FUTURO MULTIPOLAR

Entenda os principais elementos da guerra híbrida dos Estados Unidos contra China

Dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa lançado neste mês analisa as relações entre as duas potências mundiais

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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O desenvolvimento da China e de outros países são responsáveis pela criação de uma situação internacional multipolar - AFP

O discurso trumpista de que a China seria a única responsável pelas graves consequências da pandemia do novo coronavírus nos Estados Unidos, o país mais afetado pelo “vírus chinês”, é somente mais um aspecto de uma espécie de guerra fria que o país imperialista trava contra a potência asiática. 

As relações entre as duas maiores economias do mundo se deterioraram desde 2018 e são marcadas por imposições de tarifas sobre produtos importados, barreiras comerciais e até acusações de espionagem.

O que está por trás desta relação conflituosa, entretanto, é algo ainda maior: a definição sobre quem será o protagonista da economia global nas próximas décadas.
 
A disputa é tema do Dossiê nº36 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançado no início do mês. 

Ao fazer um resgaste histórico da construção do imperialismo norte-americano e de elementos econômicos do último período, o documento aponta que os Estados Unidos não serão mais a maior economia do mundo em um futuro próximo devido à ascensão chinesa.

Com sua hegemonia ameaçada, o país tenta manter seu domínio global por meio da chamada guerra híbrida, conceito no qual se baseia a análise dos pesquisadores do Instituto.  

Cunhado pelo analista político Andrew Korybko, autor da obra Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes, o termo se refere a estratégias de guerra não convencionais que buscam desestabilizar e controlar governos, assim como causar conflitos identitários no interior de diferentes países. 

Segundo o dossiê, em uma guerra híbrida o agressor atua com base em quatro estratégias  não militares: as guerras informacional, diplomática, econômica e política, que levam ao aprofundamento do caos por meio de atos de sabotagem e ameaças de invasão, a exemplo das ofensivas dos Estados Unidos contra a Venezuela e Irã.

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A retórica hostil contra o governo e o povo chinês, perseguições contra as companhias chinesas e a culpabilização pela pandemia, são algumas das táticas dessa guerra híbrida contra o país asiático, além das sanções econômicas objetivamente aplicadas.

Porém, as ideias racistas e anticomunistas contra a China não reverberaram mundialmente e nem trouxeram instabilidade interna. 

Como exemplo, o dossiê cita um estudo da Universidade de Harvard, publicado em julho de 2020 que mostra que o governo do Partido Comunista da China aumentou sua aprovação popular entre 2003 e 2016, em grande parte em razão dos programas de bem-estar social e da luta contra a corrupção. O índice de aprovação geral é de 95,5%.

Possível declínio?

Os Estados Unidos que emergiram da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com a economia mais poderosa, com uma infraestrutura intacta e uma força militar expressiva, lidam atualmente com o fracasso em impedir os avanços científicos e tecnológicos da China.

Como a alta tecnologia e o monopólio da renda da propriedade intelectual na inovação tecnológica impulsionam a economia estadunidense, os índices econômicos alertam para um possível declínio da potência ocidental.

De acordo com dados do Dossiê, em paridade de poder de compra, a economia da China já é 16% maior que a dos Estados Unidos e, em 2025, conforme projeta o Fundo Monetário Internacional, será 39% maior. 

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O tamanho da economia chinesa, geralmente subestimado quando calculado segundo taxas de câmbio atuais, já seria 73% da americana. 

“No final da década, o PIB (Produto Interno Bruto) da China será maior do que o dos EUA, não importa como for medido. Já sentimos a mudança. Lojas e shopping centers trazem ainda as características da cultura dos Estados Unidos, mas seus produtos são feitos na China. Em outras palavras, os EUA continuam definindo a forma, mas a China já fornece o conteúdo. Gradualmente, a forma ficará alinhada ao conteúdo”, registra o Dossiê.

O fato de que há uma década a China tinha pouquíssimas marcas globalmente conhecidas, mas agora conta com empresas como Huawei, TikTok e Alibaba, por exemplo, evidenciam essa ascensão. 

5G

Há uma grande preocupação dos Estados Unidos em relação ao desenvolvimento das empresas chinesas de alta tecnologia que produzem equipamentos e softwares para telecomunicações, com destaque para a tecnologia 5G. 

Isso porque, conforme observado pelo próprio Conselho de Inovação em Defesa dos EUA em abril de 2019, e registrado pelo dossiê, “o líder do 5G deve ganhar centenas de bilhões de dólares em receita na próxima década, com ampla criação de empregos em todo o setor de tecnologia sem fio”.

“O 5G também tem o potencial de revolucionar outras indústrias, já que tecnologias como veículos autônomos obterão enormes benefícios com a transferência de dados mais rápida e maior.  O 5G aprimorará a Internet das Coisas (IoT, sigla em inglês), aumentando a quantidade e a velocidade do fluxo de dados entre vários dispositivos, e pode até mesmo substituir o backbone de fibra ótica usado em tantos lares. O país que possuir 5G possuirá muitas dessas inovações e definirá os padrões para o resto do mundo”, declarou o Conselho.

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Com os avanços das empresas chinesas, de acordo com o artigo, é improvável que empresas estadunidenses fabriquem o tipo de transmissor necessário para os novos sistemas de forma antecipada. Tampouco empresas de outros países.  

Ainda que os Estados Unidos tenham feito acusações de roubo de propriedade intelectual ou de erosão da privacidade por parte das empresas chinesas, não inibiram os avanços no desenvolvimento da tecnologia 5G. 

Agora o país governado por Trump segue com pressão política sobre os governos mundiais para conter ou proibir a entrada de empresas chinesas como a Huawei e ZTE.

Ainda que os Estados Unidos estejam usado todos os recursos, desde a pressão diplomática até a militar, nenhuma delas deve frear o crescimento e o avanço da alta tecnologia chinesa na opinião dos pesquisadores do Instituto Tricontinental.

O país asiático colhe, hoje, os frutos de estratégias antigas. Em meados dos anos 2000, enquanto os Estados Unidos estavam atolados em guerras no Afeganistão, Iraque e outros lugares, a China construiu um sistema de comércio que conectou intimamente grandes economias do mundo a sua. 

Durante a pandemia de covid-19, o país foi o primeiro a frear a proliferação do vírus e retomar a atividade econômica em níveis próximos à normalidade. Como consequência, o FMI projeta que quase 60% do PIB global estimado em 2020-2021 será devido ao crescimento chinês.

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Futuro

Segundo o dossiê, a multipolaridade constitui uma base importante na política externa chinesa. Com os Estados Unidos negando a existência desse futuro multipolar, que parece ser inevitável, novas guerras frias e perigosas intervenções militares se anunciam para a próxima década, assim como guerras híbridas de todos os tipos. 

“A China, por enquanto, está decidida. Não está disposta a recuar e desmantelar seus ganhos tecnológicos. Nenhuma resolução é possível a menos que haja um reconhecimento da realidade: a China é igual ou mais avançada do que o Ocidente em termos de produção tecnológica em alguns setores, e a tendência é isso aumentar gradualmente, e não é nada que precise ser ou possa ser revertido por meio da guerra”, endossa o artigo.

Confira a íntegra do dossiê Crepúsculo: a erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar e outros documentos produzidos pelo Instituto Tricontinental.

Edição: Leandro Melito