Duas das principais lideranças políticas do campo da esquerda no Brasil que saíram fortalecidas das eleições de 2020, apesar de terem perdido as prefeituras de Porto Alegre e de São Paulo, participaram de uma live na noite desta quarta-feira (2).
Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (PSOL) se encontraram virtualmente para debater o resultado dos pleitos municipais e o futuro. Durante 37 minutos os dois jovens candidatos falaram sobre suas campanhas eleitorais criativas que mobilizaram milhões de cidadãos em duas das maiores capitais do Brasil.
“Nossas campanhas, [e também a campanha da Marília (Arraes), lá em Recife, tiveram uma coisa muito boa em comum. Mobilizaram muita esperança. A gente apresentou projetos de cidade críticos, de combate à desigualdade, de dar voz à periferia. Mas a gente mobilizou uma coisa que foi muito além da eleição, que não terminou domingo passado, e que não terminaria, independente de qual fosse o resultado. Que é o sentimento da juventude de olho brilhando…”, disse Boulos.
“O sonho”... emendou a jornalista e deputada federal. “Voltar a fazer política com sonho”, completou o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Sonho real
Em um bate-papo informal, eles falaram sobre projetos, unidade e, principalmente, sobre os sentimentos que ambas as campanhas despertaram nas pessoas. “E o quanto isso é importante para nossa cidade e nosso país”, disse Boulos, que segue isolado em casa, em quarentena, após ter testado positivo para covid-19 às vésperas da votação em segundo turno.
“Quando tudo acabou, fiquei pensando: com quem gostaria de falar sobre o que eu vivi? E aí te mandei a mensagem e te convidei pra live. Queria falar com alguém que está com a mesma sensação que eu, que é uma sensação bonita”, comentou D'Ávila.
“Isso de a gente ver as pessoas com orgulho, carregando a bandeira, chorarem de felicidade, as mulheres, os negros e as negras, os jovens. E de conseguir compreender a dimensão real do seu sonho.”
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Para Manuela, a eleição municipal permite isso. Menos abstrata, menos difusa, traz muito sonho, mas um sonho materializável.
“A juventude, essa geração que é um pouco mais nova que a gente – porque o Boulos se faz de muito mais novo que eu, mas é só uns meses mais novo [risos] – tem mais presente isso do que a nossa tinha. A ideia de quem quer mudar o mundo, mas quer ver a mudança acontecer na sua cidade. Eles querem mudar hoje e ver acontecendo. Acho que nossas campanhas tiveram muito a ver com isso também.”
Ideais no poder
Boulos concorda com Manuela. “Quanto a gente está falando de eleição, está falando de sonhos e ideias disputarem o poder. Isso é muito potente. A política faz sentido quando ela é uma forma de fazer fluir aquilo que a gente acredita, que a gente sonha.”
O candidato do PSOL descreve sua animação com a campanha. Além do pragmatismo, diz ele, foi uma campanha para ganhar, disputar o poder para valer, o projeto de cidade. E cita a vitória de Edmilson Rodrigues (PSOL), em Belém do Pará, onde ele acredita que haverá uma referência de capital democrática. E numa frente de esquerda unitária, desde o início, frisa Manuela.
“Mas o que me aninou, ainda que não seja dessa vez que a gente conseguiu ganhar essa eleição, a gente ganhou o projeto de uma geração. Isso vale mais que tudo”, diz Boulos em referência à mobilização dos jovens.
“Uma parte que há dois anos estava um pouco seduzida pela ideia da anti-política. Eu vi esses jovens aqui em São Paulo com o olho brilhando, pensando cidade, pensando projeto, pensando futuro. Isso acumulou para depois e vai muito além da eleição que se encerrou domingo passado. Reencantou uma geração.”
Campanhas alegres
Manuela lembra que nos dois casos, tanto a candidatura dela como a de Boulos só no segundo turno reuniu “todo mundo” do campo da esquerda.
“Mas tenho a impressão que essa é uma geração que já sente no projeto a identidade de campo. Isso fez com que nossas candidaturas fossem além dos nossos partidos. Tivessem esse sentido de projeto de transformação na sociedade.”
Outro ponto em comum entre as duas campanhas foi destacado por Manuela: “Serem megapolitizadas e divertidas”, descreveu. “Isso era crime uns anos atrás. Alguém achar que podia fazer uma campanha alegre, com felicidade, com brincadeiras. Essa dimensão do lúdico entrar de novo na política.”
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“Nunca imaginei que faria dança no TikTok”, disse Boulos, gargalhando. “Eu ri mais ainda contigo jogando com o Felipe [Neto, youtuber]. Quando eu te vi, busquei aula com minha sobrinha para não pagar o mesmo mico, ficar com cara de não estou nem sabendo o que é”, provocou Manuela.
“Eu tive assessoria da Sofia e da Laura [filhas de Boulos]. Se não, ia ser um negócio absolutamente vergonhoso. Mas fiquei um pouquinho com essa cara, confesso”, assumiu Boulos.
Fake venceu
Mas nem só de bom humor se alimentou a live. As fake news de que foram vítimas tanto Guilherme Boulos quanto Manuela D’Ávila e outros tantos candidatos, e principalmente candidatas do campo da esquerda Brasil afora, foram lamentadas por ambos.
“Foi um tema que a gente não conseguiu vencer nesta eleição. Nem na de 2018. Acho que já tem um avanço porque as pessoas sabem que existe” disse a candidata do PCdoB. Em Porto Alegre, estima-se, foram veiculadas 600 mil notícias falsas contra ela.
Boulos citou uma pesquisa eleitoral inventada na capital gaúcha. “Isso foi mais feio porque saiu da Bandeirantes. Uma emissora legitimou a notícia falsa”, criticou Manuela.
“E com a crise, muita gente deixou de ter internet. Então eles fizeram as fake news circular em caminhões de som. Tu não tem ideia da minha cara quando passo por um caminhão de som dizendo que seu eu fosse prefeita ia ter carne de cachorro em Porto Alegre legalizada, que a gente ia derrubar as igrejas, ia transformar todos os banheiros em unissex.”
Boulos lembrou que em São Paulo as fake news foram delimitadas em dois tipos. No primeiro turno, com o gabinete do ódio batendo na sua trajetória política. “Tive mais tempo de TV com direito de resposta do Russomano que meu próprio tempo, tantas as mentiras que ele jogou”, lembrou.
“Não surtiu efeito. Tive o dobro de votos dele no primeiro turno. O bolsonarismo a gente conseguiu derrotar em São Paulo. E dizer que Doria foi o vitorioso na eleição de São Paulo também é mentira. Para ganhar, Covas escondeu o cara a sete chaves”, comparou.
“No segundo turno, a máquina dos tucanos fez a estrutura”, disse, lembrando mentiras veiculadas junto às creches conveniadas, a distribuição de cesta básica pela campanha de Covas.
Erundina inspira
Os candidatos consideram que há uma tendência política, um renascer. “Claro que ainda tem muito medo, muito ódio, o bolsonarismo não está morto. Mas o nível de reação foi outra eleição”, disse Boulos, comparando com as eleições de 2018.
“Política a gente não lê só pelo resultado da urna, na fotografia daquele momento. É um filme. E o filme mostra o crescimento do nosso campo. O resultado da urna não foi o fim, está mais para um recomeço do que a gente vai viver adiante", emendou.
D'Ávila lembrou que em Porto Alegre seu grupo não ia para o segundo turno desde 2008. “É uma virada. Não é o resultado que a gente sonhava, mas é uma tendência de transformação da política.”
A candidata comunista comemorou, ainda, a dupla formada entre Boulos e sua vice, Luiza Erundina, que é a deputada federal do PSOL.
“Manu, você não tem ideia. Erundina é uma força da natureza”, disse. “É inacreditável o que ela inspirou. Ela falou para a juventude, uma mensagem direta que mobilizou o sonho. E com uma força”, enfatizou.
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Manuela comentou o fato de Erundina ter chamado o vice de Covas, Ricardo Nunes, para o debate. “Bonito isso da questão intergeracional. Uma mulher que está há 70 anos, já foi prefeita, deputada, ministra e segue lutando firme.”
Isso aponta a diferença entre os projetos, avalia Boulos. “De quem faz política com ideal, porque acredita num mundo melhor, tem compromisso visceral com o povo. Isso não envelhece jamais. Nossas campanhas do ponto de vista histórico, simbólico, foram profundamente vitoriosas. Muita gente não consegue ver isso hoje, mas vão ver. A história não acontece nos ritmos que a gente quer, no tempo que a gente deseja. Tem um processo em curso, tem muita coisa se movimentando.”
E 2022?
Em um momento da live, Manuela relata que, nos comentários, muitas pessoas falam em candidatura, em 2022. “Nossa luta não passa só por candidaturas, é uma luta de todo dia na sociedade. Podem culminar em candidatura ou não. Claro que tem de olhar para 2022, precisamos derrotar o bolsonarismo. Mas tem de olhar para o dia de hoje, para como dar sequência na mobilização social que construímos”, alerta.
“E tem esse drama para saber como vai ser a vacinação. A gente além de não ter negociação da vacina, não tem insumos, não tem seringa, pela desindustrialização do país. Temos de saber que vamos viver um 2021 talvez pior, com o possível fim da renda emergencial. Tem muita luta até 2022”, reforça Manuela.
“Política pra gente não é simplesmente disputar cargo. É uma frente fundamental, mas não a única. A gente só conseguiu mostrar isso agora na disputa das eleições porque a gente traduziu um acúmulo de organização, de luta, de sentimento, que vem de muito antes e vai continuar depois das eleições”, detalhou Bolulos.
“Desafio é estar junto com nosso povo, brigar pelo SUS [Sistema Único de Saúde], pela valorização dos profissionais de saúde, pela vacina. Porque no Brasil isso é uma briga política e ideológica mesmo. E brigar pelo nosso povo que está sofrendo na ponta", disse Boulos.
"Se consumarem o corte do auxílio emergencial vai ser uma tragédia, uma epidemia de desemprego, de desespero. A eleição acaba, os problemas continuam, e nosso compromisso com o povo continua. Espero que a gente chegue em 2022 não só mais fortes, mas também mais unidos, para derrotar o bolsonarismo no país", concluiu.