Conflito nuclear

Opinião | Estados Unidos x Irã: impérios não esquecem

O cientista iraniano Mohsen Fakhrizadeh foi morto por atiradores em Teerã; crime teria sido cometido a mando de Israel

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Em luto, iranianos participam de funeral do cientista nuclear do país Mohsen Fakhrizad, assassinado em 27 de novembro - Hamed Malekpour/AFP

O assassinato de Mohsen Fakhrizadeh, um dos maiores cientistas iranianos, seguramente por comandos israelenses, sob autorização ou ordem de Donald Trump, não visa prejudicar um programa armamentista do país, até mesmo porque não há e nunca houve um programa desse tipo destinado ao armamento atômico no Irã.

Os xiitas condenam o uso de armas de destruição em massa e o aiatolá Ali Khamenei até emitiu uma fatwa contra o desenvolvimento e a utilização desse tipo de arma.

O alvo principal é o acordo feito com o Irã, em 2015, o Joint Comprehensive Plan of Action (J.C.P.O.A) para o controle internacional do programa destinado a fins pacíficos, e que, se exitoso, poderia derrubar alguns embargos contra aquele país e reduzir a pressão sobre Teerã.

Trump retirou os EUA do acordo, em 2018, mas o presidente eleito Joe Biden pretende reinserir seu país no tratado, que é mantido ainda por Alemanha, França, Reino Unido, China e Rússia.

Trump e Israel assassinaram Fakhrizadeh, como se fez com o general Qassem Suleimani, em 3 de janeiro de 2020, para sabotar a possibilidade de paz e as intenções de Biden. Não que Biden queira ser “soft” com o Irã. Ele quer reinserir os EUA no acordo justamente para ter controle sobre as negociações e aumentar as pressões sobre Teerã.

Biden sabe que o acordo, que tem o apoio da Rússia e da China e que vem sendo mantido por aliados tradicionais dos EUA, está contribuindo para alienar a influência de seu país na região. Ele quer usá-lo para tentar retomar a hegemonia perdida. Biden quer retomar a estratégia de Obama. Será em vão.

Na realidade, Trump queria fazer, há duas semanas, uma intervenção militar no Irã, mais especificamente na instalação nuclear de Natanz, mas foi dissuadido por assessores, inclusive o general Mark Milley, coordenador do
Joint Chiefs of Staff, que lhe disseram o óbvio: uma intervenção desse tipo seria complexa e teria profundos desdobramentos para seu sucessor. Não é algo a ser feito por um presidente que está deixando o poder.

:: Leia mais: Irã enfrenta um duplo desafio: a covid-19 e as sanções estadunidenses ::

Porém, Trump não desistiu de fazer algo contra o Irã. Preferiu, junto com Israel, assassinar Fakhrizadeh, herói nacional iraniano. Espera, com isso, aumentar as tensões na região, provocar reações do Irã e “melar” um acordo.

Não é a primeira vez que cientistas nucleares iranianos são assassinados. Entre 2010 e 2012, pelos menos quatro grandes cientistas iranianos foram mortos por Israel/EUA.

Como sempre fizeram, os EUA usam hipocritamente da questão do desarmamento para desestabilizar regimes que são considerados hostis.

A este respeito, a história do programa nuclear iraniano é exemplar. Esse programa é inteiramente legal, sob o prisma do direito internacional público, e condizente, inclusive, com as draconianas regras do TNP. Por isso, os iranianos jamais desistirão dele. Com efeito, o programa nuclear iraniano tem grande apoio da opinião pública interna.

Trata-se um programa que foi iniciado ainda na década de 1950, no regime do Xá Reza Pahlevi, com o apoio decidido dos EUA.

O primeiro reator nuclear iraniano, inteiramente construído pelos EUA, começou a operar em 1967, com urânio medianamente enriquecido (urânio enriquecido a cerca de 20%). Posteriormente, o Xá firmou um acordo para
que os EUA construíssem no Irã 23 usinas nucleares até 2000.

Outras potências se juntaram a esse esforço. A Alemanha firmou, em 1975, acordo com Teerã para a construção de duas grandes centrais nucleares baseadas em água pressurizada, um investimento de US$ 6 bilhões.

A França criou com o Irã a Sofidif (Société franco–iranienne pour l'enrichissement de l'uranium par diffusion gazeuse), mediante um investimento de US$ 1 bilhão. Com a sociedade criada, o Irã teria o direito de usar 10% do urânio enriquecido produzido.

:: Leia também: Artigo | Sanções contra o Irã e a Venezuela durante pandemia são cruéis ::

Mas não ficou só nisso. Em 1976, os EUA ofereceram ao Irã uma usina de reprocessamento de material radioativo, que permitiria aos iranianos o domínio de todo o ciclo nuclear e a fabricação de plutônio, material com o qual se pode construir uma bomba atômica. O objetivo manifesto do programa nuclear iraniano da época era gerar energia a partir do uso de urânio, de modo a permitir que o Irã exportasse grandes excedentes de petróleo e produtos petroquímicos.

O Xá, líder de um país rico em petróleo, virou até garoto-propaganda da indústria nuclear estadunidense.


"Adivinhe quem está construindo centrais nucleares" / Reprodução

Evidentemente, os EUA, com todas essas ofertas, estavam, inclusive, começando a criar as condições para um possível armamento nuclear do Irã, na época grande aliado dos estadunidenses no Oriente Médio, região
historicamente conturbada e instável.

Relatório da CIA de 1974, já “desclassificado”, indicava claramente essa possibilidade. Segundo o relatório, se o Xá ainda estivesse vivo em meados da década de 1980, e se outros países da região se armassem (notadamente a
Índia, como de fato aconteceu), o Irã, “sem dúvida”, seguiria o mesmo caminho. Entretanto, isso não parecia inquietar muito Washington.

Tudo mudou, é claro, com a queda do regime de Reza Pahlevi. Todos os acordos e contratos foram cancelados ou revistos, mesmo sendo instrumentos jurídicos de Estados, e não de governos.

Em alguns casos, o dinheiro dos investimentos iranianos sequer foi totalmente devolvido, como aconteceu com a sociedade francês-iraniana para o enriquecimento de urânio. Os reatores que estavam sendo construídos pela Alemanha tiveram de ser abandonados e os EUA pararam de fornecer urânio para o reator operante desde 1967.

:: Coluna: Quando o inverno acabará para o Irã? ::

Obviamente, essa forte inflexão política provocou grande desconfiança dos iranianos, em relação às grandes potências ocidentais. Eles consideram que não podem confiar nesses países como fornecedores de combustível para
seus reatores. Por isso, resistem à ideia de simplesmente renunciar ao enriquecimento de urânio. Diga-se de passagem, o TNP não proíbe o enriquecimento de urânio.

O Brasil, por exemplo, já enriquece urânio a 20%. Em 2010, Brasil e Turquia, com o apoio explícito das grandes potências, inclusive dos EUA, como comprovava cabalmente a carta enviada ao presidente Lula por Obama, chegaram, em 2010, a um acordo com Teerã, plasmado na hoje famosa “Declaração de Teerã”.

Esse acordo conseguido pelo Brasil era praticamente idêntico ao acordo que tinha sido tentado meses antes, sem sucesso, pelos EUA, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), a França, a Rússia e a Alemanha.

:: Relembre: Lula acredita que ataque dos EUA ao Irã é estratégia política de Trump para eleições ::

Naquela ocasião, por motivos políticos internos do regime iraniano e pela desconfiança entre as partes, o acordo não frutificou. É que o governo dos EUA anunciou que, com o acordo, o Irã renunciava ao enriquecimento de urânio, como faz agora. A oposição iraniana protestou. O grande rival do então presidente Ahmadinejad, Hossein Mousavi, perdedor da eleição de 2009 e queridinho da mídia ocidental, foi quem mais se opôs ao acordo.

Mas o acordo obtido, com sucesso, pelo Brasil e pela Turquia, é também muito parecido com o acordo “histórico” feito por Obama, em 2015, e ainda em vigor para seus membros, à exceção dos EUA.

Ele previa o envio de 1.200 quilos de urânio levemente enriquecido iraniano (cerca de 60% do total disponível) para o exterior, e tinha dois efeitos imediatos: a) como o acordo atual, impossibilitava a construção de qualquer artefato nuclear por parte do Irã, pois para isso seria necessário enriquecer a mais de 90% cerca de 2.500 quilos de urânio levemente enriquecido, sendo que os iranianos ficariam com apenas cerca de 800 quilos; e b) abria as portas para uma cooperação pacífica entre o Irã e as potências ocidentais.

Por isso mesmo, o acordo foi bem recebido por quem entendia do assunto. El Baradei, ex-diretor da AIEA, uma das maiores autoridades mundiais no tema, deu pleno apoio ao acordo. A maior parte dos países também. Aliás, se houvesse uma votação na Assembleia das Nações Unidas sobre o acordo, Brasil e Turquia seriam aclamados.

Diga-se de passagem, a própria Resolução do Conselho de Segurança que impôs, pouco depois, novas sanções ao Irã, em virtude do bombardeio do acordo por parte dos EUA, elogiava o entendimento conseguido por Brasil e Turquia e o considerava uma importante medida para a “construção de confiança”.

O próprio comandante-em-fhefe da OTAN na Europa, general James Stavridis, afirmou, na época, que o acordo é um exemplo do que todos buscamos, um sistema diplomático que vise um bom comportamento por parte do regime iraniano.

Gary Sick, que foi membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA durante uma década, considerado um dos maiores especialistas estadunidenses em Irã, afirmou que “ter o Brasil e a Turquia trabalhando ativamente para desenvolver uma nova abordagem da questão iraniana era uma enorme vantagem para os EUA”. Essa ação, segundo Gary Sick, tinha “valor incalculável para progressos futuros”.

Com o malogro do acordo em razão da oposição dos EUA, Gary Sick lamentou que essa “grande oportunidade tivesse sido perdida”.

As principais razões para que os EUA tivessem inviabilizado o grande acordo conseguido pelo Brasil e articulado novas sanções contra o Irã, dificultando muito a continuidade das negociações, eram duas.

A primeira tangia ao fato de que o acordo (que eles tanto procuraram) foi conseguido por duas potências médias (Brasil e Turquia), sem histórico de intervenção no assunto. Assim, o acordo turco-brasileiro retirou o protagonismo dos EUA (e das outras grandes potências) numa região estrategicamente sensível. Eles ficaram melindrados com o êxito alheio e receosos quanto a manter o controle absoluto do processo de negociação.

Já a segunda, e mais preocupante, dizia respeito ao fato de que o Departamento de Estado norte-americano estava dividido quanto ao que fazer com o Irã. Havia uma forte vertente (leia-se Hillary Clinton), aparentemente hegemônica, que preferia apostar na desestabilização do regime iraniano. Por isso, a preferência pelas sanções, pela manutenção de uma pressão contínua e pelo crescente isolamento de Teerã. Como já tinha acontecido no Iraque, o “desarmamento” seria usado como elemento essencial nesse processo.

A política interna também pesava: a “demonização” do Irã tornava populares medidas de força contra esse país.

Todo esse cínico cálculo político mudou com a eclosão do Estado Islâmico, grupo que havia sido financiado e incentivado pelos EUA, e com o grande recrudescimento do terrorismo fundamentalista sunita no Oriente Médio. O Irã, de maioria xiita, é inimigo mortal desse terrorismo sunita (tanto da Al-Qaeda, quanto do Estado Islâmico), que ainda hoje representa a maior ameaça aos interesses ocidentais no Grande Oriente Médio.

Dessa maneira, o Irã passou a ser visto, em anos mais recentes, como um possível aliado tático para a estabilização daquela região. O acordo atual resultou dessas mudanças geopolíticas. Não resultou das sanções e das pressões.

Contudo, o objetivo de longo prazo, tanto de Israel quanto dos EUA (republicanos e democratas) é o da desestabilização e derrubada do regime iraniano. O Irã tornou-se um aliado central da China e da Rússia no Grande Oriente Médio e é peça estratégica no “Grande Tabuleiro de Xadrez” da disputa pela Eurásia.

:: Conheça: Irã e Venezuela rompem bloqueio econômico e inauguram supermercado em Caracas :: 

A China depende do petróleo e do gás do Irã e vem fazendo pesados investimentos naquele país. Os chineses, em contratos de centenas de bilhões de dólares, conseguiram acesso exclusivo a partes significativas dos campos de gás e óleo do Irã. Em contrapartida, prometeram investir na infraestrutura energética do país e, mais do que isso, comprometeram-se a defender essas áreas petrolíferas contra agressões estrangeiras, “como se fossem território chinês”.

O acesso a essas jazidas iranianas, complementado por uma rede de gasodutos, permitirá à China amenizar sua dependência energética e é fundamental para a sua estratégia de constituir uma nova rota da seda.

O Irã, por sua vez, poderá bloquear o estreito de Ormuz, por onde passam os grandes petroleiros que vêm do Golfo Pérsico, sem que isso impacte as suas exportações.

Já a Rússia vê o Irã como um parceiro geopolítico muito importante no Oriente Médio. O Irã é aliado do governo da Síria, apoiada pela Rússia, e adversário da Arábia Saudita e Israel, principais aliados dos EUA no Oriente Médio.

Com a recente e injustificada ofensiva da administração Trump contra o Irã, contrariando abertamente o texto do acordo J.C.P.O.A., que colocou o programa nuclear iraniano sob controle dos EUA e Europa, em troca do levantamento das sanções, a Rússia aproximou-se muito do Irã.

Na última reunião entre Putin e Khamenei, realizada em novembro de 2018, o mandatário russo afirmou ao líder iraniano que a “Rússia não trairá o Irã”.

Assim sendo, o Império continuará, por todos os meios, a tentar se apossar dessa peça estratégica do domínio da Eurásia chamada Irã.

Em 2018, Israel anunciou ao mundo um delirante “Plano Amad”, que teria sido obtido pela inteligência israelense no Irã. Esse suposto plano, datado do final da década de 1990, destinava-se a construir artefatos nucleares e seu “chefe” seria justamente Fakhrizadeh. Ao final da exposição que apresentou o “plano”, Netanyahu afirmou: “Lembrem-se desse nome, Fakhrizadeh.”

Lembraram. Impérios não esquecem e não perdoam.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

----

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Fernandes