Coluna

O ano que não quer acabar

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O pacote anti-crime, elaborado pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, agora é usado para retardar o julgamento dos policiais envolvidos no massacre de Paraisópolis, que está completando um ano - Marcelo Camargo / Fotos Públicas
A vacinação dos brasileiros possivelmente comece em março de 2021 e se estenda por todo o ano

Olá,

Passadas as eleições, o Brasil volta ao novo normal: pandemia descontrolada sem coordenação nem ministério, arapongas de google do Bolsonaro para perseguição política e os centrões de olho na próxima eleição. 

1. O dia depois de amanhã. As eleições foram um teste de força para as próximas batalhas políticas, com o segundo turno confirmando tendências já apontadas no primeiro. Percebe-se um certo conservadorismo do eleitorado: muitos prefeitos reeleitos, bom desempenho dos partidos do centrão e da direita tradicional, enfraquecimento do bolsonarismo e sobrevida do antipetismo.

Mesmo os eleitores evangélicos mostraram-se mais pragmáticos do que os pastores desejavam, como demonstra a derrota de Marcelo Crivella (REP) no Rio de Janeiro. Na esquerda há novidades, mas as derrotas no segundo turno mostraram que a maré ainda não está pra peixe. O clima político parece ser de volta à normalidade, avalia o cientista político Antonio Lavareda.

Até o mercado financeiro já admite a derrota do bolsonarismo, mas o maior desafio para 2022 continua sendo a ausência de uma liderança capaz de vencer Bolsonaro. Na pista da direita, Sérgio Moro mostra que está mais disposto a ganhar dinheiro do que a manter sua coerência moral e política. O ex-juiz parece ter abandonado sua candidatura ao se tornar sócio-diretor da empresa de consultoria Alvarez & Marsal que presta serviço para antigos alvos da Operação Lava Jato. Esta mesma empresa, em 2017 atestou que o famoso triplex do Guarujá era de propriedade da OAS e não do ex-presidente Lula, como Moro alegava. A OAB e juristas já questionam o conflito de interesses que o novo cargo do ex-juiz representa.

Na pista da centro-esquerda, Ciro Gomes, que saiu fortalecido no Nordeste devido ao bom desempenho do PDT, segue tentando surfar no antipetismo e queima pontes com a esquerda. Na pista da esquerda, Guilherme Boulos embora tenha se destacado, não superou a votação que Fernando Haddad (PT) obteve em São Paulo em 2018, e ainda está longe de se tornar o candidato de toda a esquerda. E na ausência de Lula, Jaques Wagner se mostra disposto a lutar para ser o candidato do PT

2. Terceiro turno. Enquanto isso, o terceiro turno já começou. Ele deve ocorrer no Congresso em fevereiro, quando serão eleitos os presidentes da Câmara e do Senado. Neste caso, poderemos ver se o bolsonarismo é capaz de construir uma maioria ou se a derrota eleitoral deste ano se aprofundará. O STF ainda deve julgar a possibilidade de reeleição aos cargos. Independente disso, o governo já decidiu que precisa derrubar Rodrigo Maia, identificado como responsável por atrasar as reformas.

A equipe econômica conformou-se de que nenhuma reforma será votada antes de fevereiro e concentra esforços em pelo menos votar o orçamento de 2021 cuja aprovação também está atrasada. Isso que Maia tem se empenhado em aprovar a reforma tributária. A questão é como a oposição ao bolsonarismo vai se comportar.

Apesar deste bloco reunir votos importantes para Rodrigo Maia, alguns destes partidos são contrários à reeleição dos presidentes do Congresso e há até pedetista insinuando voto ao candidato bolsonarista Arthur Lira.

Enquanto as grandes questões não entram em pauta, o governo costura um acordo no congresso para votar o PL da BR do mar, que regulamenta o transporte marítimo por cabotagem e que conta com a oposição do lobby dos caminhoneiros.

Outra pauta que permanece pendente e pode comprometer o ano que vem é o Fundeb. Aprovado este ano, a matéria ainda aguarda a regulamentação no Congresso. Neste caso, um dos focos de disputa é a possibilidade ou não de utilizarem-se recursos do Fundo em convênios com instituições privadas

3. Questões de inteligência. A elaboração de um relatório contratado pelo governo que classifica 81 jornalistas e influenciadores digitais como “detratores”, “neutros” ou “favoráveis” evidencia as preocupações da “inteligência” desse governo. O assunto já virou pauta do Congresso, onde a deputada Jandira Feghali (PCdoB - RJ) está buscando assinaturas para a abertura de uma CPI para investigar a recorrente prática de monitoramento de pessoas por motivação política.

Em compensação, o crime organizado avança a olhos vistos pelo país, com assaltos a bancos que utilizam táticas de guerra urbana, como ocorreu em Criciúma (SC) e Cametá (PA) esta semana. Mas a inteligência do governo não parece preocupada com isso. Pelo contrário, o crime se beneficia do abrandamento dos procedimentos de rastreamento, identificação e marcação de armas e munições concedido por Bolsonaro em março.

Da mesma forma, o pacote anti-crime, elaborado pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, agora é usado para retardar o julgamento dos policiais envolvidos no massacre de Paraisópolis, que está completando um ano. Ao mesmo tempo, os ataques cibernéticos se sucedem. O alvo mais recente foi o ministro do STF Ricardo Lewandowski, que teve uma videoconferência invadida por um grupo que disseminou mensagens de alusão ao nazismo.

Enquanto falta inteligência em casa, na política externa Bolsonaro movimenta-se para sair do isolamento no continente, ensaiando uma versão de estadista. Mais de um ano depois da posse do presidente argentino Alberto Fernandez, Bolsonaro aceitou finalmente reunir-se com aquele a quem chamou de “bandido de esquerda”.  Também aproveitou a inauguração da ponte entre Brasil e Paraguai em Foz do Iguaçu (PR) para conversar com o presidente paraguaio Mario Abdo Benítez, destacando que a relação entre os dois países é um “casamento perfeito”. Coroando este movimento, na cúpula do Mercosul, ocorrida na quinta-feira (3/12), Bolsonaro foi espantosamente moderado, defendeu a importância do Mercosul e não fez acusações contra os governantes vizinhos.

4. Sem vacina, sem ministério. Enquanto o Reino Unido deve ser o primeiro país do mundo a iniciar a vacinação contra a covid-19, ainda este ano, a vacinação dos brasileiros possivelmente comece em março de 2021 e se estenda por todo o próximo ano. Possivelmente. Isso porque o plano de imunização anunciado pelo Ministério da Saúde ainda não é definitivo pois, segundo o próprio Ministério, só pode ser concluído quando houver alguma vacina aprovada pela Anvisa.

Apesar de prever o período, o público alvo e o total de doses, o plano não prevê quantos insumos e salas de vacinação serão necessárias. Os próprios fabricantes alertam que a falta de encomendas do governo pode gerar atrasos na vacinação. O setor pode precisar de pelo menos quatro meses para atender grandes demandas e está aproveitando a pandemia para elevar os preços de insumos, como seringas.

Além disso, o plano do governo prevê a imunização de 109 milhões de pessoas. Ou seja, metade da população brasileira ainda não teria acesso à vacina no ano que vem ou teria que pagar para obtê-la. Mas, mais grave, atendendo ao comando terraplanista, o plano anunciado pelo Ministério não torna obrigatória a vacinação. Entre as inesgotáveis provas de que estamos sem direção em meio à tragédia, pela segunda vez em menos de um mês dados de todos usuários do SUS e de planos de saúde registrados pelo Ministério da Saúde foram vazados durante mais de seis meses.

Ao mesmo tempo, ignorando solenemente que estamos no menor índice de distanciamento social já registrado, com os números de contaminação crescendo no Sul e em São Paulo, o Ministério da Educação tentou obrigar as universidades a retornarem às aulas presenciais em janeiro, afirmando que as instituições estavam preparadas e só faltava planejamento. A portaria deve ser revogada a após a reação das universidades.

5. Reduzido ao pó. O ano termina e junto com ele três dos principais biomas do país. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Floresta Amazônica, os Pampas e o Pantanal registraram aumento no número de focos registrados. No caso da Amazônia, onde ocorre a operação Verde Brasil 2 do exército, o índice de incêndios é o maior dos últimos três anos e o desmatamento é o maior dos últimos 12 anos: entre agosto de 2019 e julho de 2020, a floresta perdeu 11.088 quilômetros quadrados de área.

No Pantanal, o aumento de incêndios foi 218,3% maior que o ano passado e apenas no mês de setembro foi queimada uma área correspondente ao total dos últimos 3 anos. Menos divulgado, o Pampa também sofreu com aumento de 16% no número de incêndios.

A sanha destruidora certamente se estenderia aos manguezais e restingas no próximo ano, caso o STF não tivesse revogado as decisões do Conama que flexibilizavam a proteção ambiental nestas áreas. Agora o custo econômico da destruição ambiental pode aumentar para o agronegócio brasileiro, já que a União Europeia discute uma norma para restringir importações de artigos agrícolas produzidos em condições não sustentáveis.

Apesar do governo considerar que o ministro Ricardo Salles tem feito um bom trabalho, já há quem defenda uma premiação com uma indicação para outro ministério ou secretaria de governo diretamente no Planalto. A medida seria um aplacamento simbólico às críticas recebidas do mercado financeiro e internacional. Salles, porém, resiste e conta inclusive com o apoio da caserna para permanecer onde está.

6. Ensaio sobre a cegueira. Não faz uma semana que a luz voltou ao Amapá e ela pode desaparecer no resto do país. Apesar do apagão no Norte ter sido causado pela incapacidade de uma empresa privada de energia elétrica e só tenha sido restabelecida pela estatal Eletronorte, o ministro de Infraestrutura, Tarcisio Freitas, acha que, justamente, este é o momento para desestatizar totalmente e de uma vez a Eletrobrás.

Freitas já tem o apoio de Paulo Guedes e Rogério Marinho, que não costumam concordar em nada, e dos generais que despacham no Planalto. Felizmente, a avaliação dos parlamentares é de que o otimismo de Freitas não corresponde à realidade. Até Paulo Guedes, afoito das privatizações, prevê que a Eletrobrás deve ser vendida apenas no quarto trimestre de 2021.

Ainda no enredo do absurdo, será o consumidor em geral que terá que arcar com a falha da empresa privada no Amapá. O governo editou duas MPs em que isenta a população daquele estado da cobrança, mas compensa a empresa espanhola com crédito de R$80 milhões. A premiação pelos maus serviços deve sair da cobrança do IOF. Além do imposto, as contas de luz voltam a subir e passam para a bandeira vermelha neste mês, pois a diretoria da Aneel decidiu, por unanimidade, revogar o despacho que mantinha as contas em bandeira verde, sem custos adicionais para o consumidor, até o final de dezembro por causa da pandemia de Covid-19. Ou seja, para a Aneel a pandemia acabou.

7. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

.A privataria elétrica ameaça o Amapá e o Brasil. No Outras Palavras, Regina Farias e Fátima Gondim analisam detalhadamente porque a privatização da energia no Brasil é um fracasso.

.“Mamadeira de piroca” versão 2020. A chamada “ideologia de gênero” continuo viva nestas eleições, como demonstra levantamento da Piauí sobre o discurso de candidatos conservadores.

.Uma facada atrás da outra. A Piauí reencontra jovens bolsonaristas frustrados com o presidente que elegeram.

.Em 2021, crise humanitária no planeta será a maior desde 2ª Guerra Mundial. Jamil Chade escreve sobre as previsões da ONU de tensão social, perda de renda e instabilidade política na América do Sul.

.A estreita relação entre o trabalho informal e a covid. No Outras Palavras, Adalberto Cardoso e Thiago Brandão Peres escrevem sobre como a reforma trabalhista formou um exército de precarizados submetidos ao risco de contaminação durante a pandemia.

.Bophal 84. Documentário do Brasil de Fato relembra os 36 anos do maior crime industrial da história, quando uma fábrica de agrotóxicos em Bhopal, Índia, explodiu, matando 2,2 mil pessoas na hora e afetando a vida de quase 600 mil pessoas ao longo dos anos.

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Edição: Rebeca Cavalcante