Vai piorar mais?

Clube-empresa ‘é mau negócio’, mas projeto ganha força no Senado

PL do novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco,mantém problemas estruturais do futebol brasileiro

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Especialistas dizem que o PL não combate problemas antigos dos clubes, como a sonegação e endividamento - Agência Corinthians

A transformação dos clubes de futebol em sociedade anônima, por meio do clube-empresa, deve ganhar força no Congresso Nacional, após a eleição de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) à presidência do Senado. Autor do Projeto de Lei (PL) 5516/2019, o parlamentar promete mais investimentos privados, gestões modernas e crescimento do esporte no Brasil. O teor do PL, entretanto, é questionada por especialistas em gestão esportiva.

O PL de Rodrigo Pacheco propõe a criação de uma nova estrutura societária para o futebol, a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que envolve um conjunto de regras específicas para o mercado do futebol. O texto, instruído pelos advogados José Francisco Manssur e Rodrigo Monteiro de Castro, tem como base os modelos de negócio da Espanha e Portugal – ambos criticados pelos especialistas ouvidos pela Rede Brasil Atual.

O jornalista e pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Irlan Simões, também organizador do livro Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol (Corner, 2020), afirma que o projeto pode colocar os clubes nas mãos de grupos privados “inescrupulosos”.

O consultor esportivo Amir Somoggi, diretor da Sports Value, explica que o projeto do SAF não combate os principais problemas do futebol brasileiro, como a sonegação e endividamento dos clubes. “O projeto não garante o fortalecimento do futebol. Não tem nada ali que garanta que o futebol brasileiro saia do atoleiro e tenha boas gestões. Não é uma canetada de um deputado que vai mudar 30 anos de sonegação fiscal e má administração, transformando em gestões modernas e numa economia pujante”, afirmou.

Sociedade Anônima do Futebol

O Projeto de Lei de Pacheco propõe a criação de uma estrutura societária específica para o futebol, diferente do que a legislação brasileira já prevê atualmente. Como por exemplo, as empresas de sociedade anônima, limitada ou sem fins lucrativos. A ideia da SAF é criar mecanismos e travas de segurança específicas para o futebol profissional.

A ideia é que a SAF, diferentemente da uma sociedade anônima comum, crie debêntures específicas, ou seja, títulos de dívida que o clube-empresa poderia emitir no mercado financeiro para captar investimentos com juros mais baixos.

O projeto prevê que os clubes poderão se converter em SAFs, ou criar uma SAF como subsidiária, com os ativos relacionados ao futebol. A sociedade do clube-empresa terá o capital dividido em ações e a responsabilidade dos acionistas será limitada às ações adquiridas. O PL abre a possibilidade de pessoas físicas, empresas e fundos de investimentos controlarem os times.

O PL ainda propõe um regime tributário facultativo, de natureza transitória, denominado “Re-Fut”, com o recolhimento único de 5% da receita mensal, apurada pelo regime de caixa. Essa porcentagem quitaria três tributos de uma só vez: o IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica), a CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Atualmente, as demais empresas são obrigadas a recolher 25% sobre o lucro referente ao Imposto de Renda e 9% sobre a CSLL, além de 3% sobre as receitas para a Cofins.

“Tática”

Amir Somoggi aponta problemas na essência do PL 5516. Na avaliação dele, como a proposta enfatiza que os fundos de investimentos podem comprar clubes, isso mostra o espírito real por trás dele. “A lei precisa de uma base de sustentação que vai além de só pensar no dono do clube, mas como o time pode fazer parte disso sem perder o controle da entidade”, disse o especialista.

O consultor esportivo também lamenta a proposta de tributação do PL, que considera uma benesse às entidades. “Os clubes devem bilhões para o fisco e ainda querem dar essa tributação. Os grandes clubes faturam R$ 1 bilhão ao ano. Qual empresa que possui esse faturamento e paga apenas 5% de imposto? Na Alemanha, o imposto é de 30% para os clubes”, compara.

Clube-empresa tem profissionalismo?

O principal argumento de Rodrigo Pacheco é que o SAF melhoraria a gestão dos clubes, ampliaria o valor de mercado dos torneios nacionais e aumentaria as receitas dos clubes. Segundo Irlan Simões, na prática, o Projeto de Lei possui um “excesso de mentiras”.

De acordo com ele, o PL se orienta pela mesma lógica neoliberal que tenta privatizar serviços públicos, com o argumento de “melhorar a eficiência de serviços”. “Não é verdade que os clubes que viram empresas são mais bem geridos e ficam mais ricos. Os times europeus são mais ricos porque a economia de lá é melhor. No Brasil, tivemos clubes que viraram empresas e caíram nas mãos de grupos privados inescrupulosos, trazendo problemas para esses clubes. Bahia, Vitória e Figueirense são exemplos. Você vai ter o Cuiabá, agora, como um exemplo positivo, mas será um dos tantos clubes que aparecem e morrem, em pouco tempo”, afirmou.

Bola fora

Citado por Irlan, o Esporte Clube Vitória foi o primeiro clube brasileiro a adotar o modelo de sociedade anônima e vender a maioria das ações para um grupo de investimentos estrangeiro, o argentino Exxel Group, no começo dos anos 2000. Em 2004, com a crise cambial da Argentina, o grupo escolheu deixar de investir o prometido no clube baiano. Naquele mesmo ano, o Vitória caiu para a Série B do Campeonato Brasileiro. No ano seguinte foi rebaixado para a Série C e a diretoria da instituição precisou negociar o pagamento parcelado da recompra das ações.

O pesquisador acrescenta que, quando o clube se transforma em empresa, ele fica suscetível ao que ocorre com todo tipo de empresa: a falência. “Na Itália foi o que aconteceu, times fecharam as portas. Alguém refundou com cores e emblema parecidos e voltaram. Na Espanha, não aconteceu isso porque os clubes têm uma força política enorme. O que ocorreria no Brasil?“, alerta.

Somoggi afirma também que o projeto da SAF foi “escrito pelo capital, pelos donos dos interesses econômicos”, sem a participação da sociedade. “Aquilo está sendo legislado para dar certo para um fundo de investimento, empresas, não é para a sobrevivência da Ponte Preta ou XV de Jaú.”

Neoliberal em campo

Os especialistas dizem que o projeto de clube-empresa tem suas fundamentações teóricas, porém, equivocadas. Na justificativa do PL, Rodrigo Pacheco trata as experiências mercadológicas no futebol espanhol e português como “exemplos bem-sucedidos”. Na avaliação de Irlan Simões, as considerações são “absurdas e irreais”.

Ele lembra que os clubes espanhóis endividados foram transformados em sociedades anônimas, em 1990, através da Ley del Deporte. Apesar disso, em 2010, grandes clubes, como Valencia e Atlético de Madrid, possuíam dívidas de cerca 500 milhões de euros. Outro exemplo citado é o tradicional Málaga, comprado em 2010, pelo xeique do Catar Abdullah bin Nasser. Sob essa gestão, o clube conseguiu uma classificação inédita à Uefa Champions League, em 2012. Pouco depois, o Málaga passou a arcar com punições da Uefa por atrasos de salários e dívidas acumuladas e acabou banido das competições europeias. Hoje, o time disputa a segunda divisão espanhola.

Em Portugal, onde foi aplicada a lei da Sociedade Anônima Desportiva, um dos exemplos do fiasco de clube-empresa é o tradicional Belenenses. O clube português foi vendido à empresa Codecity Sports Managment, do empresário Rui Pedro Soares, em 2012. O acordo previa prioridade na recompra dessas ações, se assim o clube entendesse ser o ideal, mas a devolução dos ativos foi negada pela empresa, o que tirou o poder da associação. Sem voz ativa no clube, os sócios e torcedores tiveram que criar um novo time para disputar a última liga portuguesa.

Gol contra

Pioneira desse tipo de legislação, a Itália criou sua lei de sociedade anônima do futebol, a Societá per Azioni, anos antes, em 1981, alegando alto endividamento e corrupção nos clubes. Entretanto, nos últimos 35 anos, dos 63 clubes que participaram de ao menos uma edição da Serie A, a primeira divisão italiana, 40 faliram pelo menos uma vez.

Somoggi cita o exemplo do AC Milan, um dos maiores times do mundo e que sofre nas mãos de seus proprietários. “Ele tinha como dono o (empresário e ex-primeiro ministro da Itália) Silvio Berlusconi, que cansou de brincar de dono do clube, quando viu que era um negócio deficitário. Ele vendeu o Milan para um grupo chinês que contratou um monte de jogador, pensando que teria resultado esportivo, mas quebrou. O time está na mão de um americano, que não entende nada de futebol, sem perspectiva alguma. Esse é o Milan de hoje”, citou.

“Não tinha que criar SAF nenhuma. A SAD (Sociedade Anônima Desportiva) da Espanha foi um fiasco, a lei de Portugal foi um outro fiasco. A SAF é uma baboseira”, acrescentou o diretor da Sports Value.

 


Donos para fins políticos: Sebastian Piñera comprou o Colo-Colo. Tempos depois, faliu o clube e tornou-se presidente do Chile / Antonio Cruz/Agência Brasil

Futebol não dá dinheiro’

Resultados financeiros e esportivos não andam juntos. Ao se tornar empresa e jogar no mercado de capital aberto, o clube pode enfrentar problemas para manter suas ações em alta. Os especialistas alertam que, apesar da possibilidade do aumento de receitas no curto prazo, é muito difícil para os times de futebol manter os ganhos financeiros ao longo dos anos.

Irlan Simões afirma que é impossível ter resultado financeiro e esportivo aliados no futebol. “Se o Cruzeiro criar uma sociedade anônima, ele será o dono de 100% das ações no primeiro momento e venderá esses capitais para gerar receita, pagar as dívidas e melhorar o time. Nos dois ou três primeiros anos, eles têm mais dinheiro. Porém, depois, o clube perderá esse turbo econômico e pode configurar num ‘salto de golfinho’: você sobe, ‘faz uma graça’ e volta à agua”, acredita.

Amir Somoggi diz que nenhum clube, com raríssimas exceções, como o inglês Manchester United, é bem-sucedido na bolsa de valores no longo prazo. “Quando o time é eliminado, a ação vai cair. O futebol tem o resultado esportivo e financeiro vinculados, não dá para separar. O clube, se for rebaixado estará pior, mas se ganhar, melhorará, onde é que entra o conceito econômico da SAF?”, questiona.

Tabelinha

O jornalista e pesquisador diz que os empresários que querem adquirir o clube-empresa sabem do prejuízo econômico, mas possuem outro interesse: o ganho político. Um dos exemplos citados é o Colo-Colo, do Chile. Sebástian Piñera se tornou sócio majoritário da Blanco y Negro S.A., empresa que controla o clube. Apesar de endividar o time, Piñera usou o prestígio popular conquistado e se tornou, cinco anos depois, presidente do país.

Os interesses políticos sobre o futebol ocorrem de diversas maneiras, aponta Simões. “O futebol alemão não deixa nenhum empresário ser dono de um clube, apenas acionistas minoritários. Porém, para se beneficiar politicamente, os empresários entram como patrocinadores. O Schalke 04 tem como patrocínio uma empresa de gás natural da Rússia, que quer levar um gasoduto até a Alemanha, por exemplo. A ideia do capital é se beneficiar politicamente da popularidade de um clube.”

Substituições

Os dois entrevistados são enfáticos: o projeto de clube-empresa da SAF não é o ideal. Outro PL, 5.082/2016, de autoria deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ), também trata sobre o tema, mas é considerado apenas um novo meio para refinanciar as dívidas dos clubes com o governo, sem o objetivo mudar a gestão das equipes.

Cada um deles apresenta suas ideias para melhorar o cenário do futebol brasileiro. Irlan, por exemplo, defende uma maior democracia nas gestões dos clubes. Ele lembra que grandes clubes, como São Paulo, Corinthians, Flamengo, não têm nem três mil eleitores internos.

Com maior participação de associados, é possível alcançar mais transparência e cobrança por melhores resultados, segundo Simões. Em 2020, o Internacional bateu recorde nacional no número de votantes em pleitos de clubes, com a presença de quase 30 mil sócios. Na contramão disso, o São Paulo, que recentemente também fez eleições internas, teve 2,5 mil votantes.

“Quem se importa com o clube é torcedor, o sócio, não é o acionista majoritário que quer virar presidente do país. Se tem algo que precisamos debater sobre os clubes brasileiros é a democratização da estrutura e ampliar a participação dos torcedores. É fácil manter essa atual estrutura com 400 apenas pessoas votando, mas ficaria difícil com 40 mil eleitores internos. Isso criaria um ambiente de fiscalização e cobrança, diferente do que temos atualmente. Por isso, Internacional, Grêmio e Bahia, que ampliaram essa participação, têm colhido bons resultados”, afirmou Irlan.

Regras claras

Para Amir Somoggi, da Sports Value, clubes são importantes demais para virarem propriedade de magnatas. Inclusive, ele lembra que a legislação atual já permite a transformação em clube-empresa, como é o caso do Red Bull Bragantino.

Um modelo que o especialista defende é o aplicado na Alemanha, que permite clubes buscarem capital privado, mas que mantém o controle majoritários (50%+1 das ações) nas mãos das associações. “A transformação em clube-empresa precisa passar pelo viés democrático, visando a transparência. O dinheiro não pode determinar o futuro dos clubes. O Bayern de Munique é dono de boa parte da maioria de suas ações, mas diluiu parte delas entre investidores. Os sócios não deixaram de ser representados”, exemplifica.

Entretanto, o consultor esportivo afirma ser preciso criar uma espécie de “marco zero” para o futebol brasileiro, com regras financeiras mais rígidas para os clubes. “O débito dos clubes passa pelo fisco, dívida bancária e trabalhista. A lei precisa colocar nos eixos o futebol brasileiro, sem benesses. Os clubes são patrimônios culturais, mas em nenhum outro lugar do mundo há essa ‘bondade’ com os times de futebol, sem alguma punição. Não precisamos criar clube-empresa, mas de um marco zero regulatório com regras fiscais”, finalizou.