O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden (Partido Democrata), toma posse na tarde desta quarta-feira (20) em meio a um conturbado processo de transição.
O atual presidente e candidato derrotado, Donald Trump (Partido Republicano), não reconheceu o resultado das eleições de novembro, mas já deixou a Casa Branca.
Para entender as perspectivas do novo governo e suas diferenças em relação a Trump, o Brasil de Fato reuniu análises de especialistas sobre temas centrais da conjuntura estadunidense e global.
Quem é Biden
Joseph Robinette Biden Jr. tem 77 anos e foi vice do presidente Barack Obama nas duas passagens pela Casa Branca. Entre 1973 e 2009, exerceu seis mandatos consecutivos como senador pelo estado de Delaware.
Biden venceu as prévias após Bernie Sanders, da ala progressista do Partido Democrata, retirar sua candidatura em meio ao processo de escolha interna da sigla.
Como senador, Biden votou a favor da invasão estadunidense ao Iraque. O democrata estava presente quando o então presidente George Bush assinou o decreto autorizando o uso da força no território iraquiano. Alguns anos após a invasão, Biden mudou de posição e hoje se refere àquele voto como um erro.
Biden foi eleito com a promessa de restaurar “tudo o que se perdeu” com a gestão atual e de oferecer respostas aos impactos da pandemia baseadas na ciência. O desemprego alcançou níveis recordes em meio à crise sanitária nos Estados Unidos, atingindo cerca de 16 milhões de pessoas. O país também é o primeiro colocado no ranking global de mortes por coronavírus.
Política e economia interna
Na avaliação de Breno Altman, jornalista e fundador do Opera Mundi, portal voltado à cobertura internacional, a diferença entre os programas de Trump e Biden é mais sutil do que foi propagado pelos democratas na campanha.
Ele enquadra Biden e sua vice, Kamala Harris, no conceito de “neoliberalismo progressista”, descrito pela cientista política Nancy Fraser. “A mesma política neoliberal na economia, a mesma política imperialista, mas uma política progressista no que diz respeito aos direitos civis: direito das mulheres, latinos, negros e, eventualmente, algum avanço em termos de políticas públicas”, explicou o jornalista.
“Biden representa a política neoliberal que internamente é praticada nos Estados Unidos: a defesa dos grandes grupos empresariais", completou Altman, em entrevista ao Brasil de Fato.
Ou seja, não há perspectivas de que o governo democrata se esforce para derrubar as sanções unilaterais contra Cuba, Venezuela, Irã e outros 30 países.
“O governo Biden vai gastar muita energia minando os laços que foram estabelecidos pela China e Rússia com países como Irã e Venezuela”, prevê o jornalista e historiador indiano Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. “Não haverá, portanto, nenhuma mudança na ampla política externa após a mudança de regime em Washington. Apenas o clima será diferente, os sorrisos mais amplos e as zombarias escondidas na sala dos fundos”, considera.
Durante a campanha, Biden chamou Nicolás Maduro, eleito democraticamente presidente da Venezuela, de “ditador”, posicionando-se do mesmo lado de Trump e da direita bolsonarista.
Por outro lado, quando o assunto são os protestos antirracistas que sacudiram o país em 2020, a diferença entre os presidentes é mais perceptível — ao menos no discurso.
Trump era apoiado e fazia acenos frequentes a grupos supremacistas brancos. Biden, por outro lado, chega à Casa Branca com uma mulher negra como vice, acolhendo em sua campanha parte das demandas do movimento “Black Lives Matter” [Vidas Negras Importam], que questionam a violência policial, a segregação e as altas taxas de encarceramento de negros no país.
Nada disso garante que as pautas do movimento antirracista terão mais espaço no novo mandato. Essa é a visão de Claudia de La Cruz, diretora do The People’s Forum em Nova Iorque, lembrando que Harris sequer representa a ala progressista do Partido Democrata.
“Trata-se de ‘diversidade’ e ‘representação’ sem participação significativa. Não se trata de uma verdadeira mudança. A trajetória de Harris é de alguém que odeia os pobres”, ressaltou durante entrevista para o Brasil de Fato em agosto. “Na sua posição como procuradora no estado da Califórnia, fez parte do instrumento de repressão do Estado, promovendo e aplicando leis que punham centenas de milhares de negros e jovens na prisão por delitos menores.”
A retórica anti-imigração de Trump, materializada em prisões e violações de direitos de adultos e crianças nas fronteiras, pode ser substituída por uma ousada proposta de Reforma Imigratória. Documentos vazados na última terça (19) mostram que o novo governo prevê uma expansão das admissões de refugiados e a implementação de mecanismos para garantir em até oito anos a cidadania para imigrantes que hoje não têm status legal.
Brasil e América Latina
Trump era o chefe de Estado mais próximo do presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) e sua família. Nesse sentido, a posse de Biden é considerada um duro golpe para o governo brasileiro, que perde sua referência e se vê cada vez mais isolado no cenário internacional.
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Igor Fuser lembrou que a saída de Trump não muda a lógica de submissão do governo brasileiro aos EUA.
"Além da aliança entre os dois governantes, Bolsonaro utiliza o estilo grosseiro da conduta de Trump, seu desprezo pela democracia, seu apego à mentira como elemento legitimador das suas próprias práticas", ressaltou, em entrevista ao Brasil de Fato. "Mas o eixo central da política externa bolsonarista é o alinhamento completo e incondicional aos EUA, e não ao seu presidente. Esse elemento permanece intacto, apesar do abalo causado pelo naufrágio de Trump."
Em 8 de janeiro, Biden nomeou o colombiano Juan Gonzalez para o cargo de diretor-sênior do Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional. Gonzalez, que será o responsável pelas negociações e assuntos ligados à América Latina, é crítico do governo Bolsonaro.
“A questão para o Brasil é se sua liderança atual está preparada para enfrentar os desafios monumentais de nosso tempo”, afirmou o colombiano em junho de 2020, ao debater as mudanças climáticas causadas pela ação humana.
O próprio Biden, ao longo da campanha, chegou a mencionar que haveria “consequências econômicas” para o Brasil caso não fossem tomadas providências para o desmatamento da Amazônia.
Clima
A derrota de Trump abre caminho para o reposicionamento da política estadunidense em uma ideia de multilateralismo, ao estilo do Partido Democrata. A tendência é de fortalecimento do papel da Organização Mundial do Comércio (OMC), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de espaços como a Convenção do Clima, na contramão da retórica “antissistema” adotada pelo governo Trump.
“A política dos Estados Unidos é, histórica e estruturalmente, imperialista, extrativa e belicista, seja no governo democrata ou no governo republicano. É preciso cautela em relação a todas as comemorações que a gente possa fazer”, avaliou, em entrevista ao Brasil de Fato, Larissa Packer, advogada socioambiental e integrante da organização Grain para a América Latina.
A especialista lembra, no entanto, que a vitória de Biden reforça uma nova tendência global no olhar sobre as mudanças climáticas. Nesse novo contexto, o discurso de Ricardo Salles, atual ministro do Meio Ambiente brasileiro, soa ainda mais defasado.
Na visão de Packer, quem está falando “a língua da geopolítica internacional” nesse tema é o general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro. O contexto, segundo ela, é de “ajuste colonial de dependência tecnológica”, em que “o capital é chamado a investir na Amazônia.”
Igor Fuser prevê que Bolsonaro usará um discurso vazio de “soberania nacional” para resistir a essas mudanças, antes de finalmente se adaptar a elas.
"Bolsonaro certamente aproveitará a ocasião para dar um showzinho de patriotismo. Vai se enrolar na bandeira nacional e gritar que 'a Amazônia é nossa', vai denunciar as pressões de Biden como ingerência estrangeira e atentado à soberania. Com isso, vai ganhar alguns pontinhos de prestígio junto ao público desinformado", analisou.
"Esse será um conflito superficial e passageiro. Nenhum dos lados, nem Biden nem Bolsonaro, terão interesse em tensionar a divergência ambiental além de um certo limite", acrescentou o professor da UFABC. "Bolsonaro recuará um pouco, aceitará algum compromisso muito mais formal do que efetivo, e Biden fará de conta que o problema está resolvido”.
Guerra comercial com a China
Para Vijay Prashad, “a guerra comercial e a beligerância estadunidense contra a China não são de autoria de Trump, mas foram herdadas do governo de Barack Obama e estão enraizadas em setores da elite dos EUA, que entendem que os avanços científicos e tecnológicos do país Asiático ameaçam as vantagens do monopólio dos EUA.”
O secretário de Estado de Biden será Antony Blinken, que disse recentemente que “a China representa um desafio crescente, provavelmente o maior desafio que enfrentamos vindo de outro Estado-nação: economicamente, tecnologicamente, militarmente e até diplomaticamente.”
Blinken pretende criar, segundo Prashad, uma liga de “tecnodemocracias” e posicioná-las contra “tecnoautocracias”, como a China.
“Em vez de reconhecer que a China é uma potência tecnológica que deve poder competir no mercado mundial, os EUA querem usar seu poder político e militar para exigir que a China entregue seus avanços tecnológicos”, analisa o historiador indiano, diretor do Tricontinental. “Essa será a política de Biden, como foi também a de Trump. A retórica belicista pode ser menos direta, mas o mesmo tipo de atmosfera bélica será imposta contra a China”, finaliza.
Edição: Camila Maciel