ENTREVISTA EXCLUSIVA

"Não descansamos, pois não sabemos o que Trump pode fazer", diz vice da Venezuela

Delcy Rodríguez, vice-mandatária do país, detalha o bloqueio econômico e analisa o cenário pós-eleitoral

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

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Delcy Rodríguez considera que a vitória chavista nas eleições legislativas, realizadas durante a pandemia, foi uma "proeza" - Vice-presidência da Venezuela

A vice-presidenta da Venezuela, Delcy Rodríguez, analisou o cenário pós-eleitoral e a crise econômica do país em uma entrevista exclusiva para o Brasil de Fato, em parceria com o Peoples Dispatch. No último domingo (6), o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), sigla chavista a qual ela é filiada, obteve 245 das 277 cadeiras da Assembleia Nacional, com 4,2 milhões de votos. Porém, Rodríguez afirma que, ao invés de celebrar a vitória, o governo bolivariano permanece alerta frente a uma possível ação violenta do governo dos Estados Unidos contra a nação latino-americana.

"Nós não temos um segundo de respiro. Não sabemos o que Trump pode fazer antes de deixar o mandato. Nós não podemos descansar e não descansaremos um minuto quando se trata da defesa do povo venezuelano", afirmou.

Como exemplo de possíveis ataques, na última terça-feira (8), o presidente Nicolás Maduro revelou que teve de alterar seu local de votação de última hora para se proteger de um atentado.

Com a maioria qualificada do parlamento, o PSUV teria autonomia para aprovar leis orgânicas, convocar uma nova constituinte, além de nomear representantes de outros poderes, como Ministério Público, Poder Eleitoral, Tribunal Supremo de Justiça e a Procuradoria Geral da República. 

A vitória chavista nestas eleições consolida a hegemonia do partido de Hugo Chávez e de Maduro em nível nacional, controlando o Executivo e o Legislativo do país, além de 19 governos estaduais e 90% das prefeituras. No entanto, a vice-presidenta destaca que a proposta do partido é de que povo venezuelano assuma o poder. 

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Segundo Rodríguez, os planos anuais de orçamento e planificação aprovados pelo Ministério de Planejamento são elaborados em cima do levantamento realizado pelas organizações de base nos territórios, como as comunas e os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP).

"Você vai a qualquer comunidade na Venezuela e o povo está realizando a cartografia social. Isso você não vai ver nos grandes meios de comunicação, porque eles não entendem o poder popular", afirma. 

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Cerca de 31% do eleitorado participou das legislativas, a alta abstenção é justificada pelas condições adversas geradas pelo bloqueio econômico / Michele de Mello/Brasil de Fato

Desde setembro, Delcy Rodríguez também lidera o Ministério de Economia e Finanças. Menos de um mês depois, foi aprovada a Lei Antibloqueio, que é o projeto-chave do governo venezuelano para a recuperação econômica. A aposta é oferecer melhores condições fiscais e proteção jurídica para atrair investimento estrangeiro e aumentar os ingressos do Estado, que nos últimos cinco anos diminuíram em 99%. Rodríguez garante que uma face do problema econômico do país é a perseguição dos Estados Unidos contra os empresários.

"Cada operação terá um acordo de confidencialidade, sob um regime especial que se cria a partir da lei, para proteger da perseguição o objeto central de cada contrato. Imediatamente depois que mostram algum interesse em investir na Venezuela, as empresas já recebem ligações da Secretaria do Tesouro, da OFAC, da Secretaria de Estado, para evitar qualquer tipo de oportunidade [de ataque]", explica a vice-presidenta.

A lei também faz parte da chamada "diplomacia bolivariana de paz" que busca consolidar uma compreensão geopolítica multipolar. Para isso, até o momento, já foram assinados 600 projetos de cooperação com a China, além de parcerias com a Rússia e o Irã

Delcy, que já foi ministra das Relações Exteriores, também relembra que a saída voluntária da Venezuela da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2019, e a atuação na Organização das Nações Unidas (ONU) fazem parte da política de direcionar esforços para a construção de novos polos contra-hegemônicos. 

Depois do golpe de Estado na Bolívia, no ano passado, Rodríguez não descarta a participação do secretário-geral da OEA, Luis Almagro, em planos de desestabilização contra o seu país. "Luis Almagro é um criminoso selvagem, que pretendia a invasão da Venezuela", afirma.

"Estamos batalhando, constituímos um grupo de países em torno à defesa da Carta das Nações Unidas. Se não defendemos a Carta da ONU, essa organização está destinada a desaparecer ou definitivamente será ineficaz para atender aos problemas da humanidade. Isso estamos vendo agora com a pandemia da covid-19", acrescenta a vice-presidenta venezuelana. 


A maioria dos comerciantes expõe os produtos com o preço em dólar, apesar de que a moeda nacional venezuelana permanece sendo o bolívar soberano / Michele de Mello/Brasil de Fato

Dolarização 

A Lei Antibloqueio foi aprovada por unanimidade pela Assembleia Nacional Constituinte (ANC), no entanto recebeu severas críticas dentro do próprio chavismo. Os principais questionamentos apontam para a falta de uma política clara de valorização da moeda nacional (o bolívar soberano) e do salários. 

O salário mínimo na Venezuela é de 400 mil bolívares, o equivalente a 0,40 de dólar. Por conta da manipulação do câmbio, provocada pelo bloqueio econômico, a moeda perdeu 866.567% do seu valor entre agosto de 2018 e setembro de 2020. Nesse cenário, o país vive uma dolarização forçada da sua economia, com produtos de consumo diário, aluguéis e até serviços básicos sendo cobrados em dólares.

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No entanto, Delcy destaca que o bolívar soberano ainda cumpre sua função e que a nova legislação permitirá proteger o valor dos salários e elevar a capacidade de compra dos venezuelanos.

"O bolívar sustenta nosso modelo de proteção social. O Sistema Pátria, por exemplo, beneficia 18 milhões de venezuelanos e venezuelanas por meio de políticas sociais do Estado. É o bolívar que está à frente das políticas de proteção ao nosso povo. E convive com outras moedas no circuito comercial. Isso não é dolarizar a economia, como propunha a direita, que queria atar nossa economia, nossa vida monetária e financeira à Reserva Federal estadunidense, onde se concentra a artilharia da guerra econômica contra a Venezuela", declara.


Ex-presidentes Manuel Zelaya (Honduras), José Zapatero (Espanha), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Fernando Lugo (Paraguai) foram observadores internacionais nas eleições do último domingo (6) / Prensa Presidencial

Perspectiva internacional

As eleições legislativas venezuelanas finalizam um ciclo de processos eleitorais na América Latina, que começou com o pleito na Bolívia, passou pelo plebiscito no Chile e pelas eleições municipais no Brasil. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o chanceler Jorge Arreaza se mostrou otimista com o atual cenário e já havia declarado que a prioridade da política exterior da Venezuela no próximo ano será reativar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), além da consolidação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

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Delcy Rodríguez reitera que os últimos resultados positivos na região e no seu país marcam o final de um período de governos "sicários".

"Há novos ares na América do Sul que apontam para a Pátria Grande, que buscam abandonar essa política anacrônica da Doutrina Monroe, na qual os governos se converteram em franquias de Donald Trump. Bolsonaro é uma franquia e um papagaio de Donald Trump. Macri [ex-presidente argentino] também. Há uma recomposição moral, ética e histórica nos nossos países da América Latina", concluiu a vice-presidenta venezuelana.

Edição: Vivian Fernandes