Os dados reforçam que os entregadores sejam, em grande parte, jovens e negros das periferias
Por Stella Paterniani e Lauro Carvalho
“Agora dão duas opções para quem é pobre,
morrer na rua de corona ou em casa de fome
Entre morrer em casa e morrer na rua,
eu prefiro nenhuma das duas”
Rap dos Informais
A greve dos entregadores de aplicativos talvez tenha sido um dos momentos de maior destaque em 2020, quando olhamos as novas formas de organização dos trabalhadores. Apesar de recorrerem a uma prática já bastante conhecida, a greve, os entregadores de aplicativos inovaram na forma de articulação e nos sujeitos que estão envolvidos no processo. Com um formato de trabalho bastante recente e ainda não totalmente abarcado pela justiça trabalhista brasileira, a categoria movimentou o debate político ao convocar suas paralisações e provocar reflexões a partir de um caráter aparentemente confuso e eivado de disputas entre o trabalhador e o aplicativo.
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Uma das principais características do movimento foi sua descentralização. Com isso, não houve uma pauta de reivindicações nacionalmente uniforme, mas ganhou destaque demandas mais imediatas, como acesso direto às gorjetas, sem a mediação do aplicativo, contra os bloqueios arbitrários de entregadores pelos aplicativos, auxílios de saúde, acidente e distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); além da reivindicação por melhores taxas nos valores das corridas. Durante o processo de mobilização, foram relatadas greves em pelo menos sete capitais do país, entre outras cidades.
Uma das coisas que chama atenção nas mobilizações dos entregadores de aplicativos é o fato deles irem se constituindo como uma categoria de trabalhadores – sobre a qual ainda há pouquíssimos dados. Embora a categoria não seja nova no mundo do trabalho brasileiro, ela sofreu transformações quantitativas e qualitativas, sendo um dos setores da ponta do processo da chamada uberização do trabalho, como destaca o professor Marco Aurélio Santana: “É a classe trabalhadora plataformizada que opera em meio ao sistema mobilizado por aplicativos, articulando a sofisticada tecnologia digital com formas regressivas e precárias de trabalho”.
Juventude negra de periferia no trabalho precarizado
Embora ainda não exista uma categoria específica de entregadores de aplicativos dentre as categorias da Pnad Contínua nem da Pnad-Covid (IBGE), é possível extrair algumas reflexões sobre quem são esses sujeitos e o desenvolvimento desse setor. Para isso, na Pnad Contínua olhamos para a categoria “Condutores de motocicletas” e, na Pnad Covid, reunimos as categorias “Motoboys”, “Motoristas” (que envolve motoristas de aplicativos, táxi, van, mototáxi e ônibus) e “Entregadores” (Entregadores de mercadorias de restaurantes, de farmácia, de loja, Uber Eats, Ifood, Rappi etc). Importante destacar que isso significa que os dados não são precisos, já que não dizem respeito apenas aos entregadores de aplicativos por incluir outros trabalhadores, e pelo fato da categoria da Pnad Contínua, “Condutores de motocicletas”, não incluir os entregadores de bicicleta, parte importante dos entregadores de aplicativos. Nesse sentido, algumas de nossas indicações podem estar distorcidas.
A primeira indicação está de acordo com o observado por Manzano e Krein (2020): uma relativa estabilidade no número de trabalhadores Condutores de motocicletas, de acordo com a Pnad Contínua, entre 2012 e 2016, e o crescimento desse número a partir de 2016. Do primeiro trimestre de 2016 ao primeiro trimestre de 2020, o número de Condutores de motocicletas aumentou 39,2%: saltou de 522,1 mil para 729,7 mil (Gráfico 1).
Gráfico 1: Crescimento do número de Condutores de motocicletas na Pnad Contínua, de 2012 a 2020. Brasil, 2020.
Junto com o crescimento do número de Condutores de motocicletas, também cresce entre eles a taxa de informalidade. A informalidade entre esses trabalhadores aumentou mais do que a média de todos os trabalhadores ocupados no país, o que sugere um aumento expressivo do trabalho via plataformas de aplicativos e também reforça o que o Instituto Tricontinental tem dito desde o início da pandemia: que a Covid-19 intensificou uma crise econômica e social que o Brasil já vinha enfrentando desde antes.
Os dados da Pnad-Covid reforçam nossa proposição de que os entregadores de aplicativos sejam, em grande parte, jovens e negros das periferias. A proporção de negros entre os Motoristas, em maio de 2020, era de 58,8%; entre os Motoboys, de 65,8%; e entre os Entregadores, de 61,7% (Tabela 1).
Tabela 1: Distribuição racial dos entregadores de aplicativo. Brasil, 2020
|
Motoristas |
Motoboys |
Entregadores |
Total |
Pessoas ocupadas |
Total |
2.134.925 |
271.698 |
645.899 |
3.052.522 |
84.404.201 |
Brancos |
39,8% |
32,9% |
37,3% |
38,7% |
46,5% |
Negros* |
58,8% |
65,8% |
61,7% |
60% |
52,3% |
Além disso, os dados da Pnad Covid também reforçam um considerável aumento de jovens trabalhando nas categorias de Motoboys e Entregadores. Em maio de 2020, a porcentagem de trabalhadores com até 29 anos entre os Motoboys foi de 46,5% e, entre os Entregadores, de 40,6%, contra 25,5% entre o total de pessoas ocupadas.
Brecar o capitalismo de plataforma
Parte dos entregadores de aplicativo compõem o movimento de entregadores antifascistas, que enquadram suas reivindicações por melhores condições de trabalho com a luta em defesa da democracia, contra o capitalismo e contra o governo Jair Bolsonaro. Destes, quem tem se destacado na relação com a imprensa e como figura à frente das manifestações e mobilizações é Paulo Lima, morador da periferia de São Paulo, conhecido como Galo, apelido que herdou por causa da moto 7 Galo que pilotava.
No dia 21 de março de 2020, dia de seu aniversário de 31 anos, ao sair para uma entrega, o pneu de sua moto furou. Sem auxílio da empresa de aplicativo, ele conta que a empresa o orientou a cancelar o pedido, e que ele não seria penalizado por isso. Seguiu a orientação, deu seu jeito no conserto da moto e foi bloqueado no aplicativo. Galo viralizou com vídeos nos quais denunciava abusos das empresas de aplicativos; foi um dos organizadores de abaixo-assinado solicitando fornecimento de alimentação e álcool gel pelas empresas para os entregadores durante a pandemia; em retaliação, sofreu bloqueio das plataformas em que estava cadastrado.
Desde então, Galo tem se dedicado a mobilizar entregadores de aplicativos na atual conjuntura, que ele caracteriza como o pandemônio e a pandemia: “Ninguém nesse país que tem mais direito de estar na rua protestando que os entregadores, porque a gente já está na rua e aglomerado. Quando sai um pedido no restaurante, junta 20, 30, 40 entregadores para pegar os pedidos. Então, as pessoas que falam que não era pra estar na rua vão ter que lidar primeiro com a hipocrisia.”, afirmou Galo em entrevista à Pública.
Os entregadores antifascistas reivindicam a CLT e direitos trabalhistas. Galo, especialmente, tem buscado denunciar a mentira contada aos entregadores sobre eles serem empreendedores. Para ele, a ideologia do empreendedorismo cria a ilusão de liberdade, autonomia e independência e estimula soluções individuais para problemas sociais, conjunturais ou estruturais, fazendo com que muitas vezes os entregadores se sintam ofendidos ao serem chamados de trabalhadores.
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O breque dos app, como foram chamadas as paralisações no Brasil, escancarou as terríveis condições de trabalho do chamado capitalismo por plataforma, que prevê uma enorme massa de trabalhadores à disposição das empresas de aplicativo, desonerando-as de quaisquer responsabilidades com saúde e acidentes de trabalho e operando numa perversa lógica de descarte. Os entregadores antifascistas tomaram a frente para denunciar essa lógica, brecando seu ritmo nas grandes cidades brasileiras.
Edição: Rogério Jordão