entrevista

Terra Yanomami: "Famílias inteiras com covid onde o garimpo está fora de controle"

7 bebês yanomamis morreram por covid desde início da pandemia: pior cenário em 30 anos, diz antropóloga Ana M. Machado

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |

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Crianças e bebês Yanomami menores de dois anos estão entre as vítimas de Covid-19: malária está entre a comorbidades relacionadas ao coronavírus e afeta diretamente os indígenas - Joedson Alves - EFE

"Esse é um dos momentos cruciais para a defesa dos povos indígenas, porque em 30 anos não víamos a situação dos Yanomami e Yekweana chegar aos níveis de sucateamento que temos visto hoje". O alerta, dado em entrevista ao programa Bem Viver, é da antropóloga Ana Maria Machado, membra da rede Pró-Yanomami e Yekweana e uma das organizadoras do relatório “Xawara: rastros da Covid-19 na terra indígena yanomami e a omissão do estado” , lançado no final do ano passado.

Segundo ela, o abandono e o avanço do garimpo ilegal são os principais vetores de doenças, como a covid-19, na Terra Indígena Yanomami, a maior do país, localizada nos estados do Amazonas e Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela, em um corredor de 9,6 milhões de hectares. Morada de cerca de 30 mil indígenas, está entre as mais impactadas com o desmatamento ilegal na Amazônia brasileira.

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Xawara é como os Yanomami chamam desde os antepassados o que hoje conhecemos como pandemia. A palavra dá nome ao que eles chamam booshikë, que nós conhecemos como minério. De acordo com suas regras culturais, o booshikë deve ficar quieto, dentro da terra, caso contrário causaria muitas doenças e mortes, se espalhando como uma fumaça.

A corrida incessante pelo ouro, aliada à conivência e omissão das autoridades são justamente o que têm causado inúmeras doenças e levado à morte crianças e bebês Yanomamis, como explica o relatório de 105 páginas publicado pelo Instituto Sociambiental (ISA) e produzido pelo Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana e da Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana, a partir de dados levantados no período de março a outubro de 2020.

Leia (e ouça no áudio) a entrevista completa:

Brasil de Fato: Então, Ana, o que motivou a produção do relatório?

Ana Maria Machado - O relatório foi produzido pela Rede Pró-Yanomami e Yekweana e pelo Fórum de Lideranças Yanomami e Yekweana. A Rede Pró-Yanomami e Yekweana é formada por mais de 50 apoiadores da causa Yanomami, entre antropólogos, linguistas, indígenas, advogados, artistas e está em diálogo direto com as associações indígenas. E a Rede surgiu justamente no início da pandemia, em abril, quando ocorreu a primeira morte de um Yanomami por causa da Covid.

E o Fórum de Lideranças Yanomami e Yekweana, que também é um dos organizadores do relatório, foi formado em 2018 e reúne as sete associações indígenas presentes na terra Yanomami e é a principal instância de decisões, hoje, nas terras Yanomami.

Então em junho o Fórum lançou a campanha #ForaGarimpo e #ForaCovid para sensibilizar o mundo sobre o avanço da Covid no território Yanomami. Então a partir de uma articulação entre o Fórum e a Rede, nós fizemos esse relatório para que a gente tivesse documentado o impacto da pandemia entre os Yanomami.

Ao longo da produção do relatório, fomos nos aprofundando nos dados e as análises diziam que a situação dos Yanomami e dos Yekweana é muito crítica. E aí principalmente por causa do avanço descontrolado da Covid, da malária, também com um completo descontrole, que são ligados também ao avanço do garimpo, que aumentou bastante e o desmonte da saúde pública voltada aos indígenas, como acontece em todo o país.

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Então esse relatório serve também como uma base para denúncia, para uso por comissões de direitos humanos e outras instâncias em defesa dos povos indígenas.

O relatório que foi entregue no Congresso Nacional, aos deputados, juntamente com a petição da campanha #ForaGarimpo e #ForaCovid, que recolheu quase 440 mil assinaturas.

O documento aponta o garimpo ilegal como um dos principais vetores de contaminação aos indígenas, mas a atividade continua ameaçando os povos. Existe aí permissão... conivência do governo Bolsonaro acerca dessas atividades na região?

O garimpo ilegal é um problema muito antigo. Antes ainda da demarcação da Terra Indígena Yanomami, que aconteceu em 1992, os Yanomami viveram um período dramático da história. Nos últimos anos da década de 1980 o território onde moravam foi invadido por mais de 40 mil garimpeiros. Então, um completo descontrole. Tem estatísticas de que mais de mil Yanomamis morreram nesse período por doenças e violências ligadas ao garimpo.

Mais de mil Yanomamis morreram nesse período por doenças e violências ligadas ao garimpo

Depois desse período, com a demarcação da terra indígena em 92, o garimpo foi diminuindo bastante e se tornou uma atividade ilegal, feita muito perifericamente com algumas centenas de garimpeiros. O que vemos é que a junção da alta do ouro no mercado a partir de 2008 e aí, juntamente com o desmonte das políticas públicas, principalmente depois da eleição de Bolsonaro, fez com que o garimpo ilegal tomasse proporções absurdas.

Hoje estimam-se que haja mais de 20 mil garimpeiros invadindo a terra indígena Yanomami. E apesar de ser uma atividade claramente ilegal, parece que a eleição de Bolsonaro serviu como uma autorização para que os garimpeiros ignorassem a ilegalidade e adentrassem na terra indígena Yanomami em busca de ouro sem aquele receio que tinham antes, já que sabem que contam com o apoio do presidente.

Enquanto o Brasil e o resto do mundo pararam, mantendo somente as atividades essenciais, os garimpeiros não fizeram quarentena

Mesmo o próprio Bolsonaro tem um histórico de garimpeiro, o pai dele garimpou na Serra Pelada. Ele durante a campanha eleitoral prometeu autorizar a mineração em terras indígenas. Então seguindo essa promessa de campanha dele, Bolsonaro assinou o projeto de lei 191/2020 que visa regulamentar a exploração de recursos minerais definindo condições específicas para pesquisa e lavra de minerais, inclusive a lavra de petróleo, gás e extração de energia hidrelétrica em terras indígenas.

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E esse projeto de lei, agora com a nova configuração da Câmara, com a eleição de Arthur Lira, Bolsonaro colocou como um dos projetos prioritários a serem votados, o que coloca os Yanomami em situação de muita vulnerabilidade, já que os indígenas não teriam direito ao veto, eles seriam somente consultados, então não teriam como impedir que a mineração entre em território indígena, o que é completamente absurdo.

A Terra Indígena Yanomami está entre as dez áreas protegidas mais impactadas pelo desmatamento na Amazônia Legal

E tem também um dado importante, que de acordo com os dados do Imazon, do Sistema de Alerta de Desmatamento, entre agosto de 2019 e julho de 2020, que foi o período do início do governo Bolsonaro, a Terra Indígena Yanomami esteve entre as dez áreas protegidas mais impactadas pelo desmatamento na Amazônia Legal.

E isso foi justamente causado pelo aumento desenfreado do garimpo. E também foi entre agosto e setembro de 2020, que a terra indígena se manteve como uma das mais desmatadas do país. Enquanto o Brasil e o resto do mundo pararam, mantendo somente as atividades essenciais, os garimpeiros não fizeram quarentena. Aumentaram muito o fluxo de garimpeiros e desmatamento na terra indígenas Yanomami.

Temos vários relatos de indígenas, de famílias inteiras contaminadas em regiões onde a presença do garimpo está completamente fora do controle.

Em 2020 o relatório já indicava crianças como um dos grupos mais atingidos pela Covid-19 na região e agora o país acompanha a denúncia do falecimento de dez bebês Yanomami em um mês. Essas e outras vidas poderiam ter sido preservadas?

Certamente. O que temos visto nos últimos anos é um completo desmonte das políticas públicas de saúde voltadas para a saúde indígena. Segundo o monitoramento que nós da Rede Pró-Yanomami e Yekweana fazemos, até o momento contabilizamos a morte de 32 Yanomami, entre confirmados e suspeitos, que é um número além do que o monitoramento da Sesai, o órgão de saúde, que aponta para 12 óbitos somente.

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Segundo nosso monitoramento, os números impressionam, porque nesses meses de pandemia, faleceram sete bebês com menos de dois anos por causa de Covid-19, testados e confirmados. Essa é uma estatística que chama muita atenção porque difere muito do restante do mundo, quando as principais vítimas têm sido os idosos ou pessoas com comorbidades. Nesse ponto é importante chamar atenção que uma das principais comorbidades para a Covid-19 entre os Yanomami é a malária. E com a malária completamente fora de controle, a Covid acaba fazendo então mais vítimas, além do que várias crianças também sofrem com desnutrição, já fragilizadas.

Mesmo com a terra demarcada, com os direitos assegurados pela Constituição, nós temos visto as mortes pela falta de ação com a saúde indígena

Então certamente, se houvesse uma ação efetiva do governo federal, se houvesse um plano, ao menos, de contenção da Covid, essas crianças não teriam perdido a vida e o futuro por causa desse vírus. É responsabilidade do governo federal fazer um plano de contenção eficiente, o que não houve.

A denúncia central do relatório é justamente a absoluta falta de assistência médica aos povos indígenas no Brasil, seja de prevenção ao Covid-19 ou tratamento de outras doenças. Inclusive nos últimos anos acompanhamos o aumento da criminalização de ONGs e do sucateamento de diversos órgãos de proteção, culminando com o desastre da pandemia... podemos dizer que esse é um momento crucial de defesa aos povos indígenas?  

Com certeza. Esse é um dos momentos cruciais para a defesa dos povos indígenas, porque em 30 anos não víamos a situação dos Yanomami e Yekweana chegar aos níveis de sucateamento que temos visto hoje. Mesmo com a terra demarcada, com os direitos assegurados pela Constituição, nós temos visto as mortes silenciosas pelo descaso causado pela falta de ação e pelo descaso com a saúde indígena.

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O que vemos no caso específico dos Yanomami é que tem uma deterioração muito grande do sistema de saúde por uma falta de gestão séria e eficiente, que vise principalmente a prevenção de doenças e tratamentos nas próprias aldeias, sem que os pacientes precisem ir para as cidades.

Essa é uma forma de matar silenciosamente pelo descaso

Além disso, a presença dos profissionais de saúde também está muito escassa e sobrecarrega os poucos funcionários que não tem condições de trabalhar na terra indígena. Então essa é uma forma de matar silenciosamente pelo descaso. E a isso, se soma também a criminalização das organizações de apoio, que há anos são parceiras dos índios na luta pelos seus direitos e vozes que agem a favor da melhoria da saúde e da garantia dos direitos indígenas.

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Um exemplo muito claro, é lembrarmos que no início dos anos 2000 tinha uma ONG chamada URIHI-Saúde, que fazia a gestão da saúde indígena, com um recurso muito menor e baixo orçamento, eles faziam um plano de ação muito eficiente e conseguiram erradicar a malária e levar tratamento de qualidade na própria casa dos indígenas. Então eles faziam visitas nas casas e visitas que eram preventivas de várias doenças. Mas o que vemos hoje é que a soma do completo descontrole do garimpo na terra Yanomami tem sido um dos principais vetores para várias doenças, não só de Covid, mas também da malária, doenças venéreas e outras, e isso somando ao completo descaso com a saúde indígena têm sido uma equação explosiva que tem levado à morte muitos indígenas de forma silenciosa.

O momento agora é de fortalecer os grupos indígenas, fortalecer as associações indígenas, lutarmos ao lado deles na defesa dos povos, contra a criminalização de ONGs. Esperamos que os Yanomami e os Yekweana sigam resistindo como têm feito há centenas de anos e que possam também ter suas terras protegidas e voltar a viver com saúde.

Edição: Rogério Jordão