. Acerca desse tema, reproduzo aqui alguns argumentos produzidos em texto recente em coautoria (Vargas e Contti Castro, 2020).

A colonialidade é o resultado da ocupação colonial e da construção de estruturas sociais e econômicas voltadas para o atendimento das necessidades econômicas das metrópoles coloniais, originando sociedades profundamente desiguais, violentas e individualistas, desprovidas de laços comunitários fortes, nas quais o senso de cidadania é bastante fraco, quando não mesmo inexistente.

No caso específico do Brasil, a principal marca da colonialidade pode ser percebida na profunda desigualdade social existente no país, resultado da concentração de poder econômico iniciada durante o período colonial (século XVI), com um segundo fator associado – a desigualdade racial – herança do passado escravista do país.  

Essa particularidade faz com que a sociedade brasileira seja profundamente racializada desde a sua formação inicial, ou seja, determinados grupos raciais, a exemplo dos povos indígenas e população negra, têm sido inferiorizados, discriminados e desrespeitados em razão de sua aparência física (cor da pele, textura de cabelo, etc.). Esse processo de racialização costuma ser mascarado no nível político e ideológico, de maneira a reduzir as causas da desigualdade nas nossas relações sociais ao componente econômico, o que já foi demonstrado por diversos autores. Porém, a diferenciação racial é um elemento basilar da desigualdade no Brasil, fazendo com que a discriminação racial seja um elemento estruturante – ainda que implícito – da sociedade brasileira (Hasenbalg, 1992).

Nesse contexto, a produção do conhecimento formal – por meio da pesquisa – e sua reprodução – via sistema educacional – são elementos chave para estabelecer o espaço da população negra na sociedade brasileira e os limites de suas trajetórias intelectuais, profissionais e sociais. O ensino formal é um mecanismo indispensável para a reprodução de todo o arcabouço conceitual que permitiu o estabelecimento daquilo que hoje conhecemos como disciplinas científicas, tal como a História, a Geografia e as Relações Internacionais, mas, sobretudo, instrumento privilegiado para a reprodução de conceitos e mentalidades colonizadas. Em nosso país, o conceito da democracia racial permanece presente como forma de explicar a organização de nossa sociedade, a despeito de todas as pesquisas e mobilizações da população negra demonstrando o contrário. A introdução das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCN-ERER, 2004), foi resultado do enfrentamento a esse quadro conceitual e político, no contexto das ações afirmativas e que gerou impactos nos cursos de graduação, como é o caso de Relações Internacionais.

A despeito do grande avanço representado pela Lei 10639/03 (Educação das Relações Étnico-Raciais, História da África e Cultura Afro-Brasileira) e os seus desdobramentos, este foi apenas o início do processo pois, além da resistência colocada por muitas das instituições educacionais brasileiras em aplicar a lei, há uma dificuldade específica da área de Relações Internacionais, que, diferentemente de outras disciplinas acadêmicas, mantiveram-se muito vinculadas ao conjunto de paradigmas positivistas que constituem o núcleo duro do campo, continuando a privilegiar as visões centradas no poder do Estado, deixando pouco espaço para a compreensão do papel dos movimentos sociais tanto no âmbito doméstico quanto no internacional para a construção de decisões nessa área.

Esse apego se reflete não apenas em sua produção científica, mas também nos processos de formação dos novos profissionais de Relações Internacionais, o que se pode constatar observando os currículos das universidades públicas brasileiras, constituídos por unidades curriculares prioritariamente voltadas para o estudo das teorias e práticas de Relações Internacionais construídas a partir do norte global.

Somente com o crescimento da influência das perspectivas críticas no campo das Relações Internacionais é que se tornou possível trazer para o seio da área um conjunto de temáticas, abordagens teóricas e metodológicas que vinham ganhando espaço em outros campos do conhecimento muitas décadas antes. Tal é o caso do debate sobre Relações Étnico-Raciais, desenvolvido nas diferentes disciplinas do campo das ciências humanas e sociais e que só recentemente vem ganhando espaço nas discussões em Relações Internacionais.

A repercussão mais importante desse processo na área foi a regulamentação dos cursos de graduação de Relações Internacionais, instituída pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Relações Internacionais (DCN-RI). Instituídas pelo Conselho Nacional em Educação em 2017, as DCN-RI incorporaram a obrigatoriedade do ensino de História, Cultura Afro-brasileira e Africana, História e Cultura Indígena, Educação Ambiental e Direitos Humanos a todos os cursos de bacharelado em Relações Internacionais do país. Essa inclusão pode ser realizada por meio da criação de disciplinas específicas ou por meio da abordagem transversal dessas temáticas nas variadas disciplinas ofertadas pelos cursos.

No entanto, ainda existem problemas para implantação da norma, passando por resistências institucionais e pelo despreparo do corpo docente disponível nos cursos de graduação em Relações Institucionais em todo Brasil, cuja formação foi realizada em contextos acadêmicos impermeáveis a esse tipo de debate.

No nível institucional, há uma variedade muito grande de realidades específicas que afetam a implantação das DCN-ERER (agora já incorporadas também às DCN-RI), contudo, dois elementos comuns são mais evidentes no cenário do ensino superior brasileiro. O primeiro é a institucionalização do racismo no Brasil, que faz com que a resistência à implantação de políticas afirmativas seja feita por meio da inação institucional. Vale lembrar que as principais universidades brasileiras foram avessas à adoção de ações afirmativas durante décadas. Uma vez que esse mecanismo foi transformado em lei, a estratégia passou a ser a omissão, o que se torna muito evidente ao observar-se que o Conselho Nacional de Educação estabeleceu a norma para introdução das DCN-ERER para todos os cursos de ensino superior do país em 2004 e, passados mais de quinze anos, o número de universidades que aplicam a lei ainda é bastante reduzido, inclusive entre as universidades públicas brasileiras.

Um segundo fator é a imensa discrepância entre a oferta de vagas nas universidades públicas e privadas. Segundo dados do INEP, dos 151 cursos de graduação em Relações Internacionais existentes no país, apenas 26 são oferecidos por universidades públicas (municipais, estaduais e federais).

Segundo dados levantados por Marrielle Maia sobre o perfil dos cursos de RI no Brasil, 61% dos cursos não incluem tópicos ou disciplinas voltadas para a ERER. 25% dos cursos não divulgam suas matrizes curriculares, não permitindo saber se há a oferta ou não. Os números demonstram para além de qualquer dúvida que a implementação efetiva da política pública nos cursos de graduação em RI ainda tem um longo caminho para se tornar realidade.

No caso da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o quadro geral observado demonstra o não cumprimento da lei, já que a imensa maioria dos cursos ainda não integrou o debate das DCN-ERER aos seus respectivos componentes curriculares, apesar da norma interna estabelecida pela Resolução Consepe 16/2015. Entre os que o fizeram, além do número ser reduzido (apenas 30,27% até o início de 2020), ainda há observações a fazer sobre a forma como tal ocorreu. A questão é que, apesar da edição de uma regra interna para incorporação das DCN-ERER na estrutura curricular dos cursos, o próprio texto da resolução gera possibilidades para a adoção de soluções “cosméticas”, tal como seminários temáticos com carga horária reduzida ou disciplinas optativas. Contudo, os cursos mais fechados à discussão são os das áreas de Ciências da Saúde e de Ciências Médicas, com um total de 11 carreiras e apenas 1 curso que oferece esse conteúdo. Situação que contraria não apenas a Resolução Conselho Nacional da Educação/Nº 01/2004, que instituiu as DCN-ERER e a Resolução Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão-Consepe/UFPB 16/2015/UFPB, mas também a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.

No caso do curso de Relações Internacionais na UFPB, o debate sobre a reformulação da estrutura curricular ainda está em andamento. Como alternativa, o colegiado do Departamento adotou um projeto coletivo chamado “Dimensões Étnico-Raciais no Ensino de Relações Internacionais”. O objetivo é promover oficinas de formação para docentes e estudantes monitores para identificar tópicos que possam ser desenvolvidos associando a discussão sobre relações raciais a partir dos conteúdos específicos dos componentes curriculares do curso de RI. Como exemplo, temos discutido como a historiografia das relações internacionais tem relegado o continente africano à invisibilidade ou a uma posição subalterna e passiva no cenário internacional, como resultado de um conjunto de premissas analíticas influenciadas por uma visão racista não explicitada pelos autores.

A partir das constatações apontadas acima, cabe refletir sobre as possibilidades de reverter esse quadro. Dar efetividade à implantação das DCN-ERER requer o envolvimento amplo dos profissionais de Relações Internacionais que atuam como docentes e pesquisadores. Como indivíduos que definem as diretrizes de ação institucional nas universidades, ocupam posição estratégica para problematizar os parâmetros atuais de ensino e pesquisa na área das Relações Internacionais.

Algumas Referências

CARVALHO, J. J. “Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras”. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (Orgs). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

HASENBALG, C. Relações raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo. 1992.

MAIA, M. Formação em Relações Internacionais no Brasil: panorama dos cursos de graduação e perfil dos egressos. Belo Horizonte. Editora PUC-Minas, 2020.

VARGAS, M.; CONTTI CASTRO, A. O ensino e a pesquisa em relações internacionais no Brasil: sentidos e desafios da decolonialidade. OASIS. 32 (jun. 2020), p. 125-150. Disponível em: https://revistas.uexternado.edu.co/index.php/oasis/article/view/6589

*NEABI-CCHLA/UFPB e Departamento de Relações Internacionais/UFPB

Edição: Heloisa de Sousa