O remédio jurídico adequado diante deste drama é o impeachment. A base constitucional já está criada
Quando o assunto é a possibilidade de abrir um processo de impeachment, o primeiro elemento a ser verificado é se a conduta do agente político incide nos chamados crimes de responsabilidade que constam na nossa Carta Magna e na legislação ordinária (artigo 85 da Constituição e lei 1079/1950). No caso do Presidente da República, o artigo 85 aponta como crimes de responsabilidade aqueles que atentarem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
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Vejamos os fatos ocorridos no Brasil e as suas relações com os incisos do artigo acima:
Desde o início da pandemia em 2020, há uma espécie de sabotagem nas ações de enfrentamento ao covid, o que compromete a segurança interna do país (inciso IV) e o livre exercício dos direitos individuais e sociais (inciso III).
O Estado brasileiro, claramente, não garantiu medidas eficientes para o controle da pandemia (contabilizamos 210 mil mortes até meados de janeiro de 2021). O plano nacional de vacinação foi construído e divulgado com atraso e diversas imprecisões, como o não apontamento da duração exata da primeira dose de vacina para a segunda e a não definição exata das prioridades, já que não há doses disponíveis para todos.
Em se tratando de ações diretas do presidente da República, é fundamental recordar que ele foi o primeiro chefe de Estado do mundo a ter um conteúdo removido das redes sociais em razão da divulgação de fake news, provocando aglomerações, pregando o fim do isolamento social e expondo a população a risco.
Em todos estudos científicos realizados até agora, não foi demonstrada a eficácia e as condições de existência de qualquer tratamento precoce para combater os sintomas da covid com hidroxicloroquina e azitromicina, como divulgado pelo governo. Importante ressaltar que, tendo já sido apontada a insuficiência de estudos para comprovar a eficácia do medicamento para sintomas relacionados ao covid, tanto o presidente, ao promovê-los como política pública, quanto os profissionais da saúde que estiverem receitando o medicamento podem ser responsabilizados juridicamente por isso.
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O mandato presidencial de Jair Bolsonaro, simplesmente, desconsidera a Constituição, ou melhor, ofende a Constituição constante e reiteradamente. As medidas de sabotagem à saúde pública são claramente intencionais, não estão na ordem do acaso. Basta observar que os dados relacionados à contaminação da covid-19 divulgados a toda população, não são trazidos por órgãos oficiais do Estado brasileiro, o que é um absurdo, mas averiguado por um consórcio de veículos de comunicação, em razão de limitações impostas pelo Ministério da Saúde.
Para além das questões relacionadas à saúde pública, há um esvaziamento proposital de agendas sociais e uma desestruturação de políticas públicas em diversas áreas. Basta observar o que ocorre com as políticas relacionadas ao meio ambiente, a defesa dos direitos humanos, à política de reforma agrária, à defesa das minorias e dos grupos vulneráveis, em uma evidente afronta ao cumprimento tanto da Constituição quanto das legislações infraconstitucionais (art. 85, inciso VII).
Cabe rememorar, ao início da pandemia, o estímulo e o comparecimento do presidente (em momento que deveria ser de isolamento social) aos atos de caráter antidemocráticos com ameaças indiretas aos outros poderes da república como Congresso Nacional e STF (violando o artigo 85 da Constituição Federal, inciso II).
A rigor, o cometimento de crime de responsabilidade é ato extremamente grave, visto que praticado pela figura mais proeminente da República, e por isso, pode levar o presidente ao afastamento do cargo e à perda de mandato. Deve-se lembrar que o governante não exerce suas funções somente a partir da própria vontade, está subordinado ao pacto constitucional.
Compete ao presidente da Câmara dos Deputados avaliar o preenchimento dos requisitos legais das denúncias para iniciar o processo. Hoje já são dezenas destas denúncias, na mesa de Rodrigo Maia, à espera de uma manifestação. Não restam dúvidas que o recebimento de uma denúncia desse tipo consiste em ato realizado com peculiar prudência, o que não pode constituir também uma postura omissa diante dos fatos graves demonstrados.
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A não ocorrência do processamento de impeachment até agora, diante de tantos crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente, só demonstra o enfraquecimento das instituições brasileiras e do nosso sistema constitucional.
Cabe destacar que essa possibilidade de abertura de processo de impeachment, não se equivale em nada ao processo recente sofrido por Dilma Rousseff, e por isso, tratado na literatura jurídica, política, e será tratado na história, como um Golpe. Esse episódio de 2016 demonstrou a fragilidade democrática brasileira e abriu espaço para aventuras políticas irresponsáveis colhidas hoje, de grupos capazes de se omitirem diante das mortes no país, efeitos de um governo falido e criminoso.
O remédio jurídico adequado diante deste drama, agora sim, é o impeachment. A base constitucional já está criada. Veremos se será alcançada a base parlamentar e social para o desfecho dessa tragédia com nome e sobrenome.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão