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Direito é direito | Emily, Rebeca, o nosso racismo e o genocídio

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É notório que as atrocidades massivas estão na história brasileira, contra indígenas e negros, ontem e hoje, apesar de nunca serem devidamente admitidas - Yasuyoshi Chiba / AFP
A tristeza pela morte de Emily e Rebeca nos leva mais uma vez a refletir sobre o racismo e denunciar

Poucos dias após o brutal assassinato de João Alberto Silveira Freitas por vigilantes do Carrefour, Emily e Rebeca, duas crianças de 4 e 7 anos, respectivamente, foram mortas pela polícia militar do Rio de Janeiro no Barro Vermelho, em Duque de Caxias.

Informações preliminares dão conta de que não havia tiroteio – ao contrário do que erroneamente alguns veículos noticiaram - e de não houve prestação de socorro. Tampouco houve bala perdida, sobretudo quando verificamos que os tiros localizem sempre os mesmos corpos negros.

A tristeza pela morte de Emily e Rebeca nos leva mais uma vez a refletir sobre o racismo e denunciá-lo. Um racismo estrutural e institucional, que persiste em fincar sua presença, enquanto os negacionistas de plantão se apegam ao mantra da sua inexistência, sob o argumento de que somos uma sociedade sem segregação.

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Ao comparar a nossa realidade com a dos Estados Unidos, o vice-presidente da República lançou recentemente mais uma vez a tese, como se fosse inovadora, para dizer que aqui prevalece a “convivência harmônica entre raças”.

Racismo

O discurso negacionista não resiste à história e aos fatos, porém é necessário identificar a sua razão de ser, já que a sua construção remonta à tentativa de conferir tintas coloridas à realidade da população negra no Brasil.

Ao longo do século XIX, as teorias racialistas científicas favoreceram a criação de teses de embranquecimento como parte de um projeto nacional, em que a negritude era um fator a ser extirpado, e não incluído. A devolução de negros à África ou a importação de trabalhadores brancos para embranquecer a nação pautavam o debate, e a última prevaleceu. 

No século XX, especialmente nos anos 1920 e 1930, o debate passa a tomar outra forma. O elogio à mestiçagem como um fator que não gera inferioridade racial, mas sim singularidade nacional, e ao equilíbrio entre antagonismos, nos dizeres de Gilberto Freyre, seriam a nossa grande contribuição à civilização. Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala", sustenta que, no Brasil, houve uma harmonização de contrários, entendidos estes como a cultura mais atrasada, de um lado, e a cultura mais desenvolvida, de outro.

A sociedade brasileira, portanto, seria híbrida e harmônica nas relações de raça, tendo criado um “ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado.

O mito da democracia racial, impulsionado por políticas posteriores, construía a singularidade nacional e permitia a formação de símbolos, como o samba e o futebol, mascarando e suavizando o racismo sob a defesa de uma convivência harmônica entre cidadãos de primeira e segunda classe.

Com isso, o Brasil diferenciava-se de sociedades onde a segregação racial era visível e abertamente defendida, como na África do Sul e nos Estados Unidos. Conforme observa Carlos Hasenbalg, a diferença inter-racial era mantida, assim, inteiramente fora da arena política, como conflito apenas latente.

Em contraponto a essa visão, a denúncia do racismo vai ter em Florestan Fernandes um porta-voz. Ele aponta que as transformações por que passou a sociedade brasileira, após o fim da escravidão, alteraram a sua estrutura e funcionamento, mas praticamente não afetaram a ordenação das relações raciais. Essa situação acarretava dois dilemas sociais: um deles, a absorção dessa população às formas de vida social na ordem social competitiva; o outro, o dilema do preconceito de cor, a “velha associação entre cor e posição social ínfima”, que excluía o negro da condição de “gente”. 

Florestan Fernandes detecta a presença do racismo enquanto sobrevivência do período escravocrata no Brasil pós-abolição.

As razões disso estariam calcadas na escravidão tardia, que viabilizou a sobrevivência de estereótipos e a ideia de que os negros não tinham características para se adaptar ao mercado, por estarem fora dele. Capazes seriam os imigrantes, que retiravam os negros do mercado e representavam uma concorrência desleal. A superação do racismo, no entanto, não exigia um enfrentamento especial: à medida que houvesse modernização e industrialização, o racismo ficaria no passado.

Embora crítica, a concepção de Florestan Fernandes enquadrava a questão racial em um problema de classe ou estratificação social, decorrente da posição socioeconômica inferior. Tal visão pôde ser desmentida à medida que o Brasil se industrializou e o racismo continuou presente. A redução da questão racial a um problema de classe não fornecia explicações para o fato de a população negra permanecer em posições sociais inferiores.

Como mostra Carlos Hasenbalg, a relação senhor-escravo não determinou as relações raciais contemporâneas e posteriores à escravidão. Afinal, o racismo consolidou-se em um conjunto de práticas do grupo branco dominante – por meio de processos econômicos, políticos, culturais e psicológicos -, com vistas a manter o seu privilégio racial.

Os trabalhos de Hasenbalg e Nelson do Valle permitiram avaliar não só as desigualdades de classe entre grupos de cor, mas também as desigualdades de oportunidades entre eles. As diferenças de mobilidade social apontaram para uma chance bem maior de ascensão social dos brancos em relação aos não-brancos, como destaca Luiz Augusto Campos.

Em trabalho específico, após apresentar diversos dados, como taxas de alfabetização, nível educacional e distribuição da população ativa, Hasenbalg conclui que a mobilidade social individual não leva à realização de um ideal de democracia racial, pois existem outros mecanismos que bloqueiam as possibilidades de pessoas negras.

Genocídio

Quando se analisam os dados de violência, o racismo mostra a sua face. Segundo o Atlas da Violência de 2020, publicação do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil alcançou a marca de 57.956 homicídios em 2018. Isso corresponde a uma taxa de 27,8 mortes para cada 100 mil habitantes.

Entre as vítimas de homicídio por arma de fogo, 91,8% são do sexo masculino. O risco de ser vítima é 74% maior para negros e 64,4% maior para negras. Das 4.519 mulheres assinadas em 2018, 68% eram negras. Entre 2008 e 2018, os homicídios de mulheres negras aumentaram 12,4%, ao passo que os de não negras reduziram 11,7%; já os homicídios de homens negros aumentou 11,5%, e os de homens não negros decresceram 12,9%. Ao todo, 75,7% das vítimas de homicídio eram negras.

Os estudos sobre racismo no Brasil mostraram que a democracia racial era, de fato, um mito, embora haja agentes públicos que ainda tentem evocá-la.

A Constituição de 1988 é um produto de uma luta antirracista dos movimentos negros, que repercutiu na legislação e em políticas públicas. Contudo, a democracia e os direitos são ilusão em diversos lugares, sobretudo em favelas e periferias, e questões básicas atinentes a liberdades e igualdades continuam sendo solenemente ignoradas.

Em 2016, o Senado Federal, no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tratou do assassinato de jovens, faz menção à expressão “genocídio da população negra” para caracterizar o cenário atual de violência por que sofre este grupo social, sobretudo os jovens negros

Mais do que uma palavra de ordem, a expressão deve ser discutida em seus contornos jurídicos. Thiago Amparo recentemente abordou o problema, e talvez precisemos aprofundar essa discussão. Afinal, genocídio no Brasil é palavra tabu, como mostra o desconforto recentemente causado por declarações do Ministro Gilmar Mendes acerca da participação do Exército brasileiro nas ações de combate à pandemia.

Contudo, é notório que as atrocidades massivas estão na história brasileira, contra indígenas e negros, ontem e hoje, apesar de nunca serem devidamente admitidas. Em seu lugar, prefere-se, nos dois casos, a lógica da convivência harmônica, da amizade, da “mistura benéfica” e da “pacificação”. 

É urgente ir além da utilização retórica do termo e avançarmos no debate sobre os processos de “pacificação” (nas aldeias ou nas UPPs) e extermínio de grupos sociais no Brasil.

Edição: Mariana Pitasse