As imagens do início da vacinação desde o último domingo (17) emocionam grande parte do país. De fato, a emoção é legítima, já que são cenas que acendem uma luz no fim do túnel da crise sanitária e humanitária que, até o momento, matou mais de 210 mil pessoas no Brasil.
O grupo prioritário de vacinação brasileira é composto por profissionais de saúde da linha de frente, indígenas aldeados, idosos e pessoas deficientes que vivem em instituições. Sobre o grupo de profissionais de saúde da linha de frente, a Organização Nacional das Nações Unidas com foco nas Mulheres (ONU Mulheres) mostra que as mulheres são maioria nos serviços de assistência em nível global, representando 70% da força de trabalho da área de saúde. Elas estão na primeira linha do enfrentamento à covid-19 como auxiliares de enfermagem, enfermeiras, cuidadoras e assistentes sociais.
A atual crise sanitária transformou radicalmente o cotidiano de vida e trabalho em todo o mundo. No entanto, alguns grupos sociais são mais afetados comparados a outros. E esse efeito desigual tem relação direta com as desigualdades sociais e econômicas anteriores à pandemia. As mulheres, em sua diversidade (pobres, negras, indígenas, por exemplo) são muito impactadas neste contexto pandêmico por causa dessas desigualdades estruturais que se expressam na sobrecarga de trabalho, crescimento da violência policial e doméstica e endividamento das famílias.
É a partir da identificação dessas desigualdades estruturais que, neste breve artigo, convido os leitores e as leitoras para pensar sobre essas imagens da vacinação através de uma lente feminista e antirracista. E o que isso quer dizer?
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Deve-se levar em conta que assegurar a saúde das mulheres trabalhadoras, negras e indígenas é muito mais do que imagens ambivalentes
Inicialmente, significa ver a presença majoritária de mulheres populares, negras e indígenas sendo vacinadas em várias cidades do Brasil, como, por exemplo, a enfermeira Mônica Calazans (São Paulo) e a enfermeira Penha Atikum (Pernambuco). Essas profissionais da saúde estão na linha de frente do combate à crise em diversos territórios. E, por causa disso, pertencem ao grupo prioritário e são as primeiras pessoas vacinadas no Brasil.
No segundo momento, significa compreender o sentido dessas imagens no âmbito do jogo político e das narrativas criadas sobre a vacinação. Essas imagens devem ser compreendidas, portanto, em um contexto que engloba, por exemplo, a postura vacilante do governador João Doria sobre a inclusão dos quilombolas no grupo prioritário da vacinação e os desvios da vacinação por prefeitos e servidores públicos que não são do grupo prioritário no interior de Sergipe e Pernambuco.
Outra camada importante dessas imagens é o reconhecimento do trabalho e das redes de sobrevivência criadas pelas mulheres nos domicílios, bairros, aldeias e territórios, e que sustentam a “nova normalidade” sem apoio governamental. Na verdade, esse contexto de exploração e violações tende a se aprofundar por causa dos cortes em políticas fundamentais para a sobrevivência, como é o caso do auxílio emergencial.
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Por fim, em diálogo com esse contexto bastante adverso para as mulheres, deve-se levar em conta que assegurar a saúde das mulheres trabalhadoras, negras e indígenas é muito mais do que imagens ambivalentes. Significa garantir as condições mínimas de sobrevivência para essas mulheres, a consolidação de redes para acesso a alimentos e valorização dos trabalhos realizados por elas. Deve-se, também, considerar o endividamento dessas mulheres e famílias, a partir da criação de políticas de desoneração de contas domésticas básicas (água e energia elétrica) e política de negociação de dívida (aluguel).
*Raquel Oliveira Lindôso é socióloga do trabalho, feminista e doutoranda na Universidade Estadual de Campinas – São Paulo, Brasil
Edição: Luiza Mançano