Rio de Janeiro

Coluna

O Enem, a rainha e os bobos

Imagem de perfil do Colunistaesd
O desabafo de Marta no seu Instagram se estende a todos e todas que brigam por melhores condições de trabalho e estrutura no futebol feminino. Sejam jogadoras, jornalistas ou torcedoras - Agência Brasil
Este colunista agradece a Deus todos os dias por não estar do lado dos bobalhões

Eu nunca pensei que eu fosse ser obrigado a comentar uma questão de prova do Enem (o conhecido Exame Nacional do Ensino Médio) em toda a minha vida. Mas esse dia chegou. Há uma primeira vez pra tudo, não é?

Leia mais: Repórter do Brasil de Fato faz prova do Enem e conta o que viu

A questão número 42 das provas aplicadas no último dia 17 de janeiro abordou a desigualdade de gênero através de um texto sobre a desigualdade salarial entre Neymar (jogador da Seleção Brasileira e do Paris Saint-Germain) e Marta (camisa 10 da Seleção Feminina, jogadora seis vezes eleita a melhor do planeta e atleta com mais gols em Copas do Mundo). Ela dizia o seguinte:

O suor para estar em competições nacionais e intenacionais de alto nível é o mesmo para homens e mulheres, mas não raramente as remunerações são menores para elas. Se no tênis, um dos esportes mais equânimes em termos de gênero, todos os principais torneios oferecem prêmios idênticos nas disputas femininas e masculinas, no futebol a desigualdade atinge seu ápice. Neymar e Marta são dois expoentes dessa paixão nacional. Ela já foi eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo pela FIFA. Ele conquistou o terceiro lugar na última votação para melhor do mundo. Mas é na conta bancária que essa diferença entre os dois se sobressai.

O esporte é uma manifestação cultural na qual se estabelecem relações sociais. Considerando o texto, o futebol é uma modalidade que...

E aí tínhamos as opções. E a correta era a letra B: “se caracteriza por uma identidade masculina no Brasil, conferindo maior remuneração aos jogadores.”

Tirando o fato de que a questão erra no número de vezes em que Marta foi eleita a melhor do mundo (seis vezes), tudo bem. O grande problema é que o presidente Jair Bolsonaro resolveu se pronunciar sobre o tema (muito provavelmente com o objetivo de desviar o foco do fracasso do governo no enfrentamento à pandemia de Covid-19 e agradar a sua base ideológica) junto aos seus apoiadores no Palácio da Alvorada.

“Você vê as provas do ENEM. O banco de questões do ENEM não é do meu governo ainda, é de governos anteriores. Tem questões ali ridículas, tratando de assuntos… Comparando mulher jogando futebol e homem, por que a Marta ganha menos do que o Neymar. (…) Não tem comparação. O futebol feminino ainda não é uma realidade no Brasil. O que o Neymar ganha por ano todos os times de futebol ‘junto’ no Brasil não faturam por ano. Como que vai pagar pra Marta o mesmo salário? Isso se chama iniciativa privada. Ela que faz o salário, ela que mostra para onde o mercado deve ir.”

Leia ainda: Militarização das escolas: querem nos transformar em uma tropa de não pensantes

No dia seguinte ao ENEM, Marta usou sua conta no Istagram para responder Bolsonaro. E usou apenas uma frase: “Uns serão lembrados como os melhores da história, já outros...”

Há como se questionar a formulação da questão 42 do ENEM (a desigualdade de gênero no esporte envolve muito mais coisas do que apenas a diferença nos salários pagos a homens e mulheres). O que não dá pra questionar é o fato de que Bolsonaro (pela enésima vez apenas nesse ano de 2021) falou bobagem. E das grandes.

Não bastou espalhar informações falsas durante os últimos meses. Ele e seus “correligionários” ignoraram fatos que podem ser facilmente pesquisados no Google para rebaixar o futebol feminino praticado por aqui. Trago três pontos básicos para derrubar essa tese de que a modalidade “ainda não é uma realidade” por aqui:

1. A decisão da Copa do Mundo Feminina de 2019 teve mais audiência no Brasil do que nos Estados Unidos e na Holanda (justamente os dois finalistas da competição);

2. A maior audiência de todos os tempos em uma Copa do Mundo Feminina é brasileira. Foi na partida entre Brasil e França pelas oitavas de final do Mundial de 2019;

3. Falando nela, a nossa Seleção Brasileira conquistou a Copa América seis vezes, levou três medalhas de ouro em Jogos Pan-Americanos, duas medalhas de prata em Jogos Olímpicos e foi vice-campeã mundial duas vezes. Apesar de todas as dificuldades.

Aliás, falando em dificuldades, tentem imaginar como seria o desenvolvimento do seu esporte preferido se ele fosse proibido por lei por quase quatro décadas. Foi exatamente o que aconteceu com o futebol feminino aqui no Brasil. Tudo por conta do Decreto-Lei número 3.199 baixado por Getúlio Vargas em 14 de abril de 1941.

Foi a partir desse Decreto-Lei que foi criado o Conselho Nacional de Desportos (o CND) estabelencendo todas as bases de organização dos desportos no país. Só que essa legislação limitava modalidades esportivas para as mulheres. O artigo 54 dizia o seguinte:

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”

E pra piorar ainda mais a situação, no dia 2 de agosto de 1965 (durante a ditadura militar), a Deliberação nº 7 (assinada pelo General Eloy Massey Oliveira de Menezes, então presidente do CND) delimitou a linha que segregava o esporte feminino brasileiro.

“Não é permitida (à mulher) a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball.”

Não é preciso ser nenhum especialista em esportes para concluir que essa legislação atrasou completamente a história olímpica do Brasil. Vocês têm noção de que nós já poderíamos estar muito mais adiantados em várias modalidades esportivas? Só que as coisas não funcionaram desse jeito. Tudo foi feito para atender às taras conservadoras dos generais de sete estrelas que ficam atrás da mesa com o fiofó na mão. Exatamente como cantou Renato Russo.

Leia mais: As Forças Armadas da mamata

Mas num ponto, este colunista precisa concordar com Bolsonaro (CALMA!!!). Realmente não há comparação. Tente imaginar Neymar, Cristiano Ronaldo, Messi ou qualquer outro jogador mais badalado dos nossos dias passando pelos mesmos perrengues que as mulheres que ainda sonham em jogar futebol passaram (e passam). Sim, muitos deles tiveram infâncias complicadas e tiveram que abrir mão de muitas coisas. Não estou diminuindo isso. Só tente imaginar qualquer um deles sendo expulsos de casa pela própria família, passando por humilhações, tendo que jogar em campos medonhos e ainda contar com uma tremenda má vontade da imprensa esportiva para realizar esse sonho de ser jogador de futebol. Chegando até ao cúmulo de serem expulsos de campeonatos por conta de regras que ditavam como eles deveriam cortar o cabelo ou se comportar dentro de campo.

Ouçam a história de Formiga, Sissi, Pretinha, Márcia Taffarel, Meg, Michael Jackson, Kátia Cilene e várias outras mulheres que tiveram que passar por esses e vários outros problemas. Vocês vão se surpreender com os relatos.

O desabafo de Marta no seu Instagram se estende a todos e todas que brigam por melhores condições de trabalho e estrutura no futebol feminino. Sejam jogadoras, jornalistas ou torcedoras. Difícil não observar que as reações contrárias aos assuntos abordados no ENEM obrigaram a nossa Rainha a se levantar do trono e calar a boca dos bobos da corte que ainda arrotam todo tipo de preconceito disfarçado de “opinião”.

E este colunista agradece a Deus todos os dias por não estar do lado dos bobalhões.

Grande abraço e até a próxima.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho