Com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a reforma agrária passou a ser tratada como uma "pauta adversária" a ser eliminada, apesar da sua previsão na Constituição Federal. É assim que uma Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) protocolada nesta quarta-feira (9), no Supremo Tribunal Federal (STF), descreve a atual situação da política agrária no país.
A iniciativa judicial é assinada por representantes de entidades como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Contraf-Brasil), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), além de cinco partidos de oposição, também autores da ação: PT, PSOL, PCdoB, Rede Sustentabilidade e PSB. O objetivo é que o STF determine a retomada da criação de novos assentamentos rurais.
Logo no início do governo Bolsonaro, em 2019, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma (Incra), por meio do Memorando-Circular nº 01/2019, determinou a interrupção de todos os processos de aquisição, desapropriação ou outra forma de obtenção de terras para o assentamento de famílias camponesas. Além disso, também ficou suspensa a realização de vistorias em imóveis rurais, o que implica na impossibilidade de fiscalizar o cumprimento da função social da propriedade, primeiro passo no processo de desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária.
"Foi gasto dinheiro público com vistorias e o governo paralisou esses processos de desapropriação. São mais de 187 áreas que já deveriam ter tido imissão de posse, inclusive determinada pelo próprio Poder Judiciário, e o governo Bolsonaro também paralisou esses processos. São mais de 48 áreas que já deveriam estar com seleção de famílias", afirmou Alexandre Conceição, integrante da coordenação nacional do MST.
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Números do próprio Incra indicam que há 513 imóveis rurais, em diferentes fases de desapropriação, completamente paralisados no órgão. Somente nessas áreas, seria possível assentar 32,9 mil famílias. Estão nesse grupo 187 processos que já tiveram a desapropriação praticamente concluída e dependem apenas da imissão na posse, que é quando o Incra assume o controle do imóvel para selecionar e criar um novo assentamento.
"Nós temos hoje cerca de 100 mil famílias debaixo de lona, espalhadas pelo país, na beira da estrada, aguardando um pedaço de terra para produzir alimentos. E todos vêm acompanhando a atual inflação dos alimentos", protestou o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP).
Na ADPF, os partidos e as entidades pedem a suspensão dos efeitos dos memorandos do Incra que paralisaram processos de desapropriação, além da elaboração de um plano emergencial de reforma agrária.
“Não é um tema de economia de recursos públicos ou da crise econômica, como eles tentam esconder. É um tema para, na verdade, fortalecer o latifúndio e acabar com a reforma agrária, que é uma conquista do povo brasileiro”, enfatizou a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS).
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Orçamento despenca
Outra fonte de preocupação manifestada pelos autores da ação é a redução drástica no orçamento do Incra.
As principais ações do órgão tiveram redução acima de 90% entre o orçamento deste ano e o projeto de lei orçamentária para 2021. No caso da aquisição de novas áreas, por exemplo, essa redução foi de 94,6%, passando de R$ 6,1 milhões em 2020 para R$ 668,7 mil no ano que vem.
Quando se compara com anos anteriores, a queda é muito mais vertiginosa. Em 2015, o orçamento para obtenção de terras foi de R$ 800 milhões, número que despencou nos anos seguintes: 2016 (R$ 333 milhões), 2017 (R$ 193,9 milhões), 2018 (R$ 52,3 milhões) e 2019 (R$ 29 milhões).
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Ao todo, existem mais de 9,3 mil assentamentos no país, que abrigam pouco mais de um milhão de famílias. São áreas que também dependem de investimentos federais para fomentar seu desenvolvimento. Mas os recursos para a consolidação desses assentamentos tiveram redução de 71,1% no orçamento do ano que vem, enquanto a assistência técnica e extensão rural perdeu 99% dos recursos, passando de R$ 7,4 milhões para irrelevantes R$ 7,5 mil.
Ações de educação no campo e de monitoramento de conflitos fundiários, por exemplo, tiveram seus recursos praticamente zerados pelo governo Bolsonaro.
Na outra ponta, a única ação que ampliou seus recursos, praticamente absorvendo todo o orçamento do Incra, é o de pagamento sentenças judiciais transitadas em julgado, os chamados precatórios, em geral pagos a proprietários de terras desapropriadas pelo órgão.
"Mais de 70% do orçamento do Incra eles colocaram apenas para pagar juro de precatório para latifundiário, ou seja, Bolsonaro e Nabhan Garcia [secretário nacional de assuntos fundiários] transformou o Incra em uma imobiliária de grilagem de terra. É isso que nós viemos denunciar", afirmou Alexandre Conceição, do MST, durante a entrega da ADPF no Supremo.
A ação também reivindica a recomposição do orçamento do Incra e sua aplicação nas áreas relacionadas a criação e desenvolvimento de assentamentos.
Procurado pelo Brasil de Fato para comentar sobre a paralisia na reforma agrária, o Incra não se manifestou até o fechamento da reportagem.
Audiência na OEA
Em meio à paralisia da reforma agrária, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) realizou na manhã desta quarta-feira (9) uma audiência com o MST para discutir justamente a situação do campo no Brasil.
O encontro ocorreu após a comissão, no dia 30 de novembro, notificar o Estado brasileiro para que sejam apresentadas explicações sobre o despejo truculento do Acampamento Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, ocorrido em meio à pandemia. As famílias são produtoras do Café Guayí e referência de produção agroecológica na região.
Edição: Rodrigo Chagas