O Judiciário é uma trincheira indispensável na superação das omissões do poder público
Na coluna de 04 de novembro do ano passado abordei o cenário de omissão sistemática na implementação da política de reforma agrária no país. Desde o início do governo Bolsonaro, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) paralisou, ao arrepio da Consittuição e da legislação infraconstitucional, os processos de desapropriação de imóveis para fins de reforma agrária e indica um orçamento ínfimo a diversas funções relevantes da autarquia.
Com base em informações prestadas pelo Incra ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), mencionei que mais de 400 processos de desapropriações de terras não receberam qualquer andamento. Embora não haja qualquer sinal de mudança desse quadro, é de se lamentar que o Judiciário, que teria um importante papel a cumprir na contenção das omissões do Poder Público, não tenha ainda oferecido respostas que assegurem o cumprimento da Constituição nesta matéria.
Eis que surge, agora, uma oprtunidade. Em 9 de dezembro, foi protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 769, que questiona a omissão sistemática do governo federal na concretização dessa política.
Trata-se de uma iniciativa da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultores Familiares (Contag) e da Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf) em conjunto com mais cinco partidos (PT, PSB, PSOL, PcdoB e Rede).
A ação da reforma agrária questiona no STF as medidas que suspenderam vistorias destinadas à obtenção de terras e pede ao tribunal que determine ao Incra que promova uma análise individualizada de cada processo, de forma a identificar as necessidades orçamentárias e encaminhar soluções.
Outros pedidos buscam impedir a desistência de processos judiciais de desapropriação nos quais tenha havido pagamento de indenização e determinar ao Incra que empreenda os esforços necessários para garantir a imissão na posse de imóveis em processos judiciais pendentes e a garantia de destinação prioritária de terras públicas para a reforma agrária.
Pede-se ainda a elaboração de um plano nacional de reforma agrária e a recomposição orçamentária da matéria.
Garantir a reforma agrária em conformidade com a lei, sem amarras, é o mínimo que se espera para acreditar na força normativa da Constituição cidadã
A medida chega em boa hora. Em diversos campos, o esvaziamento de direitos fundamentais e instituições por meio de interpretações restritivas da Constituição tem legitimado a paralisação de políticas públicas essenciais para a transformação social e a construção de uma sociedade mais justa e solidária. O Judiciário é uma trincheira indispensável na superação das omissões do poder público, sob pena de naturalização do cenário de implosão das normas constitucionais.
A ADPF 769, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, permitirá discutir, de forma ampla e plural, o alcance da reforma agrária. Para que isso ocorra, ela deve ter tramitação célere, com a possibilidade de realização de audiências e manifestação rápida da corte, tendo em vista as graves omissões nela narradas. Caso contrário, terá o mesmo destino da ADPF 742, proposta em setembro, que trata de políticas em favor das comunidades quilombolas para o enfrentamento da covid-19 e até hoje não foi apreciada.
Considerando a clareza do texto produzido na Assembleia Constituinte, que estipula o dever de a propriedade rural cumprir a sua função social e a sanção de desapropriação em caso de descumprimento, garantir a reforma agrária em conformidade com a lei, sem amarras, é o mínimo que se espera para acreditar na força normativa da Constituição cidadã.
Edição: Leandro Melito