RETROSPECTIVA

Ações de solidariedade durante pandemia deixam legado de esperança para 2021

Apoio a populações mais vulneráveis impediu que a fome atingisse os lares brasileiros de forma ainda mais intensa

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Vírus da solidariedade contra a pandemia da fome: MST doou quase 4 mil toneladas de alimentos da agricultura familiar - Foto: Campanha Mãos Solidárias

O ano de 2020 foi marcado pela saudade, pela dor da perda de entes queridos, pelo isolamento, pelos sorrisos tampados por máscaras e por abraços não dados. Mas foi também, neste conturbado contexto de uma crise socioeconômica e de saúde pública sem precedentes, que uma avalanche de solidariedade e coletividade emergiu. 

Ao passo que a pandemia do novo coronavírus se proliferava em nível nacional, nasciam iniciativas coletivas de apoio às populações mais vulneráveis em todos os cantos do país. 

Frente aos altos índices de desemprego, o combate à fome nas periferias se tornou a principal tarefa dos movimentos populares brasileiros. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, foi responsável pela doação de 3.800 toneladas de alimentos saudáveis e 700 mil marmitas desde a chegada da covid-19. 
 
A grande articulação em nome da solidariedade que conquistou o expressivo número de produtos da reforma agrária distribuídos é um processo inerente à militância sem-terra. 

“A solidariedade é um pilar fundamental, um princípio dos movimentos populares. O que o MST faz hoje é devolver pra sociedade a solidariedade que recebemos desde a origem do nosso movimento. E essa solidariedade é urgente em um momento tão difícil, em que a pandemia do vírus é também uma pandemia de fome. A pandemia no Brasil se encontra com uma desigualdade histórica que é fundante da sociedade brasileira ”, afirma Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST.

De acordo com relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO),  83,4 milhões de pessoas podem ter sido atingidas pela extrema pobreza em 2020, aprofundando a crise alimentar na região.

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As ações aconteceram em todas as regiões do Brasil, com destaque para alguns estados como o Paraná, onde o MST doou 501 toneladas de alimentos, produção oriunda de mais de 170 comunidades de acampamentos e assentamentos de 80 municípios do estado.

Mais de 38 mil marmitas foram distribuídas a partir da produção de hortas comunitárias. 

Os sem-terra chegaram a receber voto de louvor e congratulações da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) pelas doações. 

Para Roberto Baggio, coordenador estadual do MST no estado, as ações que se iniciaram de forma espontânea revelam que o caminho para a segurança alimentar é a distribuição da terra.

“A reforma agrária é essa potência de produção de alimentos saudáveis, de comida, do básico que alimenta e dá força ao povo brasileiro diariamente. Há uma grande diversidade, foram mais de 80 tipos de alimentos diferentes produzidos pelos assentados e acampados”, comemora Baggio.

Segundo o dirigente, essa rede de apoio contou com a participação de diversas entidades como pastorais, igrejas e sindicatos que se somaram à luta para mitigar os efeitos da crise socioeconômica.

“O sofrimento e a dor, de certa forma, sensibilizou e motivou nossa base social para retribuir o que historicamente recebemos de solidariedade nos tempos de acampamentos e ocupações, onde a fome também existia”, diz ele. 

“A solidariedade, de certa forma, oxigenou a organicidade e as ações passaram a acontecer semanalmente. Foi muito rico esse processo todo. Aproximou a luta urbana com a luta do campo. Uma cooperação solidária que fortalece os trabalhadores como um todo”, ressalta Baggio. 

As brigadas internacionalistas do movimento realizaram doações em outros dois países latino-americanos, Haiti e Venezuela, e também estão presentes na Zâmbia, centro-sul da África.

O povo cuidando do povo

Em nível nacional, as ações populares foram canalizadas em duas iniciativas principais.

Uma delas foi a campanha “Vamos precisar de todo mundo”, construída pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo Sem Medo, que reúne organizações do campo e da cidade que arrecadaram alimentos para populações mais vulneráveis. 

O site da campanha apresenta um mapa com os “pontos de solidariedade” registrados em todo o país, assim como informações bancárias para aqueles que querem realizar doações financeiras para as organizações fortalecerem suas ações de solidariedade. 

A outra iniciativa é o Periferia Viva, criada como uma resposta popular à ausência de políticas efetivas do governo Bolsonaro em meio à pandemia. 

Além do MST, integram a campanha o Levante Popular da Juventude, o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), a Rede de Médicos e Médicas Populares, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e Consulta Popular. 

A ampla articulação organizou doações e entrega de alimentos saudáveis, assim como marmitas, itens de necessidade básica, ações de prevenção e conscientização sobre o coronavírus. 

A rede também engloba a campanha Mãos Solidárias, que vai muito além da doação de alimentos. Em Recife (PE), por exemplo, foram criadas Brigadas de Ação Solidária que atuaram em diferentes eixos.

Enquanto a Comissão de Saúde orienta a população que recebe marmita sobre os cuidados para evitar a contaminação pela covid-19, a Comissão de Direitos auxilia pessoas em situação de rua para que recebam o auxílio emergencial. Há ainda uma comissão voltada somente para a confecção de máscaras de proteção individual para voluntários e alguns serviços do SUS.

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Eliane Martins, do Movimento de Trabalhadoras por Direitos, afirma que neste grave momento de crise a própria concepção do que é a solidariedade perpassa uma formação política. 

“Nessas ações são onde vamos reforçar a dimensão de uma solidariedade orgânica, ativa, de classe. Combatendo e disputando a concepção de uma solidariedade burguesa que trata as pessoas como passivas, como alguém que não tem tarefas no processo social, político e coletivo em suas comunidades”, comenta. 

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Ela reforça que o contato desenvolvido entre os movimentos populares urbanos e do campo com a população das periferias representa muito mais do que a entrega dos alimentos.

“Essa comida é também uma mensagem de força e de organização. Mostra o que pessoas tão excluídas da riqueza nacional são capazes de fazer quando se organizam, quando têm um projeto e uma luta comum”. 

O Periferia Viva é uma ação contínua que converge os esforços de cerca de 5 mil militantes, voluntários e ativistas em mais de 60 cidades em todas as regiões brasileiras. 

De março a dezembro, mais de 200 mil famílias foram beneficiadas pelas ações e 30 mil cestas básicas foram distribuídas. Incluindo a produção do MST e de outras organizações do campo, 20 mil toneladas de alimentos reforma agrária popular foram doadas. 

A participação de sindicatos e entidades representativas dos petroleiros, que doaram gás de cozinha para a produção das marmitas e também para a população mais pobre, foi essencial no último período. 

Com a chegada do fim do ano, e principalmente da semana natalina, as doações devem se intensificar ainda mais com o aumento da distribuição de cestas, das famosas quentinhas e promoção de ceias comunitárias.

 

 

Saúde popular

Em meio a noções erráticas propagadas nas redes sociais e pelo próprio presidente Jair Bolsonaro do que é a pandemia, os ativistas do Periferia Viva, em união com lideranças locais, se debruçaram para entender os processos da covid-19 e explicá-los de forma didática nos bairros e cidades.

Em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e com a Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares (RNMMP), cursos de formação de Agentes Populares de Saúde aconteceram no Distrito Federal e em 15 estados do país. 

São eles Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Pará.

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Lívia Milena Méllo, professora de saúde coletiva da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), é uma das tantas profissionais que se juntaram de forma solidária a esse processo, ajudando na formulação da proposta de um curso presdencial de 20 horas, dividido em módulos.

“No primeiro módulo trabalhamos o entendimento sobre o vírus, formas de prevenção e eliminação dele através da lavagem correta de mãos, preparação e uso de solução de água sanitária, uso correto de máscara. No segundo módulo apresentamos uma proposta de atuação dos Agentes Populares nas comunidades. E, por fim, no módulo 3, refletimos sobre as ausências de direitos que inviabilizam muitas pessoas de fazerem a quarentena com segurança”, relata a docente.

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Os mais de 2 mil agentes formados desenvolveram ações como visitas e monitoramento de casos supeitos de covid na vizinhança, orientações de práticas de higiene e cuidados naturais em casos de sintomas gripais, preparo de soluções de limpeza com água sanitária, orientaçãos em casos de óbitos domiciliares e de dificuldades com acesso ao auxílio emergencial. 


Formação dos agentes populares aproximou ativistas da população em diversos estados brasileiros / Foto: Periferia Viva

O projeto, que surgiu em Pernambuco, permitiu também a articulação dos agentes com as redes de apoio sociais locais, como postos de saúde dos bairros ou outro equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS). O Mãos Solidárias também organizou hortas comunitárias e bibliotecas populares. 

“Através da solidariedade ativa, as agentes populares exercitam o papel de protagonistas, percebendo, na prática, a determinação social do processo saúde-doença e a importância de lutar por direitos para que seja possível uma vida saudável. Afinal, sem comida, água, renda, moradia, não dá pra ficar em casa”, acrescenta Mello.

A Editora Expressão Popular também entrou na roda de solidariedade e doou mais de 500 kits com obras para ativistas envolvidos diretamente nas ações populares. 

Os heróis de 2020

A atuação dos profissionais de saúde na linha de frente no combate ao novo coronavírus foi e ainda é imprescindível.
 
No país que concentra o segundo maior número de vítimas fatais, o sentimento de solidariedade também foi o combustível para incontáveis atendimentos de auxiliares de enfermagem, enfermeiros e médicos. 

Com a alta demanda e em meio ao isolamento social, algumas propostas voluntárias surgiram para além dos corredores dos hospitais e salas de consultórios. 

A plataforma Missão Covid, por exemplo, reúne médicos com CRM ativo de todas as especialidades para realizar atendimento gratuito da população pela internet.

Ao orientar a população sobre os sintomas da síndrome respiratória e fazer uma triagem dos casos, o teleatendimento visa evitar a sobrecarga das emergências nas unidades de saúde pública.

O cuidado com a saúde mental também se fez urgente em uma conjuntura tão turbulenta que impôs uma série de protocolos, distanciamentos e mudanças drásticas no dia a dia.

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Para ajudar a controlar a ansiedade e a lidar com as incertezas da pandemia, psicólogos criaram projetos para atendimentos voluntários. O Psicologia Solidária Covid-19, por exemplo, fornece um plantão psicológico on-line para profissionais da rede de saúde independente da função exercida. 

Já a iniciativa Humanidades 2020, que conta com a participação voluntária de 80 profissionais, realizou mais de três mil atendimentos nos primeiros seis meses de pandemia. 

A ideia do projeto é ajudar em momentos mais críticos por meio de conversas reflexivas. Em agosto, o Humanidades 2020 lançou a Rede de Conversa, um espaço aberto para pessoas compartilharem suas histórias semanalmente.

O atendimento psicológico emergencial também é oferecido de forma gratuita pelas universidades Metodista e UniSantos. 

A esperança no ensino

A área da educação também foi duramente afetada pela pandemia. As dificuldades do ensino à distância, principalmente para famílias em situação socioeconômica vulnerável, sem acesso à internet, impediram que o conteúdo escolar chegasse da forma adequada para milhares de crianças e jovens. 

Neste contexto, mais uma vez, os educadores se desdobraram em grupos de WhatsApp para ajudar seus alunos o máximo possível. 

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E não só virtualmente. O professor Arthur Cabral é um exemplo da grandiosidade da dedicação desses profissionais durante a pandemia. 

Após as primeiras semanas de ensino remoto, ele notou que os mesmos 20 alunos entre as dezenas de estudantes para quem lecionava na Escola de Referência em Ensino Fundamental e Médio Deputado Oscar Carneiro, localizada em Camaragibe, região metropolitana de Recife (PE), não compareciam às aulas online. 

Decidiu visitar esses alunos, que possuem entre 11 a 13 anos, para saber o que estava acontecendo. Foi então que constatou a dificuldade das famílias que não possuiam aparelhos eletrônicos e internet para que as crianças acompanhassem as atividades escolares.   

Sem hesitar, o professor de ciências passou a pedalar 7 km de Recife para Camaragibe todas as sexta-feiras para entregar os conteúdos impressos, resumos e materiais de outras disciplinas para cada um desses 20 alunos. 

A atitude do mestre em biologia, que em sua bicicleta enfrentou semanalmente ladeiras e vielas, ganhou repercussão nacional e apoio de outros profissionais da escola.


O professor de Ciências Arthur Cabral separando as atividades escolares para serem entregues aos estudantes que não tinham acesso à internet / Foto: Arquivo Pessoal

Arthur conta que decidiu levar as tarefas como uma forma de retribuição da experiência vivida por ele em 2009, quando a gripe H1N1 chegou ao Brasil e trouxe a possibilidade da suspensão das aulas. 

Assim como seus alunos atualmente, na época ele não possuía internet ou celular, e recebeu materiais dos professores para caso fosse de fato necessário estudar em casa.

“Foi mais do que uma tarefa de um educador, mas de uma pessoa que tem empatia pela vida dos estudantes. Eu acredito muito na educação. Acredito que um futuro sem educação não existe”, afirma Cabral, relembrando que os pais, responsáveis e os próprios estudantes levaram um susto quando o viram em suas portas.

“Sempre no início dos anos letivos, eu falo pros estudantes que não vou desistir deles. É até uma forma de descontrair e conhecê-los melhor. E 2020 chegou para colocar isso à prova”.

Depois de meses de pedalada, pessoas de diferentes regiões do país entraram em contato com o professor para oferecer ajuda às famílias. Uma solidariedade espontânea que rendeu frutos imediatos: Cabral conseguiu entregar 18 celulares para os estudantes acessarem as aulas remotas. 

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O professor destaca a riqueza da experiência. “Começamos a nos conhecer de uma forma muito melhor, tanto os estudantes como os responsáveis. Uma troca muito boa. Eu não levava apenas as atividades, toda sexta-feira eu perguntava se eles tinham dúvidas, conversava com as mães, como tinha sido a semana. Isso me trouxe um ganho profissional muito grande, pude conhecer de perto muitas realidades”.

Mesmo com o ensino à distância garantido, ainda que não nas melhores condições, a solidariedade não parou por aí. Como as famílias dos alunos em Camaragibe são compostas por muitos trabalhadores autônomos, que não puderam trabalhar durante a pandemia, a renda foi comprometida.

Desde então, todo mês, Arthur Cabral continua visitando a casa de seus vinte alunos para a entrega de cestas básicas de doações que recebe e organiza.

Diante do descaso com a educação pública e desvalorização dos profissionais, ele reforça que os professores não irão desistir do ofício. 

“O Paulo Freire dizia que a educação, o professor, tem que levar esperança. Do verbo esperançar e não do verbo esperar. A esperança do verbo esperançar é se juntar com o outro para mudar a realidade, para fazer e ter um olhar diferente, trazer novas perspectivas. A pandemia, mais do que nunca, trouxe a necessidade de termos esse esperançar.”

Saldo político positivo

Ainda que os impactos desastrosos da covid-19 sejam sentidos pelos próximos anos, a explosão dessa rede de solidariedade anuncia perspectivas positivas para a organização popular.

Essa é a avaliação de Eliane Martins, para quem as doações explicitaram a capacidade e a urgência da criação de um Sistema Popular de Abastecimento para garantir a segurança alimentar no país. 

Segundo ela, a solidariedade possibilitou a abertura de portas para o diálogo com a população dos grandes centros urbanos, assim como a articulação política e a unidade entre diversas categorias. 

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O aprofundamento de tais relações, para a dirigente do MTD, permite uma leitura mais aguçada da realidade e a formação política mais ampla, baseada na prática, em busca da construção de um outro mundo. 

“Olhamos para 2020 e dizemos: trabalhando juntos rendemos muito mais. Com a inteligência coletiva, social e partilhada, damos saltos muito maiores. Estamos diante de uma mensagem muito bonita, de esperança no meio do caos. De olhar para o caminho e vermos como vamos atravessar esse pântano da nossa realidade política, econômica e de valores. O pântano do neoliberalismo na chave da ultradireita. Ele é horrendo mas vamos passar por ele. O que estamos desenhando aqui é uma ferramenta comum e coletiva para fazermos essa cruzada”.

Edição: Rogério Jordão