Paraná

MULHERES NEGRAS

Primeira vereadora negra de Joinville rechaça ameaças e reafirma espaços conquistados

Para Ana Lucia Martins, movimento inspirado em Marielle Franco coloca mulheres negras como protagonistas nos debates

Curitiba (PR) |
Em sua posse como vereadora, Ana Lucia Martins se colocou como semente de Marielle Franco - Divulgação

Um fantasma chacoalha as câmaras legislativas em várias cidades do país. O fantasma de mandatos de negras e negros com a pauta antirracista. Desde a posse em cidades importantes, caso de Joinville e Curitiba, a reação dos setores mais conservadores da sociedade foi imediata.

Nascida em Joinville (SC), Ana Lucia Martins, 54, é a primeira vereadora negra na história da cidade de 600 mil habitantes. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Paraná, ela afirma que, desde 2015, por meio de encontros e marchas, as mulheres negras fortaleceram sua disputa por representação nos espaços políticos. De acordo com a parlamentar, a luta da vereadora carioca Marielle Franco (brutalmente assassinada em 2018) fortaleceu essa caminhada. Diante das recentes ameaças racistas, não pretende recuar, mas avançar e criar condições para suas pautas.

“Essa geração que se constitui após a morte de Marielle Franco é fruto desses movimentos que se espalharam por todo território brasileiro. Marielle Franco ocupa um lugar muito simbólico de representação, ela vem das lutas de base, das favelas e levou para a Câmara Legislativa do Rio de Janeiro todas essas vozes. Após sua morte, em novembro de 2018, no Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos se firma um pacto de representatividade de mulheres negras nos espaços políticos partidários para ocupar as câmaras de vereadores nas eleições de 2020”, disse.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato Paraná - Pode nos contar um pouco da sua trajetória de vida e na luta política?
Ana Lucia Martins - Minha trajetória política iniciou no movimento negro, no combate ao racismo a partir das comunidades de base da igreja Católica Cristo Ressuscitado, no final da década de 80. Posso dizer que começou até um pouco antes, nos grupos de pré-adolescentes, grupos de jovens na igreja católica. Mais tarde no Partido dos Trabalhadores (PT), no sindicato dos servidores públicos, pela valorização da educação e dos profissionais da educação. Foi no Ashanti - Coletivo de Mulheres Negras de Joinville, que se consolidou a luta feminista. O Fórum de Mulheres de Joinville, o Comitê de Igualdade Racial e mais tarde o Conselho de Promoção para Igualdade Racial fortaleceram a luta antirracista e feminista.

Na sua posse como vereadora você se colocou como semente de Marielle Franco. Pode se falar em uma geração militante inspirada no exemplo da vereadora carioca (assassinada em 2018, em caso sem resolução sobre quem é o mandante) e quais seriam os desafios dessa geração?
A Marcha de Mulheres Negras, em 2015, foi um marco importante para as mulheres negras de todos os cantos do pais. Marchamos pelo nosso bem viver, contra o racismo, o machismo e a violência. A carta das mulheres negras, entregue à presidenta Dilma durante a marcha, traduziu as inúmeras reivindicações das mulheres negras, denunciou o racismo estrutural e a violência sofrida pelas mulheres negras de diferentes territórios. A marcha recolocou as mulheres negras no centro do debate, recomeça aí a luta pelos espaços políticos partidários e outros espaços de poder e tomada de decisões. As conferências das mulheres, de saúde entre outras, fortaleceu a participação nos diferentes conselhos. Renascia nesses espaços um movimento de mulheres e feministas negras que não teria mais volta. Essa geração que se constitui após a morte de Marielle Franco é fruto desses movimentos que se espalharam por todo território brasileiro. Marielle Franco ocupa um lugar muito simbólico de representação, ela vem das lutas de base, das favelas e levou para a Câmara Legislativa do Rio de Janeiro todas essas vozes. Após sua morte, em novembro de 2018, no “Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos” se firma um pacto de representatividade de mulheres negras nos espaços políticos partidários para ocupar as câmaras de vereadores nas eleições de 2020.

Como você tem visto, em cidades como Curitiba e Joinville, ataques racistas via internet contra mulheres negras – eleitas inclusive pela primeira vez nessas cidades?

De forma bastante assustadora. A expressão do racismo não nos surpreende, mas as ameaças de morte se mostram como uma forte ameaça a nossa mobilidade social, uma tentativa de silenciamento, negando o nosso direito de estar nos espaços de poder que decidem sobre as nossas vidas e as vidas da população negra. É a confirmação da intolerância e da supremacia branca.

Neste momento de crise econômica e da pandemia, qual o papel da vereança em câmaras ainda com presença conservadora e com oposição reduzida? Você falou no discurso de posse na necessidade de direitos para a população. Qual o papel da atuação de uma vereadora para isso?

É promover o diálogo constante com a população mais vulnerabilizada da cidade para garantir a aprovação dos projetos que podem promover a justiça social, com mais oportunidades, menos racismo, menos violência e zero intolerância. É propor políticas para geração de emprego, melhorias na educação, no transporte coletivo, regularização de moradias, programas de moradias populares, educação integral, ampliação dos serviços públicos, criação de renda mínima, fortalecimentos de microempreendedores e afroempreendedores, política para população de migrantes, combate a violência contra mulheres, investimentos em cultura, esporte e lazer.

Com a visibilidade de uma vereadora negra, quais questões devem ser levantadas pensando nos direitos da população negra?

Promoção da igualdade racial. Criação de pontos de cultura Negra na cidade. Propor políticas de cotas para a população negra em concursos públicos. Fiscalizar a efetiva implementação da lei 10.639 (que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira). Criar selo antirracista para empresas que adotem políticas para a promoção da igualdade racial. Promover o diálogo e a formação continuada de profissionais das diferentes áreas para o combate ao racismo institucional. A eleição da primeira mulheres negra em Joinville por si só, já é uma marco na história da cidade e rompe com a ausência de mulheres negras na Câmara de Vereadores após 18 legislaturas. É uma nova página que se escreve, esperamos que seja a primeira de muitas outras.

Além das ameaças sofridas pela vereadora negra recém-eleita, Ana Carolina Dartora (PT), e por você, o vereador também recém-eleito em Curitiba, Renato Freitas (PT), sofreu ameaças presenciais de morte na semana passada. O que é preciso fazer pela segurança física dos parlamentares negros e negras?
Exigir que o Estado cumpra o seu papel de proteção a vida das pessoas. Como pessoas públicas, os parlamentos precisam criar estratégias de proteção fora do espaço da assembleia. São nos espaços públicos e nas redes sociais que as violências mais acontecem. E a criação de uma comissão para discutir a violência contra parlamentares e a criação de um projeto de reserva de recurso para contratação de seguranças a todas, todes e todos parlamentares que sofreram ou poderão sofrer ameaças.

Edição: Lia Bianchini