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Nenhum passo atrás: uma reflexão no dia mundial dos direitos humanos

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Todos os direitos, inclusive aqueles que os liberais chamam de individuais, não têm como serem realizados fora do compromisso coletivo - Elineudo Meira / Fotos Públicas
Nenhum passo atrás, nenhum direito a menos

Por Paulo César Carbonari*

O dia mundial dos direitos humanos de 2020 é inédito em 72 anos de sua realização, desde que foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948. Vários acontecimentos marcaram esta trajetória, mas nenhum se compara à pandemia de Covid-19.

A pandemia agravou as condições desfavoráveis aos direitos humanos para a imensa maioria da humanidade que já vivia em condições precárias de vida, na pobreza ou na extrema pobreza (uma distinção “técnica” para dizer da absoluta ausência de direitos humanos), sob o racismo, a xenofobia, a aporofobia, a exploração e expropriação, enfim, submetida às mais nefastas práticas de violência e violação que geram grave e permanente desumanização.

A pandemia teria colocado em “suspensão” certos direitos (ir e vir, reunião, “aglomeração”, por exemplo) e obrigado a certas práticas limitadoras de liberdades individuais (isolamento físico, por exemplo). Preocupações legítimas. Mas, pouco associadas ao fato de que, para as maiorias, estes direitos sequer chegam, menos ainda estão sendo realizados.

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Os direitos humanos já vinham sendo atacados muito antes desta pandemia. Os retrocessos em sua vigência e sua implementação eram perceptíveis. Os agentes do capitalismo atual já não precisam deles. A democracia, nem mesmo a liberal, e os direitos humanos já não são suportáveis. O neoliberalismo ultraconservador rompe completamente com qualquer compromisso de solidariedade e afirma o modelo empresarial para tudo, centrando no indivíduo empresário de si, dispensando, deste modo, qualquer compromisso comum.

O princípio da não-discriminação é cada vez mais atacado. Cresce o perfilamento racial, o seletivismo e as mais diversas formas de inversão dos direitos humanos. Um exemplo é a defesa da diversidade, porém sem interação, sem diálogo, numa versão trágica da tolerância passiva (no popular, viva a diversidade, contanto que “cada um/a fique no seu quadrado”) que, na prática, assume a discriminação como princípio de convivência. A não universalização dos direitos é por si só discriminação, visto que as maiorias para as quais os direitos ainda não chegam não são efetivamente parte desta universalidade, não vivem direitos humanos, estão longe do usufruto dos direitos humanos. Mas, exigi-la é exatamente uma forma de fazer frente à discriminação, contanto que componha com a diversidade, no sentido de que para não-discriminar é necessário atender às singularidades das necessidades dos/as sujeitos/as humanos/as.

O princípio da proibição do retrocesso está sendo desrespeitado. A afirmação da progressividade da realização dos direitos humanos, consagrada como um compromisso para que novos direitos sejam acolhidos e novas estratégias para realizar os direitos previstos sejam possíveis, está sendo atacada em nome de ajustes fiscais que só colaboram para concentrar ainda mais. O governo brasileiro, por exemplo, assume esta postura como política de Estado, dado que, em flagrante ataque aos direitos humanos – ainda sem pronunciamento do Poder Judiciário –, leva adiante a Emenda Constitucional nº 95/2016 que, ao estabelecer teto de gastos, impede que sejam efetivamente ampliadas as condições de proteção social, desfinanciando a efetivação dos direitos humanos, particularmente dos direitos sociais. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 188) tramita desde 2019 no Congresso Nacional e prevê que os direitos sociais do artigo 6º da Constituição Federal fiquem condicionados a um suposto “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, uma formulação perversa para mais constrangimentos e retrocessos. A estratégia combina a revogação frontal dos direitos ou a destruição das condições para sua efetivação.

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O enfrentamento das desigualdades e de todas as práticas desumanizadoras requer assumir agendas proativas na direção de promover a justiça, a igualdade e a liberdade; a implementação de sistemas universais de proteção para a realização dos direitos sociais; a promoção de práticas sustentáveis; a responsabilização pelas violações e violências estruturais contra os mais pobres, as mulheres, negros/as, povos e comunidades tradicionais, LGBTQIA+, pessoas com deficiência; a proteção das relações de trabalho e dos/as trabalhadores/as contra a flexibilização e a precarização, o desemprego e o subemprego; o diálogo intercultural; entre vários outros aspectos. Para que esta agenda seja possível há que ser fortalecida a articulação independente e autônoma das organizações da sociedade civil e também das instituições multilaterais, ampliando a participação e as possibilidades de ação dos diversos órgãos e organismos de ação de monitoramento da vigência dos direitos humanos.

Não se trata de enfrentar “mais uma crise”, pois não estamos somente numa pandemia que impacta os direitos humanos, mas também numa situação na qual os próprios direitos humanos estão em pandemia. Trata-se de assumir a necessidade de mudanças profundas e sistemáticas, capazes de transformar as subjetividades em vista da afirmação da solidariedade indignada e, principalmente, transformar as institucionalidades para que sejam efetivamente vocacionadas à promoção e proteção dos direitos humanos. Há sim que ser enfrentada a pandemia sanitária, mas, mais do que ela, da pandemia humanitária, da pandemia planetária. O desafio não é arrumar ou remendar. O desafio é repensar, repactuar, criar condições para que os compromissos e responsabilidades com os direitos humanos sejam colocados na centralidade da vida e da atuação.

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Todos os direitos, inclusive aqueles que os liberais chamam de individuais, não têm como serem realizados fora do compromisso coletivo, da responsabilidade comum, construção societal. Exigem um projeto de sociedade e compromisso efetivo. A simples reivindicação egoísta de qualquer dos direitos humanos não é uma boa saída, pode ser mais desmonte dos direitos humanos.

Não se resolvem complexas e profundas contradições com pequenos reparos pontuais. O que se precisa é de uma resposta que esteja à altura das necessidades do momento e do acontecimento que marca a vida da humanidade. A experiência do que se viveu neste 2020 não pode ser resolvida numa simples volta a um “novo normal”. O que está em questão é a possibilidade de desenhar um “inédito viável”.

Mais uma vez dizer: nenhum passo atrás, nenhum direito a menos. Todos os direitos humanos para todas as pessoas, já!

*Doutor em filosofia (Unisinos), coordenador nacional de formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rogério Jordão