Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | 52 anos de um país preso no AI-5

“É fundamental para construirmos um Brasil democrático, efetivamente, um ‘acerto de contas’ guiado pela justiça”

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O Ato Institucional 5 resultou no fechamento do Congresso e tornou sistemática a perseguição a opositores do regime
O Ato Institucional 5 resultou no fechamento do Congresso e tornou sistemática a perseguição a opositores do regime - Reprodução

Neste dia 13 de dezembro fez exatos 52 anos que o ditador Arthur da Costa e Silva, gaúcho de Taquari, editou o Ato Institucional-5. Era o Brasil, em 1968, mergulhando de cabeça numa ditadura com pedras pontiagudas no leito do poço. Enquanto país, quebramos nossa cabeça, intensificando uma ditadura civil militar, que duraria 21 anos e faria do Brasil mais uma “republiqueta” na órbita dos interesses estadunidenses em meio à Guerra Fria. Esse ato, o 5º, era o que faltava de uma “Ditadura Envergonhada” (como diz Elio Gaspari), o da covardia, institucionalizando a perseguição política, sem vergonha e cerimônia alguma. Tornando a censura uma prática cotidiana nas redações desse país. Além de ter institucionalizado a tortura como prática “justiceira” – chaga que ainda não superamos e admitimos publicamente como prática “possível” e “última”, como faz todo dia o presidente, um apaixonado pelos AI’s e pela ditadura de 64-85.

O AI-5 tem o dolorido poder de nos fazer lembrar dos milhares perseguidos, torturados, esfolados vivos sob tutela do Estado brasileiro, responsável por centenas de assassinatos e “desaparecimentos”, cujos milhares de familiares sequer puderam velar e enterrar os corpos dos seus, que seguem mais de 50 anos depois “desaparecidos”, num luto sem fim. Conforme o levantamento da Human Rights Watch (HWR), publicado no estado em 27 de março de 2019, em reportagem assinada por Roberta Jansen, estima-se que ao menos 434 pessoas foram mortas ou ainda seguem “desaparecidas”, assim como cerca de 20 mil pessoas foram torturadas por forças policiais ou grupos de extermínio e quase 5 mil representantes do povo tiveram seus mandatos cassados pela ditadura – em nome da proteção do Brasil ante ao Comunismo. Aliás, esse é um argumento vivo na cabeça doente “terceiro mundista”, vide os ataques a Boulos e Manuela, nas últimas eleições em São Paulo e Porto Alegre.

Esses 52 anos do tal ato seguem sendo tempo de denunciarmos a vergonha que nesse aspecto nos faz uma “republiqueta”, que nunca passou esse passado a limpo, bem como a ditadura do Estado Novo Varguista, ainda saudoso de tanta gente, em especial aqui no RS, onde Vargas permanece quase que intocado. Aliás, somos afeitos ao autoritarismo caudilhesco que marca nossa paleta, como gado do poder – dos seis ditadores que tivemos, quatro são gaúchos (Vargas, Costa e Silva, Médici e Geisel) e o outros dois (Castelo Branco e Figueiredo) tiveram estrita formação com o RS – somos uma fábrica de ditadores. 

Nos negamos a “acertar contas” com a história, como vem fazendo os argentinos, chilenos e uruguaios - a duras penas é verdade. E isso gera uma colateralidade medonha, a ponto de tanta gente nostálgica dos “bons” tempos de “ditadura”, uns por ignorância e outros por, parafraseando a Hanna Arendt, “banalizarem o mal”. Há muita “gente” incapaz de sentir o mínimo de empatia pelo outro e isso não tem nada a ver com ideologia política – é sobre precitos básicos de humanidade.

Somos um país marcado por admitir e naturalizar uma História em que seus filhos/as tiveram de ir embora para o exílio, refazer suas vidas longe ou então ficar à mercê de um Estado autorizado a matar, sem prestar contas a ninguém, que ignorou os direitos individuais dos seus cidadãos. E o rescaldo mais concreto desse período está posto aí no cenário político atual, mostrando desdobramentos de um AI-5 que não acabou, tanto que admitimos como país, naquele fatídico domingo de 17 de abril de 2016 - um voto de impeachment ao vivo e em rede nacional - ser dedicado ao maior dos torturadores da ditadura civil-militar de 1964-1985 (condenado por estupros, mortes...). 

Ali, naquele momento, ficamos enquanto nação, ali reaprisionados no tempo, naquele plenário. Não é possível levar nossas instituições a sério depois desse voto no parlamento, na “casa do povo”. E mais, 57,7 milhões de compatriotas escolheram esse caminho, pouco mais de dois anos após esse dia, nos condenando a não sair desse passado, que segue a nos atormentar. Isso é parte do AI-5 que não acabou.

São 52 anos de uma cadeia, sem grades ou muros – de um país enclausurado na sua ignorância e perversidade, onde os que lutam por justiça pagam caro seu preço. É um tempo que não passa, uma ferida que não cura e de uma dor que não suaviza, porque tudo persiste sob o jugo da injustiça, do amparo das instituições a invisibilização histórica, protetoras de infames. Em que um dos maiores países do mundo, vive institucionalmente na morimbundice, como um zumbi no escuro da história. O AI-5 foi parte e continua sendo de uma metástase sem fim, da corrosão da nossa moralidade e desprezo pela institucionalidade democrática. Porque não permite sequer que tantas famílias possam chorar os corpos de seus entes assassinados, bem como não coloca atrás das grades, aqueles que tiraram vidas sob as ordens do Estado autoritário.

Por isso o nosso movimento pela memória tem de ser reavivado e reconstruído a todo instante, porque o passado como, mérito pretérito, é traiçoeiro e se não remexido como a brasa no fundo da lareira, apaga, cai no esquecimento. Felizmente hoje temos um acervo historiográfico que ganha corpo a cada ano, com mais pesquisas e publicações sobre esse período da nossa História contemporânea, mostrando e provando o quanto a ditadura civil-militar de 64 nos faz refém de tudo que ela produziu e de tudo que ainda desdobra desse período. Ainda que neguem, esbravejem e esperneiem, os revisionistas e negacionistas vão sendo e precisam ser, sempre, “patrolados” pelos fatos e pelas pesquisas, que cada dia os coloca ainda mais na desprezível “lata do lixo da História”. 

Porque é fundamental para construirmos um Brasil democrático, efetivamente, um “acerto de contas” guiado pela justiça. Só assim vamos, aos poucos, nos livrarmos das trevas que mergulhamos naquele dia 13 de dezembro de 1968, um dia que não terminou, e que foi ilustrado por um comunicado em rede nacional, que ainda ecoa no fundo das nossas cabeças e representa o que construímos de pior na humanidade, uma ditadura. Por isso é necessário que façamos viva em todos os espaços de nossa vida a luta pela Democracia, lembrando sempre da frase do democrata, Ulisses Guimarães, gritada naquele 5 de outubro de 1988, com a Constituição Federal em punho: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. Ainda passaremos a história desse país a limpo.

*João Paulo Reis Costa é historiador


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Edição: Marcelo Ferreira