Os movimentos feministas impulsionaram a agenda e o peronismo abraçou a causa. Com a coalizão Frente de Todos (FdT) no governo, o próprio poder executivo apresentou um projeto de lei pela legalização do aborto, a partir das conclusões das discussões do projeto de 2018, que terminou aprovado pelos deputados, mas reprovado pelo Senado.
Assim como 2018, agora o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez (IVE) conta com a chamada "meia-sanção" no país: ou seja, meia aprovação, antes da sanção definitiva de uma lei. Com 131 votos a favor, 117 contra e 6 abstenções, a Câmara de Deputados da Argentina aprovou a proposta na manhã desta sexta-feira, por volta das 7h20.
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Dessa vez, o peso a favor foi mais significativo: se em 2018 foram 129 votos contra 125 negativos, este ano o projeto foi aprovado com 131 votos e teve 117posicionamentos contrários. Foram mais de 20 horas de intervenções de 164 deputados que expuseram seus argumentos a favor ou contra o projeto de lei.
O Senado deverá definir ainda hoje quantas comissões irão tratar a matéria para discutir e propor possíveis modificações.
O governo avalia apontar as comissões de Assuntos Constitucionais, a de Justiça e Assuntos Penais, a de Saúde e a de Legislação Geral. Em 2018, as comissões que trataram o projeto de lei do aborto foram encabeçadas por detratores do projeto, incluindo a vice-presidenta Gabriela Micheti, presidente do Senado.
O plenário com as comissões que tratarão o projeto de lei não deverá ser tão extenso quanto o de 2018. O governo espera poder convocar a sessão para o dia 30 de dezembro, sendo assim, o plenário deveria emitir a decisão por maioria já na próxima sexta, 18 de dezembro.
É obrigatório que o Senado deixe transcorrer sete dias após a decisão de maioria e a sanção de uma lei. Considerando esta regulamentação e os feriados de fim de ano, o dia 30 dezembro seria o último possível este ano para a sanção definitiva ou rejeição da IVE pelo Senado.
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O cenário ainda é apertado e, segundo especulações e considerando os senadores que já se posicionaram, o resultado depende de 5 indecisos-chave.
São eles: Silvina Larraburu (FdT), que votou contra em 2018; Juan Marino (Cambiemos); Lucila Crexell (JxC), que se absteve em 2018; Eduardo Kueider (FdT) e Stella Olalla (JxC). Em 2018, o projeto foi rejeitado com 38 votos, contra 31 a favor.
Polarização
Ainda que o peronismo tenha abraçado a pauta feminista, o aborto ainda é tema tabu para muitos, o que se reflete na postura de legisladores inclusive da coalisão do governo atual, a Frente de Todos (FdT).
O debate revela polarizações internas nos partidos e nas correntes políticas, e divide fortemente os votos nas legendas. Portanto, acompanhar o debate pelo aborto na Argentina é também ver expostas as raízes profundamente ligadas à igreja na conformação de certas linhas políticas.
Enquanto legisladoras liberais mais jovens não só votam a favor como fazem forte campanha pela autonomia das mulheres e justificam com argumentos sólidos seu posicionamento favorável ao aborto, deputadas do FdT revelam sua postura conservadora, especialmente as de províncias também de tradição conservadora, como Tucumán.
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Os principais blocos opositores – o FdT do campo progressista e o Juntos por el Cambio (JxC), da direita macrista –, expressaram diferentes posicionamentos internos, ainda que o FdT tenha somado mais força nos votos "verdes" -- em referência aos lenços verdes utilizados pela militância pró-aborto -- e o JxC tenha tido mais votos "celestes", contrários à legalização.
Foram 82 legisladores do FdT e 42 do Juntos por el Cambio (bloco macrista) que votaram a favor da legalização do aborto. Por outro lado, foram 32 votos contra do FdT e 69 do JxC.
A aprovação dos deputados
Diferença de 2018, este ano a Argentina debate um projeto de lei com o respaldo e o envolvimento direto do executivo. Impulsionado pela equipe do presidente Alberto Fernández, o projeto teve tratamento mais rápido e deverá expor a capacidade de negociação do governo.
Após a longa discussão e a votação do IVE, a sessão tratou o outro projeto de lei enviado pelo poder Executivo, o Plano dos Mil Dias, que visa acompanhar e proteger integralmente a gestantes e seus filhos durante a primeira infância. O projeto foi tratado rapidamente e aprovado sem nenhum voto negativo, por volta das 8h40. Foram 196 votos a favor e 5 abstenções.
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O envio do projeto dos Mil Dias foi estratégico, como uma resposta aos argumentos contrários à IVE de que o "aborto não pode ser a única saída". Na abertura do plenário das comissões que discutiram o projeto antes de ser enviado à Câmara, a secretária de Legal e Técnica da Presidência, Vilma Ibarra – outra figura central na promoção do projeto –, enfatizou que as pessoas gestantes devem ter autonomia para decidir seguir ou não com uma gravidez, e que a condição econômica não seria um fator decisivo nesse sentido.
A deputada do FdT Gabriela Cerruti encerrou a sessão com uma exposição enfática: "O mundo é injusto, mas a resposta não está no nosso útero. Ao contrário, o mundo é injusto porque está construído há 500 anos sobre um sistema baseado na exploração das mulheres".
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Edição: Leandro Melito