"NÓS POR NÓS"

Solidariedade LGBT garante sobrevivência da população trans em meio à pandemia

Frente ao descaso do Estado, coletivos reúnem recursos e doações de alimentos para ajudar pessoas trans em todo país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Mapa da Solidariedade reúne dezenas de iniciativas emergenciais com foco na população LGBT durante a covid-19 - Foto: Angela Weiss/AFP

Vaquinhas, cestas básicas, campanhas financeiras, assessoria jurídica e atendimento médico. São muitas as ações de dezenas de organizações LGBTs que, desde a chegada do coronavírus, atuam dioturnamente para ajudar pessoas trans de todo Brasil a sobreviverem à pandemia

Vivendo no país que há 13 anos lidera o ranking mundial de assassinatos da população trans, sem acesso ao mercado de trabalho normal e a direitos básicos, milhares de mulheres e homens trans estão em condições de vulnerabilidade socioeconômica neste momento.

Dossiê divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) neste 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, mostra que a maioria das mulheres trans não tiveram escolha a não ser permanecer na prostituição, expostas à violência e ao vírus.

O documento também aponta que cerca de 70% da população T não teve acesso ao auxílio emergencial disponibilizado pelo governo. 

Foi neste cenário que a solidariedade ganhou força e se tornou uma verdadeira garantia de sobrevivência para as pessoas trans frente ao descaso do Estado.

Em parceria com a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), a Antra fez um levantamento de iniciativas emergenciais na pandemia intitulado Mapa da Solidariedade, que conta com a participação de entidades de 15 estados.
 
Uma delas é a Casa Chama, criada em 2018 para combater a retirada de direitos que se anunciava com a eleição do governo Bolsonaro.

Cientes da gravidade do vírus, o coletivo de São Paulo criou uma vaquinha online, logo na primeira semana da pandemia, com o objetivo de arrecadar recursos para custear a alimentação e moradia das pessoas trans. A meta alcançada foi de R$ 132 mil.

Matuzza Sankofa, mulher trans e coordenadora geral da organização, afirma que a queda de renda entre pessoas trans, sujeitas à informalidade e à prostituição, foi enorme. 

“Isso nos deixa vulnerabilizadas a ponto das pessoas não terem casa, não terem o que comer, deixaram de pagar aluguéis em pensionatos e periferias. Muitas pessoas trans acabaram indo para a rua nesse período. Se olharmos para as ruas e praças da cidade de SP vemos o quanto a população trans em situação de rua aumentou”, lamenta a ativista. 


"Temos um lema que quem acolhe é acolhido e quem é acolhido acolhe", diz Matuzza, coordenadora da Casa Chama / Foto: Arquivo Pessoal

Ao longo de 2020, pouco mais de 3 mil cestas básicas foram entregues para pessoas trans pela Casa Chama. Cerca de 70 delas receberam um auxílio aluguel de R$ 354 por pessoa.

Matuzza diz ainda que a entidade também socorreu vítimas de violência doméstica e segue fornecendo cestas básicas e itens básicos de proteção contra o coronavírus.
 
“O que a Casa Chama fez foi garantir a vida e a vida com dignidade neste momento para as pessoas. Temos um lema: quem acolhe é acolhido e quem é acolhido acolhe. Construímos juntos um outro mundo."

"Nenhum LGBT fica para trás”

Na outra ponta do país, em Aracaju (SE), Maluh Andrade foi uma das centenas de mulheres trans acolhidas pela ONG CasAmor, onde recebeu álcool em gel, máscaras e alimentos. 

“Sou imensamente grata. O momento da pandemia é crucial para muitas vivências, sabemos que as minorias já são afetadas por todo sistema social na normalidade, imagine no caos. A CasAmor tem um papel fundamental em muitas vidas travestis e transexuais, de pessoas trans binárias e não binárias aqui de Aracaju”, ressalta Maluh.


Maluh Andrade: "Sabemos que as minorias já são afetadas por todo sistema social na normalidade, imagine no caos" / Foto: Arquivo Pessoal

Eron Pereira Neto, que preside a entidade, explica que as ações fazem parte da campanha "Nenhum LGBT fica para trás", que nasceu para garantir a segurança alimentar dos LGBTs no estado, principalmente para as pessoas trans.

Mais de 1.500 cestas básicas foram doadas desde o início da campanha, iniciada em abril. 

“Percebemos que existem poucas ações políticas do governo com foco específico nesses grupos. Sabemos que a empregabilidade para as pessoas trans é uma lenda. Tem também a questão das documentações que não foram atualizadas e muitas pessoas tiveram problema com CPF e cruzamento de dados [para receberem o auxílio emergencial]. Fizemos mutirões de retificação de nome e sobrenome online”, relata Neto.

Além da assessoria jurídica, a CasaAmor também dispõe de atendimento médico, feito de forma voluntária, com profissional orientado para atender uma pessoa trans, evitando que ela se exponha ainda mais ao ir ao hospital durante a proliferação da covid.

“Quando olho para o voluntariado, vejo pessoas aliadas, que entendem seus privilégios. Neste momento, quem tem emprego tem que ajudar quem não tem. Quem consegue se organizar politicamente precisa ajudar quem não consegue. E aí seguimos juntos”, diz Neto. 


Entregas de alimentos realizadas pela CasAmor, em Sergipe / Foto: Arquivo Pessoal

“De fato a pandemia é algo novo para quem tem privilégios, mas, para as pessoas trans, o distanciamento social sempre existiu”, completa o coordenador da CasAmor, recordando-se da fala de uma das dezenas de mulheres trans assistidas pelo projeto. 

Em Natal, no Rio Grande do Norte, a Casa Brasil conseguiu entregar 4 toneladas de alimentos a partir de doações e parcerias com outras organizações como a Parada LGBT de São Paulo, Fundo Brasil de Direitos Humanos e outras organizações.

As cestas foram distribuídas também em municípios do interior do Rio Grande do Norte com o auxílio de fóruns LGBTs regionais.


Casa Brasil, em Natal, recebe pessoas trans de outros estados durante a pandemia / Foto: Arquivo Pessoal

Jacqueline Brasil, coordenadora da Casa potiguar, conta que o projeto tem recebido pessoas trans de outros estados, que tem vivido conflitos familiares já que, em grande parte, a identidade de gênero é negada pelos parentes. 

Conforme alerta a Antra, houve, inclusive, o aumento de casos de violência doméstica durante a quarentena.

“Quanto mais não reconhecermos a identidade de gênero das pessoas, mais a violência aumenta, causando danos psicológicos. A Casa Brasil precisa de todo apoio possível para que possamos resgatar e trazer a população com segurança. Nessa data da visibilidade trans, entendemos que é um momento de comemorar mas também de muita resistência. Apesar do avanço da covid-19 nos mantemos firmes e dialogando." 


Jacqueline Brasil: "Nessa data da visibilidade trans, entendemos que é um momento de comemorar mas também de muita resistência" / Foto: Arquivo Pessoal

Novos projetos 

No Distrito Federal, em Brasília, ativistas trans se reuniram e deram origem ao projeto T Collective. A prioridade é ajudar pessoas trans pretas, travestis e artistas culturais, assim como pessoas que não receberam auxílio emergencial após terem o benefício negado pelo governo, devido a erros nos nomes de registro não retificados. 

Leonardo Luiz, personal trainer e coordenador regional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), é um dos fundadores do grupo e relata que as ações atingiram dezenas de pessoas. 

“É muito importante termos fundado esse coletivo em resposta à pandemia porque tínhamos a ânsia de fazer algo nesse momento. Víamos outras ONGs ajudando pessoas LGBTs no geral mas sem uma coisa só para as pessoas trans e travestis, que na sigla LGBT, são as mais invisibilizadas”, justifica. 


"Tínhamos a ânsia de fazer algo nesse momento de pandemia", diz Leonardo Luiz, fundador da T Collective / Foto: Arquivo Pessoal

Atuanto direto da capital do Brasil, as ativistas do Distrito Drag também se preocuparam com a situação das pessoas LGBTs na pandemia.

O grupo criou um fundo emergencial para artistas e realizou a doação de kits de prevenção ao coronavírus, principalmente para artistas drags em maior situação de vulnerabilidade. 

Para auxiliar diretamente a população trans, a organização vende o Calendrag 2021. Segundo a drag Ruth Venceremos, a produção é uma verdaeira obra de arte que reuniu artistas trans e fotófragos voluntários. 

“É um compromisso social de apoiar causas legítimas. Estamos na quarta edição do Calendário Drag, cujo tema é música brasileira, e parte dos recursos arrecadados serão destinados aos trabalhos com a população trans realizados pela Antra", explica.


Estrela da capa dp CalenDrag é a drag queen Silvetty Montilla / Foto: Divulgação

Ela conta que a solidariedade sempre foi um elemento-chave na atuação da Distrito Drag.

"Quando falamos da solidariedade é porque é o momento Nós por Nós. A pandemia chegou, atingiu todos os setores da sociedade, mas alguns foram atingidos muito mais”, enfatiza. 

O Calendrag, vendido pela editora Expressão Popular, apresenta ensaios fotográficos que ilustram cada mês de 2021. A estrela da capa é a drag queen Silvetty Montilla, referência na cena transformista brasileira com mais de 30 anos de atuação.

Seu ensaio foi inspirado no álbum Mulher do Fim do Mundo, da cantora Elza Soares. Com o avanço da pandemia em todo o Brasil, Ruth Venceremos reforça o recado:

"Uma forma de ajudar é comprar o Calendário Drag. Além de levar uma obra de arte, uma produção coletiva, vai estar contribuindo com uma causa extremamente justa e necessária". 

A relação das organizações que integram o Mapa da Solidariedade podem ser conferidas aqui.

Edição: Leandro Melito