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Quanto a Bolsonaro, parece que ele prefere prolongar a pandemia do que entregar a vitória a seu rival João Doria - Marcos Corrêa / Fotos Públicas
O quadro da dor vai além da pandemia

A questão social tratada como caso de polícia. A política dos governadores em conflito com o governo central. Militares e paulistas de olho na cadeira presidencial. E uma revolta da vacina que se avizinha, enquanto a saúde continua sendo privilégio de poucos. Poderíamos estar de volta aos tempos da República Velha, mas é o Brasil que chega ao fim de 2020.

1. Não se fala de outra coisa. Sim, a vacinação já começou no Reino Unido e na Rússia. Enquanto isso, aqui no Brasil teremos que enfrentar dois empecilhos para acabar com a pandemia. Primeiro, somos um país pobre num mundo onde mais da metade das doses de vacinas previstas já foram compradas pelas nações ricas. E, como se não fosse suficiente, contamos com a sabotagem do governo federal, que continua fazendo política para o cercadinho. Além de não ter plano de imunização para o país, os 7 milhões de testes de Covid-19 que estavam para vencer, e que tiveram o prazo estendido pela Anvisa, continuam no depósito do aeroporto de Guarulhos. Ao invés de preocupar-se em ampliar o número de pessoas imunizadas, o governo tenta restringi-lo ao excluir a população carcerária do grupo de vacinação prioritário. Porém, começam a surgir pressões de todos os lados. Confirmando que em política não há espaço vazio, o governador de São Paulo, João Dória (PSDB) percebeu que esta é a oportunidade de ouro para lançar-se como alternativa a Bolsonaro.

Doria prometeu disponibilizar no final de janeiro de 2021 a vacina chinesa Coronavac, que já começou a ser produzida em parceria com o Instituto Butantan, e ainda disponibilizou a outros estados. Pelo menos onze governadores já estão negociando com o governo paulista. Soma-se ao movimento o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que alertou para o risco de pânico na sociedade caso não haja perspectivas de vacinação e disse que o Congresso vai elaborar um plano “com ou sem a participação do governo”. O STF, por sua vez, entrará em cena no próximo dia 17 com o julgamento de duas ações, uma movida pela Rede Sustentabilidade, que obriga o governo federal a disponibilizar a Coronavac, e outra movida conjuntamente por Psol, Cidadania, PT, PSDB e PCdoB, que exige do governo a apresentação de um plano de vacinação no prazo de 30 dias. E a demanda no STF vai aumentar, pois tanto o governador do Maranhão Flávio Dino (PCdoB) quanto a OAB querem que o tribunal dê aval para a validação automática no Brasil de vacinas já registradas no exterior, sem aval da Anvisa. Mesma proposta apresentada por deputados petistas como projeto de lei.

2. O general das derrotas. Quanto a Bolsonaro, parece que ele prefere prolongar a pandemia do que entregar a vitória a seu rival João Doria. Apesar disso, ele já considera os riscos dessa conjunção de forças. Sua resposta é dificultar a vida de seus adversários e, no discurso, acrescentar pitadas de moderação. Bolsonaro chegou a dizer que qualquer vacina aprovada pela Anvisa seria disponibilizada a todos os brasileiros, gratuitamente e de forma não obrigatória. Mas na prática o governo age para atrasar o processo. Em primeiro lugar, ele aparelha a Anvisa com militares aliados. O contra-almirante Antônio Barra Torres, diretor da agência, já anunciou que o relatório sobre a vistoria feita na empresa chinesa Cinovac demorará cerca de um mês para ser finalizado.

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Já o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, cada vez que abre a boca, aumenta mais o buraco onde está metido. Pazuello disse que o tempo mínimo para qualquer registro no Brasil seria de 60 dias. E, em seguida, evidente que não pretende viabilizar o registro da vacina chinesa. Mas, percebendo que precisa apresentar alguma alternativa, o governo corre atrás de um acordo com a Pfizer e com a Biontech. Contrariando o que disse anteriormente, Pazuello afirma agora que em 2021 toda a população será vacinada e que é possível que a vacinação inicie em dezembro, o que ninguém considera realista. O Fórum Nacional do Governadores também entrará com um pedido de registro da vacina da Pfizer/Biontech na Anvisa. Mas a empresa informou que não poderá entregar as doses antes de janeiro. Enquanto isso, o Brasil teve um aumento de 35% de novos casos de Covid-19 em apenas uma semana, a maior alta desde agosto e há 58 casos suspeitos de reinfecção. Na gestão de Pazuello, o número de casos aumentou 30 vezes e o de mortes, 12 vezes. Pior, ninguém sabe exatamente o que ocorrerá no verão, mas Santa Catarina talvez sirva de exemplo: com baladas e praias lotadas o estado vive o pior momento da pandemia. Um cenário que deve se multiplicar se depender do ministro do Turismo. Aguarda-se para ver se as novas restrições à circulação de pessoas impostas por alguns governadores e prefeitos, agora sem a pressão das eleições, vão surtir algum efeito.

3. O pulso ainda pulsa. O quadro da dor vai além da pandemia. No Rio de Janeiro, cerca de 16 mil profissionais de saúde estão com salários atrasados. Com hospitais lotados, falta de recursos humanos e nove meses de atraso nos pagamentos, só agora o governo tomou a iniciativa de formar agentes de saúde voltados para o combate a endemias, como hipertensão e diabetes, que sobrecarregam o SUS. Além disso, o general-ministro Pazuello prepara a revogação de mais de 100 portarias que tratam da saúde mental editadas entre 1991 e 2014. A medida vai atingir áreas como o programa anual de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS, as equipes de consultório na rua, o serviço residencial terapêutico e a comissão de acompanhamento do programa de volta para casa. A coordenadora-geral de saúde mental, álcool e outras drogas do Ministério da Saúde, Maria Dilma Alves Teodoro, pediu demissão do cargo em protesto contra a decisão.

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Para piorar, o Ministério deixou vencer o contrato com a empresa que fazia exames de genotipagem para o SUS, dos quais dependem os tratamentos para portadores de HIV e hepatites virais. A Articulação Nacional de Luta contra a Aids estuda levar o caso ao Ministério Público Federal. Por fim, a Controladoria-Geral da União (CGU) descobriu graves irregularidades em contratos fechados em 2019 entre o SUS e diversas organizações sociais de saúde que somam um prejuízo de R$ 360 milhões. Neste ambiente de negligências, até um novo superfungo resistente a medicamentos se sente à vontade para proliferar, causando apreensão na Anvisa.

4. Onde vida nenhuma importa. Assassinadas por tiros de fuzis de policiais militares, enquanto brincavam na frente de casa, na Baixada Fluminense, as meninas Emilly Victoria, de 4 anos, e Rebeca Beatriz, de 7, devem, em breve, se tornar apenas parte das estatísticas, como outras 22 crianças baleadas no grande Rio este ano. No ano passado, foram 24 crianças. Não é à toa que o destino do caso seja a impunidade. Tal como ocorreu com os assassinatos de João Pedro e Ágata, há um edifício institucional armado para reprimir sem penalidade. Como demonstram as 15 perguntas de Tiago Amparo para o Governo do Rio, o Ministério Público e a Polícia Civil e que demonstram a (ir)responsabilidade destas instituições. Não poderia se esperar nada diferente de uma articulação institucional que em mais de mil dias não respondeu quem matou Marielle Franco e que conta com a militância do governo federal, como se viu mais uma vez na isenção de impostos para importação de armas. No caso das meninas, o consumo de munições do 15º BPM (Duque de Caxias), onde são lotados os policiais investigados pelos homicídios, foi 75% maior do que em setembro.

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Além de um aparato militar descontrolado e sentindo-se à vontade para matar, é indiscutível o componente racial nos homicídios por policiais. Na Bahia, 97% das 650 pessoas mortas por policiais no ano passado eram negras, um percentual muito maior do que a proporção da população negra no estado (76%). Em seguida, Pernambuco (93% dos casos), Ceará (87%) e Rio (86%) são os estados em que a polícia mais assassina negros. Em Alagoas, há dois meses, se pergunta onde está o pedreiro Jonas Seixas, visto pela última vez dentro de um camburão da PM. No Rio Grande do Sul, onde há menos de um mês um policial temporário assassinou um negro no Carrefour, uma ação policial resultou na morte da promotora legal popular Jane Beatriz. E, mesmo num contexto em que a luta antirracista tem dimensões globais, a aprovação no Congresso da adesão do Brasil à Convenção Interamericana contra o racismo contou com votos contrários do Partido Novo, do MBL e de parte do bolsonarismo.

5. Pólvora. O ano está terminando, a pandemia não. Mas mesmo assim, o auxílio emergencial não deverá ingressar em 2021. Desta forma, 60% da população deixará de receber o auxílio e 21 milhões de brasileiros começarão o ano vivendo com menos de R$1 por dia, portanto, em pobreza absoluta. Se as perspectivas são cruéis no subsolo da pirâmide social, ela não é nem um pouco mais favorável nos demais andares da classe trabalhadora. Além do fracasso em derrotar a pandemia e da ausência de um programa de renda, a combinação explosiva inclui o desemprego de 13 milhões de brasileiros. Isto representa 3 milhões a mais do que no mês de maio e outros 6 milhões de pessoas desalentadas, ou seja, desempregados que desistiram de buscar trabalho. Soma-se ao desemprego o aumento em 5% no botijão de gás e a cobrança de bandeira vermelha na conta de luz.

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Em janeiro, devem ser reajustados os planos de saúde, transporte público e a energia elétrica. Para enfrentar uma crise econômica que pode se transformar em crise social, que tal “flexibilizar” ainda mais direitos? Essa é a grande proposta de Paulo Guedes, além do mantra das reformas e privatizações. Nesta semana, Guedes prometeu fortes sinais de que o governo vai realizar o ajuste fiscal, sem especificar o que. O problema é que nem o mercado acredita mais na capacidade do governo em entregar estas promessas e elas passam, necessariamente, pela relação com o Congresso.

6. Todos contra todos. Para Bolsonaro, mais importante do que políticas que contenham a crise econômica é ter alguém que engavete pedidos de impeachment. Arthur Lira (PP-AL) tem se candidatado para a tarefa há meses e não só é o candidato de Bolsonaro, como também de parte do centrão, selando um casamento que já nasceu sufocando crises com base no toma-lá-dá-cá. Por isso, lembra Thaís Oyama, o apoio do governo a Lira é o fim do discurso anti-sistema que elegeu Bolsonaro em 2018, e pode preparar o caminho para que sua reeleição seja embalada por um discurso de direita mais tradicional. A dupla Bolsonaro-Lira foi beneficiada pela decisão do STF de confirmar a impossibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A decisão dividiu o próprio STF, contradizendo a ala garantista que votou contra a constituição, mas implodindo também o bloco do centrão de Rodrigo Maia. O grupo de Maia - que tem pelo menos cinco pretendentes ao cargo de presidente da Câmara - precisa agora encontrar um ponto de unidade e conseguir o apoio da esquerda, já tendo perdido o apoio do PSB, numa equação que inclui apoiar Baleia Rossi (MDB) para viabilizar uma chapa de João Doria com o DEM em 2022. A eleição ocorre em fevereiro, mas o resultado é para ser colhido em dois anos.

7. O último trumpista. A notícia do fim da guerra fria assim como a derrota eleitoral de Donald Trump não chegou ainda aos ouvidos ou aos neurônios de Jair Bolsonaro. Acompanhado do chanceler Ernesto Araújo e do filho Eduardo, Bolsonaro segue entrincheirado em sua luta contra o comunismo chinês e a sociedade oriental. Para desespero da ministra Tereza Cristina e do agronegócio, o Planalto agora proibiu terminantemente seus ministros de receberem o embaixador chinês Yang Wanming. Além disso, desautorizou publicamente o seu vice, general Mourão, por ter defendido a participação da chinesa Huawei no leilão de 5G no país. E o que Brasil ganha com esta hostilidade diplomática? Absolutamente nada, concordam três sinólogos ouvidos pela BBC. Ao contrário, lembra Janaina Silveira, além de desprezar o 5G e a vacina chinesa, o governo ignora que os chineses investiram US$58 bilhões no Brasil, entre 2017 e 18, principalmente em setores como infraestrutura e energia. Na saúde, por exemplo, 95% dos insumos da indústria farmacêutica brasileira são importados e um terço deles tem origem chinesa.

No caso do 5G, as próprias operadoras alertam que os prejuízos em excluir a Huawei podem ultrapassar os R$100 bilhões e exigir toda a troca de infraestrutura 3G e 4G existentes. Porém, lembra Thomas Traumann, tornar-se um pária mundial não é um acidente das relações internacionais do Brasil, é um projeto. Traumann aposta que Bolsonaro seguirá vivendo na sua realidade paralela, mesmo sem a matriz Donald Trump para copiar, indiferente ao peso econômico do seu fundamentalismo conspiratório, sem maneirar na verborragia e mantendo Ricardo Salles e Ernesto Araújo nos seus postos. Porém, ao contrário do mundo fantasioso das redes sociais, a diplomacia cobra seu preço: Bolsonaro não foi incluído na cúpula organizada pela ONU com 80 chefes de estado para discutir as mudanças climáticas.

8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

2022. Não será o tabuleiro eleitoral que será capaz de derrotar Bolsonaro. No A terra é redonda, Luis Felipe Miguel sugere intensificar o trabalho político cotidiano, organizando os setores que são vítimas do atual governo e lutar contra o autoritarismo e o neoliberalismo.

Para superação das crises, Brasil precisa abandonar o liberalismo econômico. Em entrevista para o Instituto Humanista, o economista Bresser-Pereira defende a presença do Estado como mecanismo para retomar o desenvolvimento, com reindustrialização e baixas taxas de juros.

A contraofensiva econômica dos EUA na América Latina. No Le Monde Diplomatique, João Estevam dos Santos Filho analisa o lugar da América Latina na disputa geopolítica entre China e Estados Unidos.

Reconquistar a classe trabalhadora. Proteger os trabalhadores e enfrentar os interesses privados dentro do Estado, o caminho proposto por Bernie Sanders para o Partido Democrata recuperar o apoio da classe trabalhadora nos EUA.

O Estado deve, sim, meter a colher. A Piauí demonstra como a lentidão do Poder Judiciário é determinante para que casos de violência doméstica tornem-se feminicídios.

'Se contar, ninguém te contrata': os trabalhadores que escondem doenças crônicas para conseguir emprego. Em reportagem à BBC Brasil, Juliana Gragnani apresenta relatos de trabalhadores com doenças crônicas que lutam para conseguir emprego.

Abin e 27 órgãos já acessam megabase de dados de Bolsonaro. O Intercept conta como o Cadastro Base do Cidadão, que reúne 50 bases de dados, pode ser uma ferramenta de vigilância poderosa.

Mil dias sem Marielle — como o jornalismo mudou o rumo do caso. Neste podcast, a agência Pública conta como o jornalismo investigativo foi determinanente para revelar provas e pressionar as investigações do assassinato.

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Edição: Rogério Jordão